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Ansiedade e Desenvolvimento Mediúnico

Não devo ter sido o único que resolveu, depois de muitos meses na assistência, pedir para vestir o branco.

Também imagino que não fui o único que fez esse passo por algo maior do que simplesmente achar a gira bonita e me sentir bem no terreiro. Fiz o passo porque, em um momento da minha vida percebi que o trabalho da gira podia preencher uma lacuna. Naquela época eu não tinha nem a força nem o discernimento para ajudar aqueles que amo e que precisavam de ajuda. Dei o passo dizendo que aquilo era para aprender a como ajudar aquelas pessoas! Sou míope, o suficiente para ser obrigado a usar óculos para dirigir. O que não imaginava era que minha miopia se estendia à minha maneira de pensar e ver o mundo! Efetivamente, estava dando o passo porque eu eu precisava de algo! Só que não sabia daquilo ainda.

Recém chegado, imaginei que fosse normal que novatos experimentassem uma agitação mental em face do desconhecido. Por um tempo acreditei que a curiosidade e a pressa em entender e em fazer (nos meu limites) as coisas da espiritualidade e da materialidade fossem como molas que me impulsionariam a vivenciar, a cada semana, novos passos no meu processo de desenvolvimento mediúnico.

Racionalidade, karma, reencarnação, mediunidade, livre arbítrio, perispírito, espiritualidade… conceitos que conhecia a décadas mas que acreditava que não diziam respeito à minha vida naquele momento: “-Mediunidade não deve fazer parte do meu karma! Venho aqui só pra me equilibrar e assim poder ajudar os meus próximos!”.

Logo no começo tudo era novo: os rituais, os gestos, as expressões. Muita coisa para aprender e medo de fazer errado. “-Mas como é que em todos os anos que participei na assistência, nunca me dei conta daqueles rituais e gestos?”. Parecia que o primeiro dia em que vesti o branco dia era também o primeiro dia que colocara os pés no terreiro. De repente, não sabia mais nada ou esqueci o que achava que sabia! Hoje, penso que dependendo do nosso estado mental podemos adotar perspectivas bastante distintas: cada uma mostra a gira de uma maneira, permitindo que se aprenda algo específico: o aflito só terá olhos e ouvidos para a entidade responsável pela sua consulta, o contrariado não terá nem olhos nem ouvidos para nada, o cambone compenetrado refletirá sobre os ensinamentos da consulta que anotou, o médium novato tentará estimar se a vibração que sente se trata da aproximação de um espírito ou se tudo não passa de criação da sua mente, um capitão estará atento para que um médium novato não se machuque em uma incorporação, um médium de toco observará quão fácil foi intuir o que a entidade desejava manifestar para um consulente, um pai de santo verá o fluxo e a totalidade dos trabalhos da gira (as consultas a serem realizadas, os encaminhamentos que precisam ser feitos, a batida dos ogans, o canto dos sambas, a firmeza dos médiuns de toco, a objetividade e a pertinência das entidades incorporadas trabalhando no centro e dos médiuns na gira) e agirá de maneira que os objetivos da gira sejam atingidos naquele dia.

Hoje penso que o que mais dificultou o início do meu desenvolvimento foi o tempo que levei para deixar a perspectiva do médium novato, em que eu me via como o centro da gira. Eu vinha para o trabalho da gira esperando sentir uma vibração mais forte do que aquela que sentira na gira anterior. Se não fosse mais forte, se não fosse mais arrebatadora que a anterior deveria haver algo errado com meu desenvolvimento. Sem perceber, prestando atenção em manifestações que entendia como sinais de desenvolvimento nos irmãos da gira, elegi o meu desenvolvimento mediúnico como o principal objetivo a ser alcançado. Ficava meio sem graça quando no intervalo ou no final da gira, ouvia algum comentário do tipo “-Você viu como fulano recebeu uma entidade firme! Desse jeito, daqui a pouco já vai estar no toco!”

Com meus dois neurônios, comecei a cogitar que o objetivo final do desenvolvimento do médium seria ir para o toco. Nessa época, parecia que as vibrações que sentia logo que entrei na gira foram ficando mais fracas e rareando. Eu me esforçava, prestava atenção nos outros que incorporavam. Talvez aprendendo certos gestos fosse mais fácil receber a vibração… em vão.

Para piorar, as vezes aparecia uma pessoa nova na gira e pasme! Já no primeiro dia girava, incorporava com gestos vigorosos e belos de um índio, dirigia-se ao dirigente trocavam poucos gestos ou palavras e saia para colaborar nos trabalhos da gira com determinação e segurança. Era nessa hora que eu sabia que realmente eu devia estar fazendo algo errado. Mas, por que alguém não me avisava? Por quê não me diziam como que eu devia fazer para poder incorporar certo (igual aquele médium novato que recebeu aquele índio)? Ninguém dizia nada e eu também não perguntava. Imagina… pagar mico a toa? Para quê? E nisso o tempo passava, passavam as semanas e os meses.
Hoje, revendo minhas atitudes percebo que me deixei levar por um sentimento que cresce como erva daninha: a vaidade! Sem nada dizer, comparava meu aparente desenvolvimento com o aparente desenvolvimento de meus irmãos de gira. Esqueci o que era reencarnação, o que era a diversidade de caminhos que cada um de nós traçou antes de chegar nesta vida e, infantilmente, comparava meu desempenho na gira com o desempenho dos outros.

“Inteligentemente” conclui que provavelmente eu não seria um médium de incorporação, provavelmente poderia auxiliar no trabalho da gira contribuindo com o samba (mas precisaria aprender melhor os pontos), nas palmas (mas precisaria aprender a bater palmas daquele jeito novo tan, tantan, tan, tantan…) ou como cambone (ajudando a entidade e anotando as consultas). Cheguei a me perguntar se estava no lugar certo, se estava na gira certa e até mesmo no terreiro certo! Por sorte não perguntei a ninguém se estava no lugar certo. Perguntei ao meu coração! Naquele momento percebi que apesar de me sentir fracassado no meu desenvolvimento mediúnico não podia negar uma coisa: eu gostava do ambiente da gira e sempre, independentemente do meu desempenho nas performances de incorporação, eu sempre estava feliz ao final das giras! Então aquilo devia ser bom de alguma maneira e valia o esforço!

Decidi, não seria um médium de incorporação, então deveria  descobrir qual seria meu papel naquela gira. Naquele dia mudei a minha perspectiva. Hoje digo para mim mesmo que, sem perceber, abandonei a perspectiva do meu umbigo (onde intimamente achava que tudo na gira deveria ocorrer para que eu pudesse incorporar  uma “entidade forte”) e comecei a observar o que ocorria na gira e por que a gira acontecia: havia as pessoas que vinham para a vibração (algumas poucas demonstravam curiosidade, muitas traziam expressões compenetradas, talvez esperando por um milagre, outras se mostravam humildes e mesmo resignadas); havia as pessoas que depois da vibração sentavam nos banquinhos (para essas, as entidades vinham dar o seu axé); havia as pessoas que vinham consultar na segunda parte (buscando aconselhamento, cura ou proteção). Foi nesse momento que percebi que a principal causa para existir o trabalho da gira não era o meu desenvolvimento. O trabalho da gira existia para o auxílio àquela multidão que vinha semanalmente!

Sem que a coisa fosse formulada explicitamente na minha mente, comecei a agir de maneira a ajudar o fluxo do trabalho da gira. Procurei estar disponível para qualquer coisa que fosse necessária. Quando solicitado cambonei (e como foi bom aprender ouvindo e vendo as entidades agirem!), bati palmas, cantei, enxuguei chão molhado para que alguém não escorregasse. Acabei esquecendo do meu umbigo.

Devia ser uma gira como as outras, Mas, quando me vi estava girando. Depois me levantei e estava indo ao encontro da entidade dirigente do trabalho. Fiquei apreensivo, não sabia o que tinha que dizer ou fazer. A entidade dirigente estava no meio de uma consulta. Fui direto, ajoelhei  reverenciei com o olhar e quando vi, fiz um gesto com as mãos que foram correspondidos por ela. Eu estava feliz de estar ali, de ter tido a coragem de estar ali. Mas, ela não sorriu. Pelo contrário, o caboclo olhou sereno e sério nos meus olhos. Entendi que o momento era de seriedade, havia um trabalho a ser feito. Naquele momento senti o caboclo que estava comigo, meu pulmão parecia ser pequeno para comportar o ar que eu queria inspirar. Ele quis se levantar, fiz o gesto e juntos fomos ajudar no trabalho da gira.

Uma gira não é como uma tela que se observa, mesmo na assistência, de certa maneira, se está imerso ma gira. Hoje, sinto que o participar da gira e o observar da gira não estão relacionados com o fato de estarmos ou não vestidos de branco (papéis formais durante a gira), ou em estarmos de pé (no círculo) ou sentados (na assistência). Cada vez mais, penso que o participar da gira está relacionado com a atitude mental que cultivamos. Se interiormente e exteriormente agimos para que o trabalho da gira seja repleto de êxito, se agimos para que aqueles que vem em busca de orientação ou cura encontrem algo que lhes alivie o fardo da vida (seja física ou espiritualmente), acho que estamos efetivamente trabalhando na gira.

Meu desenvolvimento mediúnico deixou de ser a coisa mais importante e o principal objetivo pelo qual eu venho semanalmente ao terreiro. Na verdade, no que se refere ao meu desenvolvimento ele mal começou! Ignorância mediúnica (tanto teórica quanto prática) é a expressão que melhor me qualificaria hoje. Entretanto, estes primeiros dois anos serviram para aprender algo muito importante: Meu desenvolvimento mediúnico não deve ser meu objetivo no terreiro; mas uma consequência das minhas atitudes na vida. Isso significa o que aprendo de duas maneiras:

  • A primeira, na minha vida de relação com a materialidade, nas ações do dia a dia que se traduzem em gestos, rituais, leituras e ações que colaboram para que empreendimentos conjuntos se concretizem. Por exemplo ajudando numa tarefa de casa ou da empresa, sabendo ouvir alguém que precisa ou então fazendo algo que percebo precisa ser feito (criando, consertando ou limpando algo).

 

  • A segunda, na minha vida de relação com a espiritualidade, nas atitudes mentais e físicas que fazem com que eu me sintonize mais com determinados planos da espiritualidade. Acho mesmo que essa parte do desenvolvimento mediúnico consiste na construção de hábitos que nos predispõem a estarmos, naturalmente mais sintonizados com nossos mentores do outro plano. Esses hábitos não estariam ligados a gestos físicos mas a atitudes interiores em relação ao próximo como paciência, humildade, disponibilidade, clareza, apoio, aceitação, etc.

Relendo como organizei mentalmente meus dois campos de aprendizagem (materialidade e espiritualidade), entendo por que demoro tanto para avançar no meu desenvolvimento mediúnico. O campo material é fácil de ser observado e transformado porque está relacionado com coisas recentes que aprendi nesta vida. Entretanto, o campo espiritual implica em mudanças profundas na minha maneira de ver e ser no mundo, em especial na maneira como me relaciono com os outros. Estas coisas estão profundamente enraizadas no meu inconsciente, provavelmente cristalizadas de minhas outras vidas. Acho que ai que se encontra o terreno de batalha individual do nosso desenvolvimento mediúnico: o trabalho interno que precisamos fazer para que o campo fique limpo, pronto para a semeadura que virá, na vontade de Zambi manifesta pelos caboclos, pelos pretos, pelas crianças e por todas as entidades que trabalham para a melhora da humanidade.

Refletindo sobre a complexidade e dificuldade para trabalhar minha dimensão espiritual percebo como foi bom ter transformado em consequência o objetivo que eu tinha de desenvolver minha mediunidade. É como se eu tivesse tirado um peso dos meus ombros, tirado algo que me distraia do que é realmente importante para mim: o meu movimento em direção de me tornar alguém melhor a cada dia.
O caminho a percorrer para este aprendizado ainda é imenso. O que mudou é que não me incomodo mais com a chegada, me concentro em aprender com a caminhada.

Hilton Azevedo

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