Eu, o Sr. Akuan e o Chico
“Podem ser evocados todos os espíritos, qualquer que seja o grau da escala evolutiva a que pertençam: os bons como os maus, os que deixaram a vida há pouco como os que viveram em tempos mais recuados, os homens ilustres como os mais obscuros, nossos parentes, nossos amigos como os que nos são indiferentes.”
Livro dos Médiuns, questão 274
A Umbanda é uma religião evocativa. Talvez a mais evocativa de todas, pois todas as entidades são chamadas, seja pelo rufar dos tambores, seja pelos pontos cantados individuais ou coletivos.
A nota explicativa da questão 282 do Livro dos Médiuns versa da seguinte forma:
“A experiência prova, com efeito, que a evocação é sempre agradável aos espíritos quando feita com um fim sério e útil; os bons vêm com prazer nos instruir; os que sofrem encontram alívio na simpatia que se lhes testemunha; os que conhecemos ficam satisfeitos com a nossa lembrança. Os espíritos levianos gostam de ser evocados pelas pessoas frívolas, porque isso lhes propicia ocasião de se divertirem as suas custas; não se sentem bem quando evocados por pessoas sérias.”
E aqui começa minha história.
Pai Fernando tinha muitas qualidades (defeitos, também, mas isso não vem ao caso). Dentre suas muitas virtudes, a liderança inata era, sem dúvida, a que mais se destacava. Longe de ser uma unanimidade, os que lhe conheciam bem tinham por ele extrema lealdade. Eu era um desses, ou melhor, eu sou um desses. A capacidade de ouvir e entender, a habilidade de administrar conflitos e a forma peculiar de incentivar as pessoas além, é claro, de sempre ter uma boa estória para contar, faziam dele uma pessoa extremamente agradável. Durante o pouco tempo em que convivi com ele (mais ou menos 17 anos, apesar de conhecê-lo há 35) jamais ouvi uma palavra por ele proferida a alguém que desestimulasse uma ideia. Ele era, sem dúvida, um incentivador e com isso aglutinava pessoas ao seu lado. Comandante que não impunha era mais respeitado que general da ditadura. Sempre bonachão, fazia todos sentirem-se como partes integrantes, fundamentais e indispensáveis de um projeto maior do qual ninguém queria ficar de fora.
Com frequência lá vinha Pai Fernando entrando pela porta do meu escritório, algumas vezes sozinho e muitas vezes com a Dona Yedda esposa, companheira e crítica implacável, porém inseparável. Dentre muito assuntos, a gira era sempre o principal. Vira, mexe, sacode, lá estávamos nós de novo falando de Umbanda. Depois de certo tempo, não tinha outro assunto senão a Umbanda, o Terreiro e os Médiuns.
Dizia ele:
– O José é um médium espetacular.
Em outra ocasião, comentava:
– A Maria é uma “baita” médium.
Noutro dia perguntava e afirmava;
– Você viu a incorporação do João? “Cavalaço”. O Terreiro está repleto de excelentes médiuns.
Sempre tecia elogios, mas jamais elogiava diretamente o José, a Maria ou o João. Falava para mim, afinal levava a risca o postulado criado por ele:
-CAVALO ALISADO É CAVALO ESTRAGADO.
Em outras palavras, não elogiava ninguém para não estimular o orgulho nem a vaidade e assim não desvirtuar o médium tirando-o do caminho certo, o caminho da humildade e da devoção.
Lendo a questão 228 do Livro dos Médiuns tive certeza de que ele estava certo.
“Todas as imperfeições morais são outro tanto de portas abertas que dão acesso aos maus espíritos, mas a que exploram com maior habilidade é o orgulho, porque é a que cada um menos reconhece em si mesmo; o orgulho perdeu numerosos médiuns dotados das mais belas faculdades e que, sem isso, teriam podido ser sujeitos notáveis e muito úteis, ao passo que, transformados em presas de espíritos mentirosos, suas faculdades foram primeiro pervertidas, depois aniquiladas e mais de um se viu humilhado pelas mais amargas decepções.”
Ouvir o Pai Fernando elogiar tantos médiuns despertou em mim um sentimento estranho. Eu nunca me considerei um bom médium, mas convivendo com tantos médiuns virtuosos eu passei a me sentir medíocre. Entristeci-me por participar de demonstrações maravilhosas de mediunidade e eu sem produzir nada que merecesse um elogio. Nada, nada mesmo. O que estaria eu fazendo ali? Seria útil em alguma coisa? Comecei a achar que não. Convenci-me da minha insignificância. Esse pensamento passou a me dominar.
-Não sou nada, não sou ninguém. Por que? Não sei. Só sei que não sou útil aqui.
Pensei em abandonar o Terreiro.
Então já é segunda-feira, dia de gira. Vamos lá, mesmo desanimado, de arrasto. A gira “rola” intensa, vibrante, alegre, mas para mim isso já não importava mais. Eu continuava sendo o pior dos médiuns, sem utilidade, a não ser o fato de ser tesoureiro, o homem do dinheiro, mas isso, isso não conta afinal qualquer um pode ser. Dinheiro, quem não gosta dele. E a gira “bombando”. Consultas, incorporações, a vibração das sete linhas, trabalhos especiais, subida de Ogum, chamada de Ogum de ronda e sobem os Oguns de Ronda. Já vai terminar a primeira parte, depois o intervalo e em seguida a gira de Oxossi. Antes disso, é claro, como o meu time de futebol tinha perdido de três a zero, o Pai Fernando iria levantar a mão, sinalizar três dedos e com aquele olhar brincalhão e sorrisão enorme diria: -Três minutos de intervalo, numa alusão explicita a derrota do maior rival do seu time (sinto muita saudades disto).
De repente, quando estava tudo certo para terminar, algo diferente mudou o roteiro. O Sr. Akuan ordena:
-Caco, para o meio do Terreiro! Vou trazer um espírito aqui.
A ordem era clara e obvia: vou incorporar um espírito. E num milésimo de segundo (eu tinha que ser rápido, pois o Sr. Akuan não gostava de perder tempo), um milhão de pensamentos: quem vai ser? Uma entidade, um caboclo, um familiar de alguém, um amigo, um sofredor, um quiumba? Sei lá. Um amigo do Pai Fernando, talvez o Sr. Edmundo Ferro ou talvez outro Pai-de-Santo qualquer. Quem sabe o meu avô ou uma entidade que digne-se usar-me como intermediário. Sei lá, sei lá. Não tem como saber. Só tem mesmo um jeito: incorporar para ver. Então eu penso:
-Seja o que Deus quiser! Afinal é o Caboclo Akuan que está mandando e ordem dele eu não discuto.
Então fecho os olhos e concentro-me. Não ofereço resistência alguma, não crio dificuldades à manifestação do espírito. Sem noção do que vinha pela frente, giro duas os três vezes (desnecessariamente, mas na dúvida…) e então acontece. Uma energia suave, calma, tranquila, luminosa, não luminosa é pouco, ofuscante e ao mesmo tempo sutil, leve, linda. O jeito de ver o mundo, a vida, as pessoas, num instante mudou: é o Chico, meu Deus, o Chico. Meu lado consciente insiste: eu não mereço. Sou insignificante, medíocre.
Não, não sou. Sou sim ignorante em pensar ser inútil, ignorante ao achar que não posso servir a alguém, ignorante por fazer o Sr. Akuan trazer o Chico Xavier para me convencer disto.
E ali ficou ele, sentadinho, olhado para todos, feliz por estar num lugar onde se faz a caridade e todos os pensamentos estão voltados para o mesmo objetivo. Feliz por, pela sua simples presença, incentivar todos a prosseguirem por esse caminho, feliz por trazer de volta a alegria para alguém que estava em depressão. Feliz por ajudar. Ele, o Chico, feliz por mim. E a Rosana se aproxima, caderninho e caneta na mão e diz:
– Chico, a senha?
Ele responde, falando mansinho:
-Você precisa de senha para acreditar que sou eu?
Senti o Chico na pele, ou melhor, na alma. Envergonhei-me de mim, não pelo que sou, mas pelo que pensei que eu era. Entendi perfeitamente que o meu lugar era ali, eu tinha que estar ali porque ali era o meu lugar. Tinha que fazer o melhor possível, quietinho e assim estaria sendo útil às pessoas e aos espíritos.
O Chico ali no Terreiro do Pai Maneco era a humildade e resignação em pessoa, ou melhor, em espírito. Dignou-se sair de onde estava para socorrer uma alma aflita. Eu serei grato por isso pela eternidade. Mas pensando bem, eu só falei do Chico. E o Sr. Akuan? Afinal foi ele quem intercedeu por mim. Chamou o Chico e foi atendido. Como eu estaria se não fosse ele, meu Pai Akuan – Guerreiro de Ogum. Saravá meu Pai. Maleime por meus pensamentos, maleime pelo meu hábito de julgar, maleime por minhas imperfeições e por meus sentimentos muitas vezes mesquinhos. Obrigado meu velho pelo teu carinho e preocupação, obrigado pela tua compaixão, obrigado pelo teu amor.
Aquele dia mudou minha vida. Mas outra mudança ainda estaria por vir alguns anos mais tarde, quando sete meses depois do desencarne do Pai Fernando eu o estaria incorporando na primeira gira do ano de 2013, na incorporação mais transformadora da minha vida. Mas esta é outra história. Depois eu conto.
Pai Caco de Xango
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