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O Canto nas Giras

O CANTO NAS GIRAS

… mas também sei que qualquer canto
é menor do que a vida de qualquer pessoa.
Belchior

Menina dos olhos do Pai Fernando, a Engoma do TPM, é um elemento sagrado, que integra a atuação dos espíritos e define a qualidade das giras. Destinado a propiciar um bom trabalho mediúnico, o grupo de pessoas que compõe esta espécie de conjunto musical, tem por responsabilidade invocar espíritos, propiciar o ambiente adequado ao trabalho e sustentar a vibração necessária para a atuação das entidades. Sambas e Ogans, ao seguir o comando do dirigente, dão o tom do trabalho espiritual. Até aí, tudo tranqüilo. Então, quais são os problemas que viso elucidar com a redação deste ensaio? Ao considerar que é sempre possível melhorar a produtividade da Engoma, a análise de suas características atuais pode ser esclarecedora.
Desde que entrei no Terreiro, e lá se vão mais de vinte anos, uma coisa que costuma me angustiar é a pouca participação dos médiuns no entoar das canções. Se hoje contamos com microfones e caixas de som, aparatos tecnológicos utilizados para facilitar o comando, este fato não implica a exclusão do entoar da corrente, círculo de médiuns que define o espaço de trabalho dos espíritos incorporados. A concentração de cada um no entoar dos pontos, estabelece o campo de atuação das entidades e delimita o campo de força – o círculo sagrado da Umbanda – necessário à transmutação energética que promove a cura. É a corrente, portanto, que firma a gira e a Engoma existe justamente para organizar e conduzir a participação de todos. Uma gira de Umbanda é um trabalho coletivo e cada um de nós tem seu papel a cumprir. Mesmo que alguns médiuns possam pensar que sua voz não é bacana, estar concentrado no ponto cantado é fundamental; podem cantar baixinho, mas é necessário estar em sintonia com o que está sendo invocado. Levo em conta que alguns pontos são longos e difíceis, mas a maior parte deles é simples de ser memorizada, principalmente por sua constante repetição, cuja função é similar ao entoar da ladainha, reconhecida por propiciar o transe mediúnico.
Esclarecida a importância do canto da corrente nas giras, o segundo dado que merece atenção, quando levamos em conta o constante aprimoramento da Engoma, é relacionar processo de incorporação e ponto cantado. A batida dos atabaques e o canto, longe de serem executados de forma homogênea, variam de acordo com a entidade ou das linhas vibratórias. Não se toca e canta para Iemanjá da mesma forma que para Ogum. Os pontos de Pretos-Velhos apresentam uma variação formal imensa; alguns têm uma batida mais suave, outros uma cadência mais marcada. A percepção destas variações, todavia, depende da sintonia do Samba ou Ogan com a entidade. Observadas estas premissas, compreendemos que os componentes da Engoma são os integrantes da gira que conhecem bem cada espírito, suas características e necessidades de trabalho. Uma das melhores oportunidades para verificar este fato são as incorporações de Iansã, nas quais a responsabilidade se intensifica, pois, mesmo avisados para manter os olhos abertos, muitos médiuns se deixam conduzir pelo calor da hora e, de olhos fechados, acabam por girar muito rapidamente. Cabe a Engoma conduzir de forma salutar o processo de descida, atuação e subida das entidades.
A Engoma, portanto, é o meio de comunicação entre dirigente e corrente. Com o passar do tempo e o aumento de médiuns, surgiram novos pontos os quais, a pedido do público, foram disponibilizados no site do TPM. Hoje, estas pequenas canções são entoadas em giras por todo o Brasil e até mesmo no exterior, configurando uma espécie de levantamento de nosso patrimônio da cultura imaterial, trabalho conduzido pela Mãe Lucília. Grupos profissionais, compostos por integrantes da casa, se apresentam publicamente, engrandecendo nossa religião e derrubando preconceitos, o que muito nos alegra. Mas será que esta profissionalização do canto de Umbanda gera alterações na condução das giras? Minha terceira e última observação acerca de possíveis aprimoramentos da Engoma, reside no perigo de pensarmos que a música é mais importante que o trabalho espiritual e invertermos o sentido do canto. Uma coisa é preparar um repertório para apresentações fora das giras e outra é colaborar no trabalho espiritual.
Na gira, a música não pode se sobrepor às consultas e muito menos ao comando do trabalho. A meu ver, precisamos compreender melhor esta separação entre tocar numa gira e fazer um show. Durante o trabalho, precisamos atender os consulentes, que muitas vezes falam baixo, por dificuldade de expressão, problemas de saúde ou outras razões particulares. O esforço despedido para compreender o teor da consulta, muitas vezes gera um desgaste desnecessário para médium, cambone e consulente, problema que pode ser sanado com a simples contenção da energia da Engoma. A conscientização de que o canto é apenas mais um dos elementos da gira faz com que deixemos nossos egos de lado e adotemos uma postura mais humilde, a de servir aos espíritos que conduzem o trabalho. Lembro ainda, que os dirigentes costumam reservar um tempo para saudações e outros tipos de canções que permitem que os Sambas explicitem, com maior ênfase, seu amor pelos espíritos. Tenho a certeza de que esta sobreposição da voz e dos atabaques, que muitas vezes dificulta as consultas, é fruto do mais genuíno amor pela Umbanda e visa demonstrar o quanto os componentes da Engoma se empenham para cumprir bem seu papel. Mas fato é que, no afã de cantar para os Orixás, muitas vezes nos esquecemos que existem muitas outras coisas além do canto durante uma gira. Se a música se destaca, para orgulho de todos, é porque tem qualidade, mas, retomando a canção de Belchior que adoto por epígrafe deste ensaio, é importante lembrar que trabalhamos com a cura física e espiritual; a vida daqueles que acorrem ao Terreiro em busca de ajuda, é ainda mais importante que a performance musical.

Cristina Mendes
Mãe Pequena

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