O Pai Fernando de Volta em Casa
Hoje faz dois anos que o Pai Fernando desencarnou. Em sua homenagem publicamos a crônica: O PAI FERNANDO DE VOLTA EM CASA. É uma história real. Leia e emocione-se.
Curitiba, 31/07/2014
O Pai Fernando de Volta em Casa
É quinta-feira. Na próxima segunda-feira recomeçarão as giras no Pai Maneco. Será o primeiro reinício sem o Pai Fernando. Sempre o “primeiro sem” é mais difícil. As lembranças de um passado de alegrias torna o “primeiro sem” extremamente doloroso. Apesar dele já ter desencarnado há seis meses ainda é difícil acostumar-se a sua ausência.
Daqui a pouco a reunião vai começar. Será a “primeira sem” o comando do nosso velhinho. Caberá a Lucília, pela primeira vez como dirigente totalmente independente, conduzir uma reunião com todos os Pais e Mães-de-Santo e Pais e Mães-Pequenas no Terreiro. Já são quase oito horas e aos poucos todos vão chegando inclusive eu. Passei por todos ali presentes exibindo uma placa em que estava escrito: Estacionamento: R$ 5,00. Todos viram, ninguém gostou. A Lucília disse:
– O Fernandão vai te matar!
Eu sorri. Sabia que não. Eu conhecia como ninguém as necessidades do Terreiro e ajustar o preço era mesmo necessário. Larguei a placa na secretaria e fui me reunir aos demais amigos. E logo começou. Como sempre, muitas coisas foram discutidas e nem sempre havia consenso. Por isso, votação. Assim ninguém poderia reclamar mais tarde. A forma de entrar na gira, os cursos de iniciação, o calendário, as atividades, as guias, os amacis, retorno de médiuns licenciados e inativos, o conselho de ética, etc, enfim, tudo foi discutido. Desta forma, todas as normas aplicadas no Terreiro foram aprovadas pelos dirigentes e, por pelo menos um ano, não caberiam reclamações. Sempre foi assim e sempre funcionou. Nunca houve decisão autoritária por parte do Sr. Fernando, sempre democrática. Agora a Lucília aplicava o mesmo método. Fiquei satisfeito.
Terminada a reunião, todos conversaram, riram, mataram as saudades de quase quarenta dias sem se encontrar, discutiram generalidades. Segunda-feira começaria tudo de novo e com o reinício também viriam os problemas. Quem bom. Problemas, sonhos e erros são os principais agentes do desenvolvimento. Sem eles nós nos acomodaríamos e nossa evolução seria muito lenta.
Subo no meu carro e vou embora. Tudo preparado era só esperar. No meio do caminho fecha o semáforo. Paro, é claro e ouço um som impróprio para aquele momento. Meu telefone celular, como se eu estivesse fazendo uma ligação, manifestava-se no bolso da minha camisa. Não é possível. Para que isso acontecesse era preciso apertar um botão para clarear a tela, digitar um padrão gráfico para desbloquear o aparelho, escolher um contato e apertar a tecla verde. Só assim seria possível ligar para alguém. Mas isto estava acontecendo. O telefone estava ligando para alguém e já estava chamando. Som de chamada, som de chamada, som de chamada pela terceira vez. Retiro o aparelho do bolso e leio na tela: ligando para: Fernando Guimarães. Coloco o moderno meio de comunicação no ouvido e ouço a mensagem:
-O número chamado esta fora de área ou desligado. Deixe seu recado para FERNANDO.
A voz forte e inconfundível do Pai Fernando, evidentemente gravada por ele mesmo quando ainda encarnado para casos como este, me pegou de surpresa. Não esperava ouvir aquela voz. De susto, joguei aparelho no banco do passageiro. Minhas pernas começaram a tremer e um tipo de pânico tomou conta de mim. Imediatamente falei:
-Saravá, meu velho. O que fizemos de errado? Qual foi a nossa burrice desta vez? Do que o senhor não gostou? Vai, fala ai que nós vamos consertar!
Nessa hora tocou a buzina do carro de trás e só então lembrei-me que eu estava parado em plena Visconde de Guarapuava, conversando com o Pai Fernando. Fui para casa preocupado. Alguma coisa não estava certa. Só podia ser isso.
“Devemos estar atentos aos sinais”, ele dizia sempre. E que sinal, via celular, essa é boa. Comecei a rir. Não havia motivo para medo, afinal era o Pai Fernando. Fui para casa e antes de dormir concentrei-me um pouco e lhe pedi que me intuísse, mesmo durante o sono, o que ele queria.
-Fique tranquilo, vamos fazer – pensei comigo mesmo. E dormi.
No dia seguinte acordei preocupado. Lembrei que o alvará de funcionamento do Terreiro deveria ter vencido exatamente durante o período de férias. Alguns dias antes tinha havido aquela terrível tragédia na casa noturna de Santa Maria com centenas de jovens mortos. Muitas irregularidades foram encontradas. No Pai Maneco sempre foi tudo certinho. Não seria agora que iriamos recomeçar os trabalhos sem que o alvará estivesse renovado. Logo após o almoço trataria disso. E assim o fiz: Prefeitura, Corpo de Bombeiros e Secretaria do meio ambiente. Pronto, em menos de duas horas estava tudo encaminhado. Fácil. Pelo menos agora eu estava tranquilo. Talvez fosse isso que o Sr. Fernando queria com aquele “telefonema”.
Segunda-feira 20:00 horas. O atabaque começa a rufar. O Hino de Umbanda ecoa no Pai Maneco. E eu, eu ainda na secretaria atendendo os médiuns. A Lucília entra me olha e diz:
Oi Caco, me dá um abraço? E ali ela me abraça num longo e terno abraço. Que estranho. Ela nunca tinha feito isso. Fiquei meio embaraçado, sem saber o que fazer com os meus braços, mas logo decidi abraçá-la também num envolvimento fraternal. Então ela saiu e disse:
-Vamos para a gira.
– Vamos lá, falei.
Ajeitei as coisas, fechei a sala e fui para o terreiro. Bati a cabeça, cumprimentei a todos do meio como manda a lei e me posicionei junto aos demais. Salve o Bate cabeça, salve o Anjo da Guarda, prece de abertura, salve os Orixás da Umbanda, salve a engoma, salve as entidades da casa. Tudo certo até que SALVE O PAI FERNANDO DE OGUM…
-Caco, para o meio do Terreiro, determinou a Mãe Lucília.
Ai meu Deus, lá vou eu. Outro dia o Chico, hoje o… Pai Fernando!! E naquele segundo entendi tudo, entendi o telefonema no meio da rua. Meu Deus como sou burro. Estava tão claro. Telefone serve para que? Para se comunicar. Era o sinal dele, dizendo:
-Vou me comunicar! Prepare-se.
Estava me avisando, me prevenindo, afinal ele nunca me deixou na mão. A Mãe Lucília de alguma maneira já sabia. Aquele abraço dela entendi também: o abraço não era fraternal, mas sim paternal. De Pai para filha. Quantas saudades, quanta emoção.
Se a rosa é do jardim, Pai Fernando é do Terreiro
Abram alas minha gente aqui está Ogum guerreiro…
Pronto, ele já está aqui. Incorporado em mim, incorporado no Caco. Não, eu não mereço. Como um homem tão imperfeito e desequilibrado como eu pode merecer esta alegria? Concluo que seja exatamente por isso, porque eu preciso. E o que acontece dai para frente é quase indescritível. Daqui em diante quem fala é o Pai Fernando de Ogum.
Abraço a minha filha Lucília. É um abraço comedido, afinal nunca fui chegado a muitas demonstrações explicitas de afeto. Ela se afasta um pouco e então chamo a Camila minha neta e com ternura imensurável a envolvo num abraço. Um a um se aproximam os Pais e Mães de Santo, os Pais e Mães Pequenas, os capitães e capitãs ali presentes e com enorme alegria abraço a todos. Como é bom estar aqui junto com meus médiuns. Como é bom sentir a força da matéria e o carinho de todos. Eles ainda gostam de mim. Não fui tão mau. Não errei muito. Percebo que a emoção invade o espaço da gira e lágrimas começam a correr dos olhos de todos. Não posso chorar, não devo chorar, mas é difícil não se emocionar. Todos aqui, na minha frente, sorridentes, alegres, felizes. A minha corrente é feliz. De repente, quanto penso em ir embora para não atrapalhar mais a gira alguém lá de trás grita:
– Ei, nos também queremos um abraço. Só para eles, por que?
Esta é a minha corrente, ousada quando necessário, disciplinada quando é preciso. É a melhor corrente do mundo. Não pude resistir. Abri os braços e deixem que todos viessem até mim. Um enorme fila se formou e um a um eu os abraçei e beijei. Era o meu último gesto de carinho. Eu queria fazer isso, afinal meu desencarne tinha sido de forma inesperada e eu não tinha tido a chance de me despedir. Esta era a minha despedida da matéria. Um abraço e um beijo. Em espírito eu estaria sempre junto deles, mas eu queria esta despedida material, eu precisava, eu ansiava por abraçar a todos e faze-los sentir que eu estava VIVO e presente. Desta forma, tinha certeza que todos reconheceriam a minha presença a qualquer momento em que me aproximasse. Todos carregariam consigo este pequeno elo de ligação que eu estava semeando em seus espíritos. Um a um abracei a todos e me emocionei, mas feliz eu partiria.
É hora de ir. A Lúcilia pergunta:
-Alguma recomendação?
-Trabalho, vocês estão atrasados.
-x-x-x-x-x-
E lá se vai ele. Para onde? Provavelmente para algum cantinho do Terreiro ficar observando a primeira gira do ano.
E volta o Caco. Como eu me senti? Outro homem. Por algumas semanas me senti outro homem.
Ter o Pai Fernando acoplado ao meu pensamento numa simbiose perfeita foi algo transformador da maneira de pensar e ver as pessoas. Incorporar o Chico é entender o mundo, o Universo talvez. Incorporar o Pai Fernando é entender o ser humano, com todas as suas virtudes e defeitos e aceitar a todos da mesma forma. É amar a todos incondicionalmente. É querer conviver com as pessoas, ensinar e aprender com elas. Incorporar o Chico é como receber um Preto-Velho: é pura humildade. Incorporar o Pai Fernando é como receber um Exu, sempre preocupado com a felicidade e bem estar das pessoas. Se o Senhor Fernando fosse um exu, seu nome certamente seria Exu Abre-Portas, pois nunca, em tempo algum fechou uma porta para quem quer que seja. Deu a chance de convivência a todos. Foi muitas vezes desafiado e relevou. Foi mal interpretado e se calou. Foi incompreendido e jamais sentiu raiva. Teve pena e perdoou. Sabia o que era melhor para todos e não abriu mão do bem coletivo. Compreendia os defeitos de cada um e obrigava o grupo a conviver com as imperfeições, pois sabia que este era o caminho para a melhoria e evolução de todos. Muitos médiuns foram embora do seu Terreiro por não aceitarem a convivência com outros irmãos imperfeitos. Estes ele também compreendia e não guardava qualquer magoa. Lamentava porque ainda não estavam preparados para entender que um dos objetivos do Pai Maneco é recuperar a todos pela convivência. Eles já falharam em outras encarnações, estavam errando novamente. Mas ele, Pai Fernando, foi tranquilo, pois tentou. Fez de tudo para manter todos juntos. Abriu as portas para a união. Abriu as portas para a amizade. Abriu as portas para o amor.
Saravá, meu Pai. Até breve. Esperamos ser dignos de te encontrar em espírito. Estamos nos modificando e acreditamos que estamos melhorando. Falta muito, mas ainda temos muitas vidas pela frente.
Mucuiu.
Pai Caco de Xangô
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