DO SONHO DE LEMINSKI AO MARINHEIRO DO RIO – Por Mãe Cristina Mendes
DO SONHO DE LEMINSKI AO MARINHEIRO DO RIO:
Modos de revelações das entidades da Umbanda
Neste último sítio de encontros
Juntos tateamos
Todos à fala esquivos
Reunidos na praia do túrgido rio
T. S. Elliot
Gosto de tentar reunir as ideias que desenvolvo na pesquisa universitária com as questões que emergem nos trabalhos de Umbanda. Há pouco tempo redigi um artigo sobre Apocalypse Now, filme mencionado por Paulo Leminski no vídeo-documentário: Ervilha da Fantasia – uma ópera leminskiana, realizado por Werner Schumann, em 1985. No depoimento, o poeta conta que tudo que aprendeu na vida foi com o cinema americano, afirma sonhar sonhos dirigidos por Hitchcock e Ford, abordando, com ironia, questões neocolonialistas. Francis Ford Coppola e Marlon Brando são também citados pelo poeta curitibano.
Concentro a atenção da pesquisa no final de Apocalypse Now, quando o Coronel Kurtz, interpretado por Brando, declama um poema para Charlie Sheen que, no papel do oficial Marlow, havia subido o rio Mekong para matar Kurtz. O poema declamado é “Os Homens Ocos”, publicado por T. S. Elliot em 1922 e inspirado em Coração das Trevas, romance de Joseph Conrad, publicado em 1902. No livro Willard, às margens do rio Tamisa, narra uma viagem por rio no coração da África.
O filme lançado por Coppola em 1979 também se inspira em Coração das Trevas, compondo um entrelaçamento textual enigmático. Elliot e Conrad são mencionados por Leminski em ensaio e poema. O Catatau de Leminski, publicado em 1975, trata de vinda de René Descartes para o Brasil e o derretimento da lógica cartesiana no calor dos trópicos. O romance-ideia foi concebido para ser uma pororoca de sentidos, rio caudaloso, cuja profusão de riquezas tomaria outras tantas laudas e desviaria o sentido da reflexão.
Termino o artigo e percebo que estou estudando histórias contadas por marinheiros. Um tipo específico de marinheiro, Marinheiro do Rio. Repenso o que escrevi sobre outro prisma. Na gira de Linhas Neutras, quando revezamos trabalhar com Boiadeiros, Ciganos e Marinheiros, a entidade com a qual estava incorporada pede para chamar a dirigente. Mãe Lucília senta à sua frente e ele conta que, em uma encarnação no Brasil, se embrenhou floresta adentro com o objetivo de eliminar espanhóis, teme os índios e tem possíveis inimigos ao longo das duas margens. Vejo uma floresta da qual não se chega de volta ao mar em menos de alguns tantos dias.
O Marinheiro do Rio conta para Mãe Lucília as estratégias que adotou para me fazer conhecê-lo. Explica que é importante o médium entrar na vibração do espírito e que os estudos do sonho de Leminski têm uma espécie de vida espiritual, a qual não me cabe compreender. Considera mais importante fazer notar que os médiuns podem não saber o nome da entidade com a qual trabalham e enfatiza que os espíritos que chegam ao terreiro e lá querem trabalhar, costumam pedir permissão para os dirigentes. Afirma que Marinheiro do Rio é o nome de grupo de espíritos que desejam firmar sua falange na casa.
Mãe Lucília pergunta qual a diferença entre um Marinheiro do Mar e um Marinheiro do Rio e ele conta que são os dois lados das margens que fazem a diferença. Enxergo uma floresta à noite e a visão é assustadora, ela é repleta de sons, na evidência de que sempre tem alguém acordado. Passo a ter visões que se acrescem às criadas por Coppola em Apocalypse Now ou às que decorrem da leitura de Coração nas Trevas.
O Marinheiro do Rio agradece o esforço do Terreiro do Pai Maneco para valorizar a cultura brasileira e pede para que as histórias contadas pelas entidades sejam cada vez mais valorizadas. Isto ajudará a criar outra história do Brasil, pois, segundo ele, os fatos tratados no filme e no livro aconteceram inúmeras vezes no período da colonização portuguesa.
Na floresta que ele me mostra, ou que consigo ver, existem índios de diversas tribos, alguns são curiosos e se mostram, outros são mais arredios. Dentro da frágil embarcação, os marinheiros representam o desconhecido. Como em Coração das Trevas, Apocalypse Now e Catatau, os conceitos apregoados pela civilização europeia perdem sentido diante da natureza selvagem.
Tais histórias, contadas pelas entidades, representam um importantíssimo material para futuras pesquisas. Aos cambones, na qualidade de auxiliares dos espíritos, cabe a tarefa de transcrevê-las nos cadernos dos médiuns. Teremos, então, relatos que entrecruzam complexas esferas da existência humana. O que não deixa de me impressionar na Umbanda, a cada nova gira, é a amplitude da força dos espíritos em nossas vidas.
Cristina Mendes, setembro de 2017.
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