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Pontos De Linha: A Voz De Toda A Tribo

Pontos De Linha: A Voz De Toda A Tribo

acordei bemol
tudo estava sustenido

sol fazia
só não fazia sentido
Paulo Leminski

Há cerca de um mês recebi de minha amiga e Mãe de Santo Lucília Guimarães o convite para assinar uma coluna sobre música no site do Terreiro Pai Maneco, reduto digital da ciberumbanda . Cabe a mim redigir ensaios periódicos no qual indico, de saída, o que me interessa: tecer reflexões sobre os pontos cantados , no sentido de fazer com que a música do Terreiro possibilite aprofundar o conhecimento sobre o mundo espiritual. Almejo ainda perceber melhor as tramas que revelam peculiaridades da Umbanda e ficar um pouco mais próxima daquilo que me dá prazer: perceber no ponto cantado um caráter mágico, capaz de transformar energia e propiciar a cura nos mais diversos níveis.
Os objetivos que posso abordar dentro deste tema não se esgotam aí: seria possível ainda explicitar correlações entre a palavra cantada e a criação de imagens mentais, investigar graus de sintonia entre a melodia do ponto e a faixa vibratória da falange espiritual, ou ainda, discorrer sobre as canções disponibilizadas no site. Seria importante também redigir ensaios acerca dos músicos afiliados ao terreiro ou enaltecer nossas fontes de pesquisa, amigos umbandistas deste grande Brasil (e de fora dele também).
Percebo que a coisa se complica, pois nem cheguei a mencionar as singulares maneiras com que a espiritualidade se engendra no mundo através da música, inspirando médiuns, sendo ditada por espíritos ou nascendo pouco a pouco em inusitadas parcerias. Mesmo sabendo que cumprir tal tarefa na íntegra é uma impossibilidade, gosto de acreditar que teremos tempo pra tudo, certamente não eu, mas aqueles que, como eu, colocam-se a serviço do S. Ogan Kaian, espírito cuja função é zelar pela Engoma do Terreiro.
Sou filha do Pai Maneco desde 1991: fui me consultar numa segunda-feira e na outra estava de branco, cantando. Na sede da Faculdade Espírita, S. Geraldo cantava para Ogum de Ronda e as vozes da Gilda, Carmen Silvia e Vera destacavam-se ao toque dos atabaques do Beco, do Bitty e do Lolô. Nos reuníamos aos finais de domingo na casa do Pai Fernando e D. Yedda nos fazia memorizar novos pontos escrevendo no quadro negro do neto Thiago. Ensaiamos com um maestro que me foge o nome, treinamos com o Paulo, com Homero fizemos um arranjo bacana pro S. Sete Flechas e com a professora Marina, russa que ensinava canto lírico, tentamos aprender como entoar o aum através de exercícios de bocca chiusa, técnica vocal de aquecimento e preparo da voz. Lançamos o CD Akuan, gravamos aúdios nas giras, em estúdios, em celulares e demais dispositivos, na tentativa de salvaguardar pontos, fazendo com que circulem em todas as giras do Terreiro.
A gente sabe que cada um canta de um jeito e que letra e melodia tendem a mudar com o passar do tempo, numa evidência da vitalidade da língua. Para evitar confusão, sambas e ogans, cantores e atabaqueiros de todas as engomas se reúnem periodicamente para trocar informações, enquanto mantêm constante contato via novas redes sociais.
Ao livro O Canto dos Orixás, que organizei em 2014, devem ser acrescidas as novas composições e retiradas as esquecidas. Por enquanto, deixemos isso de lado; a tarefa atual é colocar pontos novos no site. Iniciaremos com umas cinco ou seis músicas que estão sendo gravadas no estúdio do Helinho. Sei que vamos ter que retirar uma ou outra gravação antiga, pois diante da melhora tecnológica algumas captações de atabaque e voz deixam a desejar. Tomara que algumas em que canto resistam, pois hoje, ao ouvi-las novamente, sinto muita saudade.
Há alguns anos Pai Fernando mostrava orgulho pelo número de acessos que os pontos cantados obtinham: vinham logo depois da imbatível coluna Minha Opinião, por ele redigida semanalmente. Descobri o resultado da saudável disputa quando viajei com um grupo do Terreiro para Rio de Janeiro e Bahia, lugares onde nossas canções eram super conhecidas.
Numa evidência da inestimável sintonia com o pai, Mãe Lucília, ao instruir a engoma sobre as novas gravações, repetiu, sem saber, a última diretriz que dele recebi. Ao ver a compilação feita para o livro, Pai Fernando se preocupou com o fato de que muitos pontos de linha tinham migrado para individuais. Hoje Mãe Lucília quer fortalecer as falanges, chamar as tribos, e pede à Engoma que grave mais pontos de linha. Acostumada que estou com os estudos de processos educacionais e socialidades, me alegro ao perceber que trabalhamos em consonância com as mais urgentes necessidades planetárias: reaprender a viver em conjunto e a trabalhar coletivamente.

Cristina Mendes

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