Permissão para Morrer
O item 284 do Livro dos Espíritos – EVOCAÇÃO DE PESSOAS VIVAS – é bastante objetivo, sobretudo na questão 38 que diz assim:
-“Pode-se evocar o espírito de uma pessoa viva?
Sim, uma vez que se pode evocar um espírito encarnado. O Espírito de um vivo pode também, nesses momentos de liberdade, se apresentar sem ser evocado; isso depende de sua simpatia pelas pessoas com as quais se comunica.”
Estamos em 2002. Aparentemente meu Pai está tendo um derrame. Decidimos, eu e meu irmão, levá-lo imediatamente ao hospital, pois parece que a situação é grave. Chegando ao pronto socorro fomos rapidamente atendidos e o médico, após um exame clínico tradicional me chama de lado e decreta:
– Vamos interná-lo na UTI. Ele está tendo um AVC.
Quase inacreditável como em poucos segundos e com algumas palavras a vida muda. Daquele momento em diante minha situação de vida jamais seria a mesma. Acostumado a ver meu Pai todos os dias, deixa-lo sozinho na UTI de um hospital era algo difícil de assimilar. Mas a realidade era esta e não havia tempo a perder. Chamo meu velho e transmito a decisão médica.
– Pai, você está tendo um AVC, um derrame e o médico vai te internar já. Não vai ser fácil. Você vai direto para a UTI.
Ele olha para mim, serenidade estampada na face e diz:
– Será que precisa?
– Pai, é melhor. Serão poucos dias e logo você vai para casa.
E lá vai ele numa cadeira de rodas sendo conduzido pelo simpático e falante enfermeiro, percorrendo aquele longo corredor ficando cada vez mais longe e menor até desaparecer por completo lá na frente quando virou para a esquerda.
Esta cena me fez lembrar do primeiro dia de aula de um dos meus filhos, o Fernando, aos três anos de idade. Impecavelmente vestido em seu uniforme azul e branco, lancheira azul cruzada no peito, mãos dadas com a mãe e subindo a rua a caminho da escola. A escolinha era na mesma rua de nossa casa a apenas uns cem metros de distância. Fiquei na frente de casa olhando ambos, mãe e filho de mãos dadas, numa conversa animada caminhando pela calçada da rua magnificamente arborizada e a cada passo ficando mais longe. Depois de um tempo só se via um pontinho azul. Era o Fernandinho em sua primeira aventura fora de casa. Poucos minutos depois minha mulher retorna, olhos rasos d’água porque ela imaginou que o seu primeiro filho entraria em pranto desesperado como tantas outras crianças na porta da escola no primeiro dia de aula. Mas para seu espanto e até um certo desapontamento, pois para ela chorar naquele momento seria uma demonstração de amor por parte do filho, com o Fernandinho não foi assim. Ele disse:
– Tchau Mãe. E entrou sem olhar para trás.
E agora lá estava meu Pai virando a curva do corredor. Então disse para mim mesmo:
– Tchau Pai, até breve.
Três dias se passaram sem que pudéssemos visitá-lo. No quarto dia, de plantão na porta da UTI, o médico permite então uma visita, mas avisa:
– Ele está parcialmente sedado. Quinze minutos no máximo.
Sentado na cadeira em frente a porta da sala de espera aguardava a chamada para a ansiosa visita. Depois de um tempo, que nem foi tão longo, mas que naquela circunstância parecia a eternidade, abre-se a porta da UTI e uma mulher numa cadeira de rodas vem saindo sendo levada por uma enfermeira. Sem cabelos, olheiras profundas, olhar abatido, mãos envelhecidas lá vem ela em minha direção. Não podia ser diferente afinal eu esperava bem na frente da porta, mas aquela mulher pareceu-me conhecida. Quem seria ela?
– Oi Caco, tubo bem? – disse ela.
A voz revelou sua identidade. Era a Carmen Silvia. Sim, a Carmem Silvia fiel companheira do Terreiro, estava ali na minha frente, em sua luta prolongada pela vida. Eu sabia que ela estava com câncer, mas encontrá-la ali na porta da UTI para mim foi um espanto. Confuso, perguntei:
– Carmem, o que você faz aqui? – ingenuamente pensando que ela poderia estar visitando algum parente ou amigo ou inconscientemente negando a possibilidade da morte de tão estimada companheira. Então ela respondeu:
– Esta tem sido a minha vida nos últimos meses. Do quarto para a UTI, da UTI para o quarto, do quarto para as máquinas, das máquinas para a UTI e assim sempre. Não estou aguentando mais.
Contei a ela que meu Pai tinha tido um AVC e estava ali internado no mesmo local. Mais tarde fiquei sabendo que ambos, Papai e Carmem estavam em camas lado a lado e isto de certa forma me confortou um pouco, afinal o Pai Joaquim cuidava da Carmem e o Pai Maneco cuidava do meu Pai, o também Manoel.
O tempo passou e treze dias após sua internação Papai estava de volta em casa. Já não era mais o mesmo. Com várias sequelas deixadas pela doença, precisaria de muita fisioterapia para melhorar um pouco. Já a Carmem, a Carmem não. Continuaria naquele hospital sabe-se lá por quanto tempo em sua luta incansável pela vida.
Passaram-se dois meses. São oito horas da noite e a gira já vai começar. Tocam os adejás e inicia-se o Hino de Umbanda:
Refletiu a Luz Divina
Com todo seu esplendor
Vem do Reino de Oxalá
Onde há paz e amor
…
Lindo, encorajador, estimulante da vontade de praticar a Umbanda. É neste momento que o Reino de Oxalá se materializa na Terra, no Terreiro. Nesta hora não existe orgulho, vaidade, ambição, egoísmo, nada. Só a vontade de ver a Luz Divina. A corrente se forma em torno do terreiro, garbosa, alva, brilhante como sempre. Pai Fernando em pé na frente do conga, expressão séria, mas feliz, com certeza muito feliz. Termina o Hino. É hora da Grande Luz. Antigamente, quando a Carmem Silvia estava bem de saúde e mesmo quando ela já estava doente, mas podia vir ao Terreiro era ela quem fazia o solo deste ponto maravilhoso.
Existe até gente grande
Com medo da escuridão
Também existem pessoas
Querendo uma explicação
Oxossi Orixá das Matas
É o mesmo São Sebastião
Iemanjá é a Nossa Senhora da Conceição
Sete estrofes cantadas pela Carmem e a corrente repetia em uníssono o refrão:
Iemanja é a Nossa Senhora da Conceição
Se o Hino de Umbanda é para o encorajamento da corrente, a Grande Luz é para a harmonização do grupo e, na voz da Carmem Sílvia, ficava perfeito. Seu timbre de voz era o ideal para criar uma atmosfera de paz e harmonia.
Neste dia, nesta hora a Cris, então capitã e hoje Mãe Pequena sente algo diferente. Aproxima-se do Pai Fernando e diz:
– Sr. Fernando, estou sentindo a presença da Carmem Silvia.
O Pai Fernando assumiu um semblante não muito amigável, afinal ele não gostava da interferência de espíritos em momentos impróprios na gira. Então ele diz:
– MAS AGORA?
A Cris gesticula, balança a cabeça afirmativamente e o Pai Fernando, meio contrariado autoriza:
– Deixa vir, então.
Imediatamente a Cris incorpora a Carmem, assumindo todo o seu gestual e principalmente sua inconfundível expressão facial. Sua primeira frase é um apelo inusitado:
– Fernando, me deixe morrer?
O sábio e enérgico Pai Fernando revida em tom firme:
– EU NÃO ESTOU SEGURANDO VOCÊ NA TERRA!!
– Posso ir então? – pergunta a abnegada Carmem Silvia.
– É claro que pode. Eu não tenho o poder de manter um espírito encarnado.
Ao ouvir as respostas ela abre aquele característico sorriso suave, abraça o Sr. Fernando e mais algumas pessoas da hierarquia inclusive a mim e se despede.
O trabalho seguiu normalmente e no dia seguinte a Marilu que também estava na gira e acompanhou tudo, foi visitar a Carmem Silvia no hospital, obviamente curiosa para saber se ela lembrava-se do acontecido. Ao interpela-la sobre isso ela afirmou não lembrar-se de nada.
A respeito disso a questão 284 do Livro dos Espíritos esclarece:
“Uma pessoa viva, evocada, disso tem consciência no seu despertar?
Não; Vós o sois vós mesmos mais frequentemente do que pensais. Somente o espírito sabe e pode algumas vezes, deixar do fato, uma vaga impressão, como num sonho.”
Acho que a Marilu ficou decepcionada, mas a Carmem foi honesta. Não lembrava de nada. Dois dias depois, nossa amiga leal, médium vidente de verdade e cavalo do Pai Joaquim desencarna, pondo fim a um sofrimento imenso e com a certeza de ter lutado pela vida com coragem e determinação. Certamente ela levou a risca a palavras do Sr. Tranca-Ruas que ouvira numa conversa que tivera com ele numa gira de Quimbanda:
– Desejar morrer é a arma do covarde. – disse o Exu .
A Carmem ouviu a lição recebida do poderoso Exu Tranca Ruas das Almas e conduziu o final de sua vida na terra alicerçada por aquelas palavras. Eu estava lá, vi e ouvi: o Sr. Fernando sentado num banquinho de palha incorporado com o Sr. Tranca-Ruas usando aquela magnifica capa azul e a Carmem sentada em sua frente manifestando seu desejo de desencarnar por achar insuportável o sofrimento e ouvindo como resposta palavras fortes e incentivadoras que calaram fundo em sua alma.
Sua fé era imensa e a maior demonstração foi o fato dela ter vindo ao Terreiro do Pai Maneco, falar com o Pai Fernando e pedir permissão para morrer certamente pensando estar também pedindo permissão ao Sr. Tranca-Ruas. Não acompanhei a vida da Carmem Silvia, mas acompanhei o seu desencarne. Fico feliz por ter estado ali naquele momento e presenciado a manifestação de um espírito ainda encarnado, numa demonstração sem igual de respeito, amor e fé. Ela não foi evocada. Veio porque quis. Manifestou-se naquele momento em que cantávamos “A Grande Luz” porque era nesta hora que nossos pensamentos estavam voltados para ela como se a ouvíssemos cantar. É esta lembrança que vou levar para sempre. Por isso que ela é saudada hoje no Terreiro do Pai Maneco como Mãe Carmem Silvia de Ogum.
Pai Caco de Xango
Em 27/04/2014
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