Sentado no computador, criei uma tecla imaginária: “deletar o que os outros dizem”. Não hesitei, acionando este adequado recurso. Só vou depender de mim, e da minha cumplicidade com os espíritos.
Resolvi escrever um livro sobre a minha religião, a umbanda. Mas para quem o dirijo? Para os entendidos, aos neófitos, ou aos iniciantes? Aos membros da minha corrente da Sociedade Espiritualista Edmundo Rodrigues Ferro – o Terreiro do Pai Maneco, ou aos espiritualistas. A quem? Como é difícil escrever um livro, considerando que no prefácio já estou em dúvida. Resolvi: vou escrever para mim, e para quem quiser ler, seja ele quem for. O tema já escolhi, só falta o estilo. Devo falar dos orixás, das linhas, das correspondências, dos números de espíritos existentes, do bem e do mal, do grande engano do exu sórdido, ou do exu bom e correto que conheço? Vou descrever a imaginária e complicada umbanda esotérica, ou a umbanda que pratico e amo? O que devo escrever sobre as correspondências entre as várias falanges, das linhas da umbanda pregadas pelos autores, a do orixá maior e orixá menor, falanges superiores e sub-falanges? Ou devo me limitar aos fundamentos da umbanda simples praticada pelo povo? Vou me dirigir à elite ou à massa? Não posso me contradizer, se vou escrever para mim, tenho que me dirigir a quem pertenço e gosto: às massas.
Sentado no computador, criei uma tecla imaginária: “deletar o que os outros dizem”. Não hesitei, acionando este adequado recurso. Só vou depender de mim, e da minha cumplicidade com os espíritos.
Conto minha vida espiritual, do meu jeito, as coisas tristes e as alegres, falo muito das entidades com quem trabalho e por isso as conheço. Suas histórias, comportamentos e atuações são iguais às de todas as outras entidades. Quando eu mencionar o nome do Caboclo Akuan, entendam qualquer caboclo dirigente de trabalho, e quando mencionar o do Pai Maneco, falo de todos os pretos-velho que trabalham na umbanda. Cada espírito que mencionar, troque o nome pelo de sua entidade, e tenha certeza, ele será igual.
Estou contando, desde minha infância, a passagem na linha kardecista, até ser feito pai-de-santo na umbanda. E conto com fidelidade os meus sentimentos e o que os espíritos me ensinaram.
Que Oxalá nos Abeçoe
Fernando M. Guimarães
- Prefácio
- Quem sou eu?
- Capitulo 1 - Tudo Começou
- Capítulo 2 - Início
- Capítulo 3 - Como perdi o medo
- Capítulo 4 - Grupo Kardecista
- Capítulo 5 - Reencarnação
- Capítulo 6 - Sonho
- Capítulo 7 - Sessão do Copo
- Capítulo 8 - Obsessão
- Capítulo 9 - Troca de Energia
- Capítulo 10 - Criando a Lógica
- Capítulo 11 - Nem tudo é magia
- Capítulo 12 - Transformação
- Capítulo 13 - A Umbanda
- Capítulo 14 - Se Deus me desse...
- Capítulo 15 - A dança
- Capítulo 16 - Diferenças
- Capítulo 17 - O espelho
- Capítulo 18 - Terceira Energia
- Capítulo 19 - Incorporações
- Capítulo 20 - O desencarne de meu pai de santo
- Capítulo 21 - Minha decisão
- Capítulo 22 - A fruta
- Capítulo 23 - Sou um Pai de Santo
- Capítulo 24 - Pai Joaquim e Cabocla Guaracira
- Capítulo 25 - De volta
- Capítulo 26 - Caboclo Akuan
- Capítulo 27 - Determinação foi a ordem
- Capítulo 28 - Anjo da Guarda
- Capítulo 29 - Consequencias do fanatismo
- Capítulo 30 - A Cigana Manon e o Caboclo Akuan
- Capítulo 31 - Evoluir pela ciência
- Capítulo 32 - Encaminhar os espíritos
- Capítulo 33 - Dúvidas dos Médiuns
- Capítulo 34 - Nome dos espíritos
- Capítulo 35 - Conversa com pai de santo
- Capítulo 36 - A fé da Carmem Silvia
- Capítulo 37 - Criando monstros
- Capítulo 38 - Machismo na Umbanda
- Capítulo 39 - Provas incontestáveis
- Capítulo 40 - Uma oferta ao espírito
- Capítulo 41 - Os animais tem alma?
- Capítulo 42 - Sinal da vela
- Capítulo 43 - Magia das velas
- Capítulo 44 - O angolano Pai Maneco
- Capítulo 45 - A dor não tem parâmetro
- Capítulo 46 - O Pai Maneco e o relógio
- Capítulo 47 - Energia pura
- Capítulo 48 - As crianças da Umbanda
- Capítulo 49 - Quimbanda
- Capítulo 50 - O nome Tranca Ruas
- Capítulo 51 - Um caso que não é para exu
- Capítulo 52 - Consultas do exus
- Capítulo 53 - Espírito não brinca
- Capítulo 54 - O Fonseca
- Capítulo 55 - O Monte dos drogados
- Capítulo 56 - O Terreiro
- Capítulo 57 - Encerramento
Redigir o prefácio de um livro gera imenso prazer ao mesmo tempo em que exige uma grande dose de responsabilidade.
Quando o assunto em pauta nos é familiar, esta tarefa é ainda mais árdua, pois não temos um olhar suficientemente neutro para uma abordagem objetiva. Nada , porém, é tão gratificante quanto compartilhar uma paixão e, lisonjeada, tento me colocar à altura de tal empreendimento.
Este livro nasceu de um grande amor pela religião escolhida; é um depoimento genuíno de Fernando Guimarães, cuja familiaridade com o mundo das letras vem da infância, e cujo apreço pela espiritualidade é amplamente reconhecido.
Grifos do Passado vem suprir uma lacuna, organizando os princípios seguidos no Terreiro do Pai Maneco de modo claro e inequívoco. Escrito numa linguagem coloquial e sem os excessos de didática que poderiam tornar a leitura enfadonha, o livro é formado por pequenos contos, numa seqüência dinâmica de experiências que envolvem, ensinam e, muitas vezes, divertem.
Devemos pontuar, entretanto, que a intencional facilidade da leitura, conduzida com sabedoria pelo autor, comporta conceitos filosóficos de uma profundidade ímpar. Ao leitor atento, que sonhou com um livro simples, porém profundo, que fale da necessidade da ousadia sem perder de vista a importância da disciplina, aqui está, finalmente, uma lição de vida: as histórias de Pai Fernando de Ogum, nosso querido Babalaô.
Cristina Mendes – Mãe Pequena do Terreiro do Pai Maneco
Como sempre faço, fiquei parado na frente do congá em busca de uma inspiração para dar início a mais uma gira de umbanda. É o momento da minha reflexão, em que limpo todas as minhas mazelas materiais.
Comecei pedindo perdão pelos meus erros do dia, quando me lembrei das palavras do Pai Maneco: “perdão não se pede, conquista-se…” Meu pensamento foi longe. Tenho tantos pecados. Será que um dia poderei merecer a alegria de ver conquistado o perdão de todos os meus erros?
O Terreiro de Umbanda Pai Maneco abriga mais de trezentos médiuns, além de reunir, em suas giras quatrocentas pessoas na assistência. Tem sede própria, arrojada construção e ótima localização. Eu sou o pai-de-santo, o dirigente, aquele que está sempre com a última palavra. A música é refinada, atraindo alguns músicos profissionais, o que torna nossas giras um encontro cultural. Vários pontos cantados nasceram dentro do terreiro. É grande, com bom conceito, e muitas pessoas vêm de longe só para serem atendidas com uma consulta. A casa tem rígidos princípios morais e filosóficos. Considero-me um pai-de-santo polêmico, com teorias inovadoras, às vezes contrárias à prática comum da umbanda, mas, paradoxalmente, sou preso à história. Não fujo da tradição da umbanda no Brasil. É a nossa religião, a única brasileira, oficializada por Zélio de Moraes em 1908 no Rio de Janeiro.
Não quero incorrer no erro de enterrar comigo a experiência de uma vida. Quando os jovens me pedem a indicação de livros que ensinam a umbanda, não sei o que dizer. As obras não são claras, e estão além da compreensão popular, talvez por não serem psicografadas, mas escritas dentro dos conceitos de cada autor, quase sempre divergentes. Não vou fugir à regra, mas estou convicto que meus conhecimentos foram transmitidos pelas entidades. Ouso me fantasiar de escritor, mas quando me for, terei deixado impressa minha história, aquela que norteia minha vida, com a ressalva de que hoje o que creio e ensino poderá amanhã ser modificado perante o surgimento de verdades mais verdadeiras.
Às vezes me pergunto: quem sou eu? Sou ainda aquele menino medroso, talvez o entusiasmado kardecista contra rituais, ou o já velho pai-de-santo, cheio de fé e experiência? Serei uma mistura de tudo? Joguei fora minha inocência, meus medos, minha arrogância, minha humildade, meu ódio ou meu amor? Gosto de modificar, por ser inovador, ou gosto de ser polêmico, para ser incomum? Sou bom, ou sou ruim? Afinal, quem sou eu? Ninguém pode saber, apenas eu mesmo: sou um velho cheio de juventude, uma pessoa alegre cheia de tristezas, uma mistura do bom e do ruim. Filtro o que ouço, para não me confundir, e olho tudo para aprender. Não julgo ninguém, e não ligo se me julgarem. A crítica ou o elogio não me afetam. Gosto de amar, mas não ligo se não me amarem. Eu sou um homem humilde e um vaidoso pai-de-santo, em busca da liberdade, a única coisa que ainda não conheço…
Rememoro minha infância, começo desta história.
A mediunidade é a sensibilidade de perceber e ouvir os espíritos. Quem a desenvolve, serve de intermediário aos mundos paralelos, o físico e o espiritual.
Todos nós a possuímos em maior ou menor intensidade. Sua manifestação difere bastante, tendo os médiuns a característica da intuição, da audição, da vidência, da clarividência e a capacidade de incorporar espíritos e outras tantas formas que impressionam nossos sentidos. Ela não tem data para se manifestar, dependendo de nossas observações e dedicação ao seu desenvolvimento. No meu caso, manifestou-se cedo, embora ninguém tivesse percebido. Quando comecei a balbuciar minhas primeiras palavras, segundo contam meus familiares, recusava o nome de batismo, para adotar o de Woisler Kotichka. Coincidentemente, o espírito cigano com o qual trabalho, quando deu seu nome, disse chamar-se Woisler, Mas se é Kotichka, não sei.
Tinha uns três anos de idade, ou talvez menos. Saí pela porta dos fundos que dava para o antigo quintal e, sentada em cima do muro, olhando-me e esboçando um largo sorriso, estava uma menina, balançando infantilmente suas pernas, olhando-me fixamente. Suas roupas não eram daquela época, com meia-calça, chocavam pelas enormes listas pretas e brancas. O vestido parecia de veludo e seus louros cabelos eram cacheados, no estilo da pintura clássica do século passado. Entrei em desespero e, chorando, corri para dentro da casa. Talvez esta seja a mais remota imagem que me recordo, de tanto que me impressionou. Nada ficou registrado, exceto na minha apavorada memória. Foi ali, exatamente ali, que o medo do sobrenatural começou a tomar conta de mim. E não havia como modificá-lo, já que fui perseguido por ele em toda minha infância. Nunca me acovardei diante de nada e de ninguém. Mas do espirito? Ele era alguém? Quando tinha onze anos meu pai morreu. Era tradição na época, no momento de fechar o caixão, os filhos beijarem sua face. Eu, escondido, neguei o ósculo. Aquele homem, no pomposo caixão, não era meu pai. Era um defunto, gelado e assustador. Por que fazem isso com as crianças? Cresci atormentado com este remorso.
No fundo da minha casa havia uma construção de madeira, de dois andares, e um dos quartos era o lugar onde nós, crianças, brincávamos e tínhamos nossas coisas. Improvisei uma farmácia de mentira, cheia de bonitos vidros de perfumes. Brincava, junto com um amigo, neste quarto, quando, repentinamente ele estremeceu por inteiro. Meu amigo, o Levorato, era ruivo e sardento. Assustado, olhei para ele. Pela primeira vez o vi sem as sardas. Lívido, parecia petrificado. Foi quando os vidros começaram a voar contra as paredes. Saímos em disparada. Fiquei meses sem entrar no maldito e assombrado quarto. O medo, outra vez o medo, me aterrorizava.
Apesar de ter apenas treze anos, era um dos sócios de uma quase falida revista especializada em turfe. Os cavalos me fascinavam, e o ambiente das corridas era onde convivia, entre os treinadores, jóqueis e cavalariços. Como toda revista vive de propaganda, uma página nobre divulgava a existência de chique casa de prazeres, chamada “Star”, nome fantasia por nós escolhido, para encobrir o famoso bordel da época. Era assim: tudo farra e nenhum compromisso sério. Meu sócio e eu escrevíamos, cuidávamos da redação, ajudávamos na paginação e impressão, além de angariarmos os anúncios e ainda cobrá-los. Claro, bordel só abre à noite. E na data predeterminada para o pagamento do anúncio, logo que chegamos à casa, percebi movimento de policiais dando as famosas batidas. Pela minha idade achei prudente não me expor aos policiais e permaneci dentro do carro. Ouvi alguém bater no vidro da janela. Voltando o olhar, vi uma velha, cabelos brancos e roupas esquisitas, onde dominava a cor verde garrafa. Estranhei a figura, e quando me preparava para descer o vidro, minha atenção foi desviada para grande movimentação das mulheres que trabalhavam na casa, com desmaios, gritos e correrias. Não entendendo nada, quis atender a estranha velha, mas ela havia desaparecido. Ofegante, meu sócio entrou no carro e partiu rapidamente, enquanto me contava assustado a causa do reboliço das mundanas: é que tinha aparecido o espírito da velha de verde, que, segundo disse a dona do lupanar, foi mãe de uma daquelas mulheres e assombrava a casa. Bem, pensei, assombrou a casa e a mim. O medo não me largava. Jurei nunca mais pisar naquele lugar, nem para cobrar o anúncio.
Assim foi minha adolescência, cheia de barulhos estranhos, visões e sonhos assustadores. O medo continuava meu parceiro, muito embora eu corresse várias benzedeiras e sortistas, na tentativa de afastar esse terrível inimigo, o medo. Procurei fazer em mim mesmo uma lavagem cerebral: espírito não existe, e pronto! É tudo bobagem!
Com os cabelos cheios de brilhantina, bem penteado e lambido, terno impecável e gravata borboleta, tomando um uísque em casa noturna, embora com apenas quinze anos de idade, discutia sobre espíritos com o Dilson, um amigo que fazia parte de um centro espírita. Enquanto ele ardorosamente tentava me convencer da existência do sobrenatural, eu, em troca, fazia caçoada e o chamava de fanático louco.
– Dilson, vamos combinar, quando um de nós morrer, um vem provar para o outro, que o espírito realmente sobrevive à morte.
– Não – retrucou o Dilson. Chegando em casa hoje mesmo, vou fazer uma sessão e pedir para que algum espírito vá te provar que ele existe.
Pensei um pouco, e o fantasma do medo voltou.
– Te aviso – respondi seco e firme, se aparecer algum espírito na minha casa, suma da cidade porque vou te cobrir de pau. Paguei a conta e fui embora, bastante contrariado.
A fatalidade é madrasta. Meses depois, o Dilson, em um acidente automobilístico, perdeu sua jovem vida. Confesso que, durante muito tempo, dormi de luz acesa e pedia a Deus fazer o Dilson esquecer nosso trato.
A igreja era lugar onde ia namorar a Yedda, com quem me casei, e até hoje vivo, numa invejável parceria de amor e respeito. Todos rezavam e eu apenas imitava seus gestos, por absoluto desconhecimento do ritual católico, enquanto esperava, ansioso, as batidas do sininho do sacristão anunciando o final da missa. Mas num daqueles domingos um padre novo na igreja fez um sermão que me fascinou. Ele dizia que o espiritismo era uma mentira. O espírito jamais poderia se manifestar na matéria. E contava histórias, provando ser tudo uma fantasia do homem e o que parecia ser sobrenatural, sempre tinha uma explicação lógica e bem natural. Fiquei seu fã. Já queria ir a missa só para ouvir o padre falar das bobagens do espiritismo. Fiquei entusiasmado. Estava perdendo o medo. Foi quando, numa madrugada, não sei porque, acordei e vi no canto do meu quarto a minha avó, em pé, com um ramo de flores no braço, sorrindo docemente para mim. Estava diferente da última vez que a vi, no caixão, pronta para ser enterrada. Entrei em desespero. Escondi-me embaixo das cobertas, e por ser noite quente, suava bastante. Às vezes arriscava olhar. E a velha ainda estava lá, sorrindo, sem eu saber do que. Quando percebi a luz do sol, arrisquei mais um olhar. Ela tinha ido embora. Quis acreditar ter sido um pesadelo. No dia seguinte, encontrei a Dag, uma tia muito querida, espírita convicta e freqüentadora de sessões mediúnicas. Falou, cheia de mistério
– Fernando, tenho um recado. Tua avó, na sessão, disse que ia aparecer para você.
Um frio percorreu minha espinha, o coração bateu mais depressa e o medo voltou com toda força. Era coincidência demais. Resolvi me entregar. Passei a ser menos radical. Tive um início na religião, admitindo existir o espírito e sua manifestação na matéria. Confessei minha disposição à Dag. Ela recomendou eu ler alguns livros espíritas, principalmente os básicos do Allan Kardec. Expliquei a ela que eu era fã dos livros policiais do Shell Scott, e que não iria ler nenhum livro espírita. – A experiência será o meu aprendizado, caçoei. De fato, à noite, como de hábito, li alguns capítulos do meu herói. De manhã, ao acordar, o livro tinha sumido da mesinha de cabeceira. Fiquei intrigado, mas teimoso como sou, comprei o mesmo livro. Li à noite. Repetiu-se o fenômeno. Desapareceu o livro, pela segunda vez. Quase fui à loucura, mas nenhum espírito, ou seja lá o que fosse, me faria desistir de ler o que eu queria. Comprei o terceiro, e pela terceira vez, inexplicavelmente, ele desapareceu. Achei demais. Entreguei-me e comprei o Livro dos Espíritos. Dias depois, quando terminei a leitura do famoso livro do mestre Allan Kardec, ao abrir a gaveta do armário onde guardava minhas camisas, ritual que fazia diariamente, em cima das roupas estavam os três livros misteriosamente desaparecidos.
A insistência dos fenômenos na minha vida cotidiana, fez-me tomar uma decisão: tornei-me adepto do espiritismo.
Aceitando o espiritismo como verdade, corria onde podia, atrás do fenômeno. Queria ver, sentir e ter contato com as entidades. Passei a prestar atenção nas mínimas ocorrências que pudessem ser imputáveis às forças não esclarecidas pela ciência comum.
A telepatia era minha prática preferida. Gostava de captar o pensamento das pessoas, fosse através do jogo de cartas até a imposição de minha vontade sobre as pessoas através do pensamento. Às vezes desejava, com toda a vontade, que determinada pessoa fizesse algo, como fechar uma janela, e isto acontecia. Percebi ser uma verdade incontestável o domínio do pensamento, projetando um desejo sobre outra pessoa. Divertia-me, mostrando aos outros, na sala escura, sair faísca quando passava o pente varias vezes no cabelo e o encostava na minha mão. Daí a freqüentar rodas e reuniões de paranormais, foi um passo. Meu vizinho, o Waldemar Foester, era um homem de idade madura e reconhecidamente um médium receptivo. Ele me convidou para ir assisti em sua casa uma sessão espírita. Estava excitado, afinal ia participar, pela primeira vez, de uma reunião com os mortos. Após as preparações e concentrações, ele incorporou, e andando como um velhinho, emitindo alguns sons estranhos, sentou-se no meio da sala. As pessoas o tratavam com muito respeito e carinho. Uma senhora pediu ao espírito incorporado ajuda para ela alugar uma casa de sua propriedade. Eu, lá atrás, observava atentamente. A entidade pediu a chave da casa que ela queria alugar, e a benzeu com a ponta dos velhos dedos do médium.
– Vai dar tudo certo, minha filha. – disse à ansiosa mulher.
Achei estranho aquele pedido. Alugar uma casa? É para isso que descem as entidades? Será esta a tão falada caridade espiritual?
Enquanto remoía meus pensamentos, fui interpelado pelo espírito:
-Meu filho, você está vendo coisas estranhas. Mas saiba, meu filho, que cada um viaja como pode. Uns vão andando a pé, outros com essas máquinas de vocês, outros de canoa. Mas no fim, está o lugar onde todos devem chegar.
Achei bonita a forma carinhosa do espírito conversar comigo, mas nada acrescentou ao meu julgamento. Isto só iria entender anos depois.
– O véio vai imbora, meus filhos, e deseja a tudo mecês muito amor e paz.
-Muito obrigado, Pai Joaquim, disse a esposa do Waldemar.
Pai Joaquim? Não deveria ser irmão Joaquim, como todos dizem?- pensava comigo.
E foi assim que assisti a primeira incorporação de um espírito em um médium. Fiquei com medo, mas já não era tanto. Afinal já tinha vinte e um anos de idade, era um homem casado, pai de um robusto menino.
Já conhecia o Hercilio Maes, um extraordinário médium, dotado de uma simpatia irradiante e convicto das coisas que ensinava, tanto que escreveu várias obras espíritas e psicografadas pelo espírito do Mestre Ramatis. Ele pregava a existência de vida no planeta Marte, matéria de uma de suas obras, muito apreciada pelo público do ramo. Ele dizia que em Marte a vida era diferente da nossa. Praticamente outra dimensão. Estou aguardando ainda as pesquisas espaciais para conferir, muito embora não tenha isso a mínima importância na minha vida pessoal. O Hercilio receitava homeopatia através da radiestesia. Interessei-me pelo assunto. Quando podia, andava com uma forquilha de aroeira ou pessegueiro na mão, descobrindo lençóis de água. E descobria. Achava ótimo. Passei a revelar o sexo dos bebês, ainda na barriga das mães. O pólo negativo e o positivo eram sinalizados através do pêndulo por mim improvisado com a minha aliança de ouro amarrada em um fio de cabelo. Já há alguns anos deixei de fazer os testes por três fortes motivos: a modernidade da ecografia, que antecipa o sexo dos fetos, perdi a aliança e não tenho mais cabelos. Mas as antigas experiências me levaram a crer nesta positiva ciência dos pêndulos.
Ambos, tanto o Waldemar Foester como o Hercilio Maes, foram admiráveis mestres que me iniciaram no espiritismo. Fiquei pronto para participar ativamente das sessões espíritas. Entrei no grupo espírita dirigido pelo Mauri Rodrigues, fundador da Sociedade Brasileira de Estudos Espíritas, até hoje seu presidente. Considero o Mauri o médium de efeitos físicos mais extraordinário que conheci. Fazia transfigurações, moldagem de mãos em parafina derretida e materializações dos espíritos. Transfiguração era um tipo de trabalho muito interessante. O Mauri ficava na frente da assistência incorporando vários espíritos, quase sempre familiares dos presentes. Numa delas, um dos espíritos manifestantes incorporou no Mauri e falou:
-Fernando, como vai? Disse, a entidade, demonstrando muita calma e paz interior.
Levei um susto. O medo ainda era meu inseparável companheiro. Fiquei ansioso, aguardando a continuidade da conversação.
-Sou eu, Fernando, o Dilson! vim cumprir o nosso combinado. O espírito existe! – informou.
Não deu para segurar. Fiquei emocionado, admirado, empolgado, sei lá o que mais. Indelicada, mas amorosamente, desabafei:
– Ainda bem que minhas preces foram atendidas e você demorou para fazer isso…
O fenômeno da materialização do espírito, é a maior prova da sua existência. É quando ele toma forma densa, tornando-se matéria e, consequentemente, visível a qualquer um, independente de vidência mediúnica.
Aceitando o espiritismo como verdade, corria onde podia, atrás do fenômeno. Queria ver, sentir e ter contato com as entidades. Passei a prestar atenção nas mínimas ocorrências que pudessem ser imputáveis às forças não esclarecidas pela ciência comum. O fenômeno da materialização do espírito, é a maior prova da sua existência. É quando ele toma forma densa, tornando-se matéria e, consequentemente, visível a qualquer um, independente de vidência mediúnica. Interessante que ela pode ser parcial ou total, ou seja: do corpo inteiro, ou apenas um rosto ou outro membro qualquer. O espírito se materializa, através do ectoplasma do médium. A lenda do lençol que cobre o fantasma nasceu com a materialização do rosto do espírito, pois ele – o rosto, fica envolvido na densidade do ectoplasma, semelhante a um lençol branco.
Poucos são os paranormais com esta faculdade de produzir ectoplasma suficiente para transformar uma energia espiritual em matéria. O Maury Rodrigues da Cruz é um deles. Assisti vários trabalhos deste tipo realizados por esse diferenciado médium e, embora impressionantes, eles foram maravilhosos e deixaram marcas inesquecíveis na minha jornada dentro do espiritismo, principalmente um deles que elegi como o mais terrível e assustador. Trabalhava normalmente nos meus afazeres profissionais, quando recebi a visita do Maury. Seu rosto estava vermelho e seus lábios inchados, cheios de aftas. Pediu-me para ajudá-lo a fazer um trabalho imediatamente, o que acalmaria as inconveniências causadas pela sua mediunidade. Sua doença, segundo explicou, era o excesso de ectoplasma que acumulava em seu corpo, o qual deveria ser expelido por um trabalho de materialização. Fomos ao centro espírita. Era uma casa de madeira, com dois andares. Na parte da frente ficava um auditório, onde estava a cabina de materialização, uma confortável poltrona, cercada por grossa cortina de veludo escuro. Durante um trabalho de materialização, o médium doador do ectoplasma deve ficar no escuro, sem nenhuma luz. Após o auditório havia outra sala, uma ante-sala e finalmente, na parte dos fundos, o quarto do Maury. Foi nele que iniciamos o trabalho. Seu quarto era simples, com uma cama, cômodo e um guarda-roupas. Fechamos todas as janelas e as vedamos com um pano preto para haver absoluta escuridão. Fiquei meio desconfiado, pois nunca tinha participado tão diretamente de um trabalho de efeitos físicos. O que amparava meu medo era que o Maury estava comigo. Com a luz acesa incorporou o espírito do irmão Antonio Grim, entidade diretora dos trabalhos de efeitos físicos.
-Salve, irmão Fernando – cumprimentou, carinhosamente. Não tenha medo. Vou levar o médium para a cabina da materializações. Sente-se na cama, e fique aguardando. Determinou.
Explicando a necessidade da escuridão absoluta para esse tipo de trabalho, apagou a luz, fechou a porta e foi para o auditório. Ouvi os seus passos caminhando pesadamente no piso levando o Maury. Fiquei nervoso pois estava sozinho no quarto escuro. Valha-me Jesus! O que estou fazendo aqui? O cara é louco! O que pensa que sou? Meus pensamentos estavam direcionados para esta linha na tentativa talvez de esconder o medo. Foi quando ouvi um tipo de pequena explosão, exalando um cheiro forte e azedo. Ouvi alguém correr pelo quarto de um lado para outro. Fiquei apavorado. Rezava. Não em pensamento. Em voz alta mesmo. Pai Nosso… e repetia: Jesus, socorro! Um compartimento no segundo andar de uma casa de madeira, com assoalho de madeira e paredes também de madeira, facilita para se ouvir o espírito materializado, correndo e se atirando, ora numa parede, ora noutra, e se dando ao luxo ainda, quando passava pela minha frente, de assoprar meu rosto e bater em minha cabeça. Foi uma experiência assustadora. De repente, aquela típica alma do outro mundo, com massa corpórea, parou na minha frente. Senti seu bafo, sei lá de quantos anos. Sentou-se ao meu lado na cama. Já que Jesus não me ouvia, berrei: Antonio Grim, venha depressa! Foi um alívio. O mesmo barulho que ouvi no começo, repetiu-se e o quarto ficou silencioso. O irmão Antonio Grim, voltando do cômodo onde foi no início, abriu a porta , acendeu a luz, olhou-me e perguntou:
-Irmão Fernando, ficou com medo?
Nunca fui grosseiro com as entidades. Devotava, como ainda devoto, o meu maior respeito por todas elas. Mas não naquele dia. Respondi grosseiramente:
– O que o senhor acha?
Com a mesma paz que chegou, esboçando leve sorriso, despediu-se. Voltou o Maury sobre o qual descarreguei toda minha ira e custei a perceber que já não tinha as aftas.
Naquele dia, perdi totalmente o medo dos espíritos.
Um novo grupo de trabalho estava se formando, e eu fazia parte dos planos dos fundadores, todos meus amigos.
Apesar do meu temperamento de não hesitar, sempre atraído pelo desafio de me confrontar com o desconhecido, fiquei em dúvida para dar resposta ao convite. Minha vontade era ser um espiritualista independente, afastado de qualquer compromisso religioso.
Recolhido em minha sala, sozinho e pensativo, senti a presença de uma entidade amiga. Busquei o contato através da psicografia. Com lápis e papel na mesa, deixei minha mão correr. Foi uma mensagem trivial: “entre tantas coisas, só Deus é Verdade”. Achei o texto muito simples, e como aprendi a respeitar os sinais dos espíritos, fui buscar o que havia por trás dela, e descobri que todos nós sabemos e dizemos que todas as religiões são boas. Inverti o sentido desta frase: todas as religiões são imperfeitas, por chegarem a nós através da palavra de um encarnado, e nunca pela voz direta da Divindade. Tornou-se cristalina a mensagem: todos nós temos necessidade de uma religião, aqui no mundo material, com a consciência de serem todas imperfeitas, não cabendo a nenhuma o rótulo da Verdade. Cada um de nós deve se encaixar naquela que mais lhe agrada, tomando o cuidado com as que fogem dos princípios do amor e da caridade. Não tinha mais dúvidas que iria continuar trilhando uma religião: a espírita.
Juntei-me ao novo grupo, no qual fiquei vinte e cinco anos. O dedicado estudo do espiritismo e a interação teórica e prática com personalidades reconhecidamente cultas da religião trouxeram-me um bom conhecimento do mundo espiritual, desde a simples manifestação do espírito incorporado, até o entendimento claro da fonte e a causa de todos os desequilíbrios da mediunidade: a aura.
Meu conhecimento, pela minha própria vontade, não era profundo e técnico; era mais voltado para o sentido prático. Não me interessava decorar os nomes, cores e funções dos chacras. Para mim, era suficiente saber que a aura é o conjunto formado pela matéria, o duplo etéreo, o perispírito e o espírito, e quando, como e onde ele pode prejudicar ou beneficiar a mediunidade. Acho mais importante que conhecer a parte científica de uma flor, saber apreciar a sua beleza e sentir seu perfume.
Enquanto estive trabalhando com esse grupo, participei de interessantes trabalhos, onde pude colher esclarecimentos que hoje formam a minha base como médium integrante da umbanda.
Tenho visto os umbandistas, sequiosos de conhecimentos de outras religiões, buscarem novos aprendizados em cultos e ciências diferentes, como a técnica da projeção astral, a cabala, a astrologia, a regressão das vidas passadas e outras tantas existentes por aí, mas poucos na linha kardecista. Os praticantes da umbanda, como eu e outros tantos, que tiveram uma passagem no espiritismo tradicional desta linha, sabem de sua importância no desenvolvimento mediúnico nos terreiros da umbanda. A linha kardecista desperta a sensibilidade íntima, e a da umbanda exercita e ensina a incorporação plena e a manipulação dos elementos naturais. O cavalo da umbanda é treinado para incorporar o espírito enquanto o médium kardecista desperta o seu interior espiritual.
Na passagem kardecista, assisti a trabalhos interessantes.
Forma pensamento materializada
Um rapaz, de uns vinte anos, procurou nosso centro, O que o afligia era uma rinite crônica, sem solução da medicina terrena. Percebi, intuitivamente, que em seu nariz estava localizada uma massa, parecendo um osso. Através de passes, e terminada a limpeza de seu perispirito, essa massa foi se diluindo até se transformar em uma espécie de liquido, desaparecendo completamente.
Esta é a típica forma do pensamento materializado no perispírito, originada e criada pelo próprio paciente, através de pensamentos negativos, não havendo nenhuma atuação de espíritos obsessores. Não devemos esquecer que o semelhante atrai o semelhante, ou seja, um pensamento negativo, atrai energias negativas.
Energia interrompida
Uma moça vivia tensa, com arrepios e mal estar permanente. Pedi para ver a sola de seus sapatos. Eram de borracha, um material sabidamente isolante energético, tendo ela me afirmado usar sempre este tipo de calçado. Recomendei-lhe andar, sempre que possível, descalça, na relva úmida, e abraçar uma árvore, isto para impregnar seu perispírito com as energias naturais, renovando as cargas acumuladas e que não puderam ser descarregadas pelo isolamento da borracha. Foi surpreendente o resultado, tendo sarado de todo seu mal estar. No caso, as energias circulavam em seu perispirito, sem renovação.
Aura suja com sangue
Um homem acometido por uma forte anemia, apesar de estar tendo toda a assistência médica, não apresentava nenhum tipo de reação. Ao contrário, seu estado estava se agravando. Ele foi informado por outros médiuns que estava sendo obsidiado por um espírito maligno. Intuitivamente percebemos que o seu perispírito estava com uma cor avermelhada, resultado de um anterior e mal sucedido trabalho de magia, feito com sangue de animal, previamente sacrificado para esse fim. Acontecia o seguinte: a energia do sangue foi sugada por seu perispírito que, por sua vez, sugava toda energia de seu corpo físico. Como os passes magnéticos não surtiram os efeitos que prevíamos, mudamos o tratamento: um médium estendia seus dedos contra os do doente, atraindo para si toda a energia do sangue. O médium serviu de ponte para a limpeza da aura do homem. Em pouco tempo ele ficou completamente curado.
As energias negativas em forma de cobra
Uma moça sofria de fortes dores de cabeça, sem solução médica. Vi enrolada na sua cabeça a energia de uma cobra, criada e materializada por pensamentos negativos. Ficou curada com os passes magnéticos do grupo. Os principais sintomas da doença da aura são as dores circulantes no corpo e nos ossos, e sensibilidade na base da coluna. São as energia negativas que circulam dentro do perispírito. São males originados sempre por influências internas do próprio pensamento do paciente, nada tendo a ver com entidades obsessoras, e, por isso, são facilmente curados. O otimismo e o controle das nossas emoções são as principais defesas que possuímos para destruir as energias que sujam nosso perispirito.
Nosso grupo estava reunido, durante uma sessão. Nenhum espírito estava se manifestando, não obstante a silenciosa e eficiente concentração do grupo em volta da mesa, em ambiente à meia luz. Abrindo os olhos, vi uma enorme cobra sobre a mesa, tentando se aproximar de um dos médiuns. Era uma energia negativa, sorrateiramente introduzida no ambiente, talvez por um inimigo qualquer do espaço, que se aproveitou de uma descuidada brecha na corrente. Adverti os médiuns para não abrirem sua guarda energética, sem contar o que estava vendo. Notei que uma das participantes do grupo relaxou em sua concentração, ficando alienada da segurança do grupo. Incontinenti, a enorme cobra se enrolou no seu corpo, fazendo com que ela desmaiasse imediatamente. Só voltou a si depois de insistentes passes energéticos do grupo.
O duplo etéreo
Um jovem integrante do nosso grupo, estava fazendo confusão entre os sinais da morte pelo duplo etéreo, as aparições pela materialização, e a vidência dos médiuns. São três casos bem distintos, expliquei:
- Toda matéria que ocupa lugar no espaço tem a sua cópia no plano espiritual, que nós designamos como duplo etéreo, não só do nosso corpo, mas também dos objetos inanimados. Ele é frágil, mas nos casos da morte do corpo animado pelo espírito, ele sobrevive durante um tempo. A aparição imediata após a morte de alguém é o duplo do morto, uma energia mais matéria do que espírito. Isso também é comum com as pessoas que tiveram algum membro amputado do seu corpo. Durante algum tempo, têm a sensação de ainda existirem. É o duplo etéreo, ainda não dissolvido.
- A aparição de um espírito materializado não é o mesmo? – perguntou, curioso.
- A materialização é produto de um trabalho organizado, e feita pela doação do ectoplasma por um médium especial. Esses trabalhos têm a proteção do alto astral do espaço. Não é o mesmo caso, aliás, diferem bastante.
- E o perispírito, o que é?
- A matéria e o duplo estão envolvidos pelo perispírito que, diferente do cascão, é mais espiritual que material. É nele que estão gravadas todas as formas de nossas vidas anteriores. Isso que possibilita ao espírito mudar de forma. É como se fosse uma roupa guardada no armário. – finalizei
A reencarnação é a base da filosofia espírita. Ela explica todas as distorções e diferenciações sociais e culturais entre os homens. O resgate do carma, a lei da causa e efeito, e a certeza que o semelhante atrai o semelhante, são princípios básicos da doutrina.
Se hoje você sofre, a causa está no resgate dos erros das vidas anteriores. Os que não crêem na possibilidade do espírito voltar várias vezes, em corpos diferentes, não conseguem entender porque uns são privilegiados com a fortuna e o bem estar e outros são jogados à má sorte, ao desamparo, ao vício ou à pobreza nem porque uns morrem em tenra idade e outros ganham a sorte de, com uma vida feliz, alcançarem longo tempo de vida. Não entender esse critério traz a alguns o fantasma da revolta e do descrédito nas religiões. A reencarnação ajusta essas diferenciações, pois todos terão a oportunidade de usufruir da sorte, senão nesta, na outra vida.
Estava reunido com um culto grupo diretivo da elite espírita, e o assunto discutido era exatamente sobre as diferenciações sociais, privando alguns, pela pobreza, até mesmo de alcançar o entendimento religioso. Foi quando um capitão reformado do exército, interrompeu:
– Isso não é desculpa. Mesmo que eu tivesse nascido na família mais pobre deste planeta eu seria sempre um religioso, e espírita. – gabou-se. E sabem por quê?. – falou na sua costumeira arrogância. Aprendi nos livros, sozinho, sem precisar de ninguém. – arrematou.
– E se o senhor não tivesse tido um pai que pagou seus estudos, e não soubesse ler, seria o que? Ateu? . – interrompi com sarcasmo.
Pela empáfia do capitão, sempre o dono da verdade, talvez minha irônica observação tenha causado mal estar. O fato é que a roda dissolveu-se, sob pequenas desculpas de todos.
Particularmente, tenho uma opinião: o conhecimento das reencarnações anteriores, nada acrescenta às pessoas. Acima do conhecimento, está a fé. Se um familiar foi assassinado, o fato de saber que este assassino foi morto pela atual vitima, atraído pela lei do carma, não traz consolo. Mas, se antes de procurar uma justificativa na vida anterior, a dor da tragédia for baseada no entendimento que nada acontece por acaso, a aceitação será bem mais fácil.
Aconteceu há algum tempo, na cidade balneária de Guaratuba, um acidente trágico, por muito tempo manchete dos jornais, nacionais e internacionais. Um prédio inteiro desabou, matando várias famílias. Recebi a visita de um familiar de uma delas. Contou-me como aconteceu.
– Estava no automóvel, com minha esposa e meus três filhos. Um deles, sugeriu ir à praia, com o esportivo carro Bug. Concordei. Enquanto trocávamos de carro, minha esposa, aproveitando o momento, foi até o apartamento buscar algumas coisas que tinha esquecido, no que foi acompanhada por dois dos meus filhos. Dei a ré no Bug, e, enquanto conversava, fora da garagem, com meu filho menor, vi o prédio desabar. Todos morreram.- balbuciou, emocionado.
– Faz um mês que aconteceu, não foi? – perguntei, mas claro, sabia disso. É muito recente, tenha calma, que o tempo lhe dará conforto. – disse, por não ter encontrado palavras para consola-lo.
– Não sou religioso, nem conheço o espiritismo, mas, no momento, o único consolo que posso ter é saber se eles estão bem. Na verdade, este desastre coletivo envolvendo tantas mortes, só pode ter sido pela vontade de Deus. – respondeu, resignado.
Felizmente, assistido pelas entidades protetoras, pude descrever seus familiares e dar provas indiscutíveis de estarem todos eles, esposa e filhos, muito bem amparados pelos mentores do espaço, tendo ele saído de minha casa, bem mais animado. Mas não é este o caso. Adiantaria ele saber acontecimentos de alguma vida anterior, que justificasse o que lhe aconteceu? Se o filho não falasse em trocar de carro hoje todos estariam vivos. E o homem, destacava esse fato. Mas, apesar de não ser religioso, teve fé. E isso lhe fez bem, muito mais do que conhecer o filme de suas vidas anteriores.
Sou muito desconfiado com as revelações sobre o passado. As viagens astrais, tão na moda hoje, podem nos levar à irrealidade, por força da imaginação. Regredir em vidas anteriores, sob a hipnótica fala do terapeuta, é passível de erros, causando, algumas vezes, irreparáveis transformações psicológicas, ou ridículos convencimentos irreais.
Conversando com algumas pessoas, defendia a posição que até hoje mantenho, quando fui interpelado por uma defensora desta pratica:
– Mas quem conta não é a terapeuta, nós vemos. – rebateu indignada as minhas afirmações.
– Pior ainda. Você entra em transe para isso. Jamais vai voltar ao estado normal sem uma resposta, mesmo enganada. – retruquei.
Uma pessoa ligada à espiritualidade e ao esoterismo ensinou uma forma de se enxergar vidas anteriores. Um espelho grande, de cristal, colocado no escuro, iluminado apenas por uma vela, reflete imagens das vidas anteriores. Fizemos, à guisa de curiosidade, como foi ensinado, ainda com a vantagem do espelho ter sido cruzado espiritualmente por algumas entidades. Umas vinte pessoas participaram da experiência. As revelações foram acontecendo. Cada um que parava em frente ao espelho, descobria várias reencarnações. Romano, pirata, bandido, príncipe, pessoas gordas e magras, enfim todo tipo foram revelados pelo espelho mágico. Na minha vez, fiquei olhando o espelho, e nada disse aos presentes. Alguém falou com euforia:
– Fernando, eu estou vendo. Você está completamente diferente. Está enxergando?
Eu nada vi. Apenas minha própria imagem. Mas não podia deixar a moça sem resposta. Respondi:
– Estou vendo também. Um homem magro, careca e irreverente…
Contou-me, um jovem médium, ter sido informado de uma das suas encarnações: seu espírito, conforme contaram, tinha sido o de Cleópatra, a rainha do Egito.
– Pode?
– Ainda bem que nem o César nem o Antonio reencarnaram com você.
Ele não entendeu a piada, deixando-me sem jeito, afinal, para ele o assunto era grave e eu, mais experiente, jamais deveria menosprezar a dúvida do jovem. Expliquei, demonstrando seriedade:
– Acredito no espírito masculino e feminino. O masculino não reencarna em corpo feminino, como o feminino não ocupa cascão masculino. O fato de você ser um homem, com visível masculinidade, tira-lhe toda possibilidade de ter sido mulher em vida anterior.
Desconheço provas concretas, sobre a veracidade das afirmações, quer de médiuns intuitivos, videntes ou esotéricos, praticantes das rendosas leituras das vida anteriores.,
Sei que existem, mas por que conhecê-las? Hoje eu sou, ontem já fui, e amanhã nem sei se serei. Conhecer o passado, ou o futuro, em nada vai afetar minha atual vida.
Tenho razões para ser um desconfiado nesse assunto. Quando moço, visitava com freqüência, uma excelente médium vidente. Ela me cativava, por ser uma pessoa simples, já de idade, lembrando muito minha avó, até com o cheiro do pó de arroz empoado atrás das orelhas. Ótima em sua vidência, sempre relatando fatos íntimos, impressionava os consulentes, com seu jogo de cartas. Uma seleta freguesia garantia sua sobrevivência. Quando usava sua mediunidade, nada cobrava, pelo respeito que tinha aos espíritos. Recebi, através de um amigo comum, um recado para eu ir lá com urgência, porque ela tinha tido uma revelação sobre uma minha vida anterior. Quase fui à loucura, pois, o que mais procurava, era saber quem fui. Estava ansioso na sala de espera, aguardando a agradável médium. A porta abriu-se, e nem bem a consulente tinha saído, eu já estava sentado, lá dentro, esperando por ela.
– Diga, quem eu fui? – perguntei ansioso. Ah, sim, desculpe-me! Boa tarde, como vai a senhora? – completei, para justificar minha esquecida educação.
Ela riu, abriu uma pequena gaveta, tirou uma vela, acendeu, rezou um pouco. Voltou-se à mim:
– Eu vou bem, e você? – respondeu.
Já tínhamos nos cumprimentado, mesmo às avessas, a vela já estava acesa e a reza feita, nada mais eu tinha que esperar. Ansioso, perguntei, outra vez:
– Diga, quem eu fui?
Calma e pausadamente, ela explicou:
– Uma entidade, tua protetora, pediu para revelar a você, uma vida anterior tua. Achei até engraçado, a forma como me contou. Eu estava na cozinha, porque amanhã é dia que reuno minha família…
Interrompi:
– Diga, quem eu fui? – perguntei, pela terceira vez, demonstrando minha impaciência em ouvir histórias das suas reuniões familiares.
– Está bem. Muitas encarnações atrás, numa outra vida, você chamava-se Marcos. – e parou de falar.
– Sim, meu nome era Marcos, mas que tipo de pessoa eu era?
– Marcos, o apóstolo de Jesus! – encerrou, emocionada.
Foi a primeira e última vida que tentei pesquisar uma minha vida anterior. Nunca mais quis saber de nenhuma. Não tenho nada a ver com o autor do segundo Evangelho. Se alguém duvida, leia o Evangelho – o que seria até bom, e compare com meus textos. Se hoje seria uma má companhia para nosso Mestre, imaginem há dois mil anos. E por que não poderia ser Marcos, o sanguinário, ou o soldado covarde, ou o ferreiro, padeiro, sei lá o que? Tinha que ser o apóstolo? Nada feito, tudo errado! As vidas anteriores existem, mas não devem ser reveladas pela absoluta falta de seriedade nas informações, o que pude perceber, vindo da fiel e honesta médium, presumindo, ela também ter sido enganada, em devaneio, como quase todos.
Mas um fato merece destaque. Por que não nos lembramos da vida anterior? Esta pergunta foi feito ao Pai Maneco, e vejam a jóia de resposta:
– O homem é composto pela matéria, mente e espirito. Matéria é o corpo carnal. Nasce, cresce, envelhece e morre. Dentro deste corpo físico se aloja o cérebro, depósito da memória. A memória é o arquivo do nosso conhecimento. Hoje, lembro de ontem, por ter sido registrado na memória todos os acontecimentos. Tudo isso faz parte do espírito, um complexo maior: matéria, cascão, perispírito e a alma. É a chamada aura. O perispírito é a cópia exata do corpo físico. O homem morre, seu corpo físico se decompõe, e com ele o cérebro e a memória. Fica destruída a lembrança da vida presente. Sobra, entretanto, o registro no perispírito, cópia, como já foi dito, da matéria. Ao desencarnar, o espírito readquire a lembrança dos registros de suas reencarnações, uma vez que está livre da mente física morta. Este é o filme que, segundo dizem os convencionais, é passado aos desencarnados para lembrança de suas vidas anteriores. Quando este espírito reencarna, ao dar o primeiro sinal de vida com o choro tradicional da criança, começa um novo registro dos acontecimentos, em uma memória totalmente nova. Como esta memória não tem registrada a vida anterior, só gravada na mente do espírito, não pode, pela lógica, lembrar-se dela, isto só acontecendo quando desocupar este corpo. Este é o processo natural que faz o homem não lembrar da vida anterior, exceto em isoladas lembranças da memória do perispírito. No caso, quando acentuadas, provoca a precocidade na criança. Daí surgirem alguns gênios, podendo até com sete anos compor músicas clássicas ou surpreender com revelações fantásticas. – concluiu o mestre da umbanda.
No exercício das minhas atividades mediúnicas, era eu quem doutrinava os espíritos obsessores ou ainda não esclarecidos. Estava habituado a convencê-los de seus erros, e encaminhá-los ao mundo dos mensageiros do espaço que nos atendiam e acompanhavam.
Era um entusiasta dessa atividade e, por ter sensibilidade, percebia quando alguém estava acompanhado de um espírito, mas não podia aquilatar a sua qualidade espiritual. Mas eu sabia ser um espírito. Imediatamente, através do pensamento, mandava-o embora, dizendo ter que seguir seu caminho, e toda aquela falácia do kardecista aplicado, mas, às vezes, inconseqüente.
Divido, para meu consumo, o sonho em duas partes: o produzido pelas nossas impressões, aquele que vemos uma pilha e dias depois sonhamos com uma lanterna, e os encontros espirituais, os mais fortes, onde coisas nos são reveladas e entramos em contato com os espíritos e o mundo paralelo É difícil saber, e impossível explicar, como perceber a diferença entre eles. Felizmente, sei distinguir os meus. E foi em um deles que curei minha mania de afastar, imprudentemente, os espíritos dos outros. Tudo começou quando, sonhei ter morrido. Gritava aflito:
– Nossa, eu morri. Não vejo ninguém. Como vou fazer? –
Em volta de mim não havia luz. Era uma espécie de meio termo, ou seja, eu enxergava, mas no escuro. Senti-me totalmente desamparado. Foi quando me lembrei:
– Hoje é terça-feira, noite que o meu grupo de trabalhos espirituais está reunido. Vou lá conversar com eles e, com certeza, vão me encaminhar para o lugar certo, aquele que mereço. Pensei, cheio de vaidade, embora muito assustado.
Como o pensamento me dirigisse, estava na porta do centro espírita.
– O pessoal vai levar um susto, mas, graças a Deus, estou salvo.
Pessoas estavam entrando, e percebi serem espíritos. Não me lembro deles, mas não é o caso. A verdade é que, quando chegou minha vez, um homem alto, forte e de camisa, sem paletó, empurrou-me e disse:
– Vá embora. Você não pode entrar aqui. – mostrando determinação pela sua força e a cara fechada.
– Espera aí. Este é meu grupo. Eu tenho direito a entrar e falar com eles.
– Vá embora, já disse.- respondeu. A primeira parte do trabalho já acabou. Agora só vêm os guias – encerrou.
Não podia acreditar. Logo eu, um dedicado médium atuante daquele grupo. Eu tinha que contar para a Zezé, Manoel, João Luiz, Nega, Stasiak, a Leda e os outros meus companheiros, o momento difícil que meu espírito estava passando. Precisava de ajuda. Não era justo, afinal nunca me neguei a prestar auxílio a ninguém. Por que comigo? Lembrei-me. Por várias vezes, enxotei espíritos obsessores durante a sessão, por entender não ser aquele o momento da manifestação.
– Bem, o jeito é ir buscar socorro em outro lugar – falei comigo mesmo.
Fiz um pensamento forte, e, da mesma forma que parei na frente do centro, me vi junto com uma roda de pessoas, que conversavam trivialidades, animadamente. Senti-me bem. A luz, em meu redor, já estava mais clara. Senti que naquele grupo estranho eu poderia resolver meu problema e reencontrar meus guias e familiares desencarnados. Sabia não ser culpa deles, e sim meu estado de recém desencarnado, que impedia este momento. Eles não me viam, e exalavam uma energia amorosa, e de muita luz. Eu absorvia tudo aquilo e melhorava a todo instante. Mas, de repente, senti um corte naquele meu envolvimento. Olhei, um por um, e notei que um deles – da roda, mantinha o rosto fechado e não participava daquela gostosa sintonia dos seus companheiros. Ele olhava para onde eu estava. Fiquei em dúvida. Seria um médium vidente? Dirigi-me a ele.
– Você está me enxergando?
– Estou. E é bom você ir embora. – respondeu secamente.
– Ir embora? Eu preciso de ajuda. Você pode me ajudar – falei, determinado.
– Olha, seu malandro. Vá obsidiar outras pessoas. Aqui não tem nada para você. Vá embora, já disse –
Ao mesmo tempo que falava, saia de si uma energia muito forte. Não posso dizer ruim, mas me fazia sentir cada vez mais longe do grupo. Ele continuava firme em seu pensamento, e eu, cada vez mais, ia enfraquecendo.
– Por favor, meu irmão. Você está enganado, sobre mim. Não sou obsessor. Só quero ajuda. Por favor, me ajude – suplicava, em prantos.
Mas não adiantou. O homem era um médium forte, mas não preparado para casos como o meu. Não sabia distinguir o necessitado do obsessor. Antes de me revoltar, tive a consciência que eu fui igual. Fazia, exatamente como ele. Foi quando eu ouvi uma voz:
– Não adianta. Eles não vão te ajudar. Mas não fique preocupado. Venha comigo.
Voltei-me e vi um homem alegre, divertido, parecendo feliz da vida mesmo. Senti um alívio. Encontrara, felizmente, um espírito que ia me ajudar. Era da minha estatura, mais moço, bem vestido e deixava transparecer segurança.
– Que bom. Mas, onde vamos?
– Vamos dar umas voltas. E tomar uma bebida naquele bar. Depois vou te apresentar uns amigos. Nossa turma é grande e divertida.
Acedi a seu convite. Quando entramos no bar, o ambiente ficou carregado. Escuro. Ouvia gritos aflitos. Não enxergava direito. Começaram a me empurrar, de um lado para outro. Fiquei nervoso, quase em pânico gritei:
– Não quero ficar, vou embora.
Ouvia gargalhadas, choros e gritos. Já não via o homem que me acompanhava. Senti-me fraco, tendo a sensação que iria desmaiar. Foi quando ouvi uma voz forte mas serena, falando:
– Não ceda. Ore, e pense em Jesus.
Senti um alívio. Consegui me desprender do lugar. Fiquei relaxado e já não ouvia as gargalhadas e gritos, criando forças para pensar.
– Seja quem for, meu irmão. Obrigado! Jesus Cristo, socorra-me. Dê-me luz, Senhor. Orei, com muita força, pronunciando, emocionado, o Pai Nosso.
Mantinha os olhos fechados e me envolvi no que fazia. Quando aos poucos fui abrindo os olhos, deu para enxergar um lugar lindo, cheio de luz e serenidade. Não sei descrever, apenas sei que era assim. Procurei meu salvador, mas não o enxerguei. Foi quando o ouvi novamente falar:
– Que sirva de aprendizado o que hoje te aconteceu. Volte ao teu corpo, e lembre-se sempre o que ocorre com um espírito desencarnado e, quando você tiver a felicidade de ser útil, não perca a oportunidade de estender-lhe a mão, como eu fiz com você.
Acordei, sentei-me na cama aflito, levantei-me e fui para a sala, pensar no apavorante, mas esclarecedor sonho, aquele que modificou meu comportamento. Nunca mais deixei de atender os espíritos carentes, mesmo correndo o risco de ser um trevoso.
Quem ainda não teve a curiosidade de fazer uma sessão do copo? Não recomendo esta brincadeira, pois não devemos jamais evocar as entidades astrais sem um objetivo sério.
Os espíritos usam o copo para fazer suas comunicações. O princípio de que o semelhante atrai o semelhante torna essas sessões amadoras, num grande campo de atração de espíritos brincalhões e perturbadores. Quase sempre o final da reunião é desastroso. Por outro lado, quando feito com seriedade, é muito eficiente, mas, também, cansativo, pela demora na formação das frases.
Uma minha irmã de carne estava precisando de auxílio espiritual e por ela foi solicitado uma sessão especial. Na ocasião, minha linha era somente a kardecista. E foi aos meus companheiros do grupo que solicitei ajuda para dar sustentação à corrente. Éramos apenas cinco médiuns. Um deles, sugeriu fosse a reunião feita através da sessão do copo, aliando sua curiosidade dentro de um trabalho com objetivo da caridade. Concordamos. Reunidos na casa de uma das médiuns que se prontificou ao trabalho, preparamos todo o material. Uma mesa sem pano para facilitar o deslizamento do copo, com papeis estrategicamente colocados sobre ela, recortados com o alfabeto inteiro, e mais dois, onde estava escrito “sim” e “não”. Feita a prece de abertura, ficamos concentrados, cada um pondo o dedo médio suavemente sobre o copo, sem nenhuma pressão, para não invalidar a comunicação, aguardando algum sinal. Não demorou, o copo deu sinais de estar mexendo-se. A senhora que estava dirigindo a sessão tomou a iniciativa:
– Existe algum irmão aqui presente? . – perguntou, em voz pausada e solene.
O copo correu para onde estava escrito “sim”.
– É irmão, ou irmã?
Da mesma forma, ele deslizando, indicou, letra por letra, até que parou. A pessoa que anotava as letras, quando o copo parou, falou:
– Irmã, foi o escrito.
Neste inicio do trabalho, foi gasta meia hora. Depois foi perguntado se queria deixar alguma mensagem. O espírito disse que sim e escreveu uma mensagem belíssima, que vinha exatamente dentro daquilo que minha irmã, hoje desencarnada, queria saber e ouvir. Já estávamos perto da meia noite, quando a dirigente solenemente perguntou à entidade:
– A irmã quer revelar seu nome?
Foi quando tive a felicidade de ver o espírito que tinha deixado a mensagem. Era a Laida, uma tia minha desencarnada há muito tempo, que adorava a Eny – o nome de minha irmã. Laida era como a chamávamos, pois seu nome verdadeiro era Adelaide. Imediatamente, tirei o dedo do copo, para não exercer sobre ele nenhuma influência física. Pensei comigo: um espírito dizer que quer deixar uma mensagem, que é irmã, e escrever algo bonito, pode ser falado por qualquer um. Um de nós ali podia estar empurrando o copo com o dedo, mesmo inconscientemente. Quero ver agora, o copo escrever Laida. E vi. Ele foi para o L, para o A, para o I, para o D e voltou para o A. Fiquei maravilhado com o trabalho, sua seriedade, e seu resultado. Mas, também, fiquei cansado, pela monotonia do desenrolar da sessão. Afinal, pelo método simples da comunicação dos espíritos incorporados nos médiuns, aquele diálogo que durou quatro horas, levaria menos de cinco minutos.
As pessoas não imaginam, como é grande a influência espiritual nos encarnados, em todos os sentidos, desde o excesso de bebida alcóolica, sexo, doenças mentais e físicas.
Durante um passeio de automóvel, a Yedda estava calada, deixando transparecer alguma preocupação. Pensei ser algum problema na escola, onde era a diretora. Quebrei o silêncio:
– O que te preocupa? – perguntei.
– É uma professora. – esclareceu.
– Encrenca? – arrisquei.
Ela me contou a razão de sua tristeza. Na Escola uma das professoras estava passando por um problema enorme. A professora, ainda bem jovem, morava com sua irmã, casada. Há algum tempo, o cunhado começou a demonstrar ciúmes dela, não a deixando sair com amigos, vigiando seus passos, aliás, comportamento totalmente estranho e inadequado para a situação, até que, o inevitável aconteceu: declarou seu amor por ela, sua cunhada. Não havia outra maneira a não ser ter que se mudar, extremamente magoada, diante do absurdo deste amor. Como contar à sua irmã? Deveria esclarecer a razão de sua saída, ou, para não magoá-la, esconder esta faceta suja daquele que era seu marido. A medida que minha mulher relatava a situação, eu ia tendo uma intuição muito forte. Perguntei:
– A moça é uma chinesa, alta, bonita, com cabelos pretos, longos e bem tratados?.
– A descrição se encaixa, exceto a nacionalidade. Não é chinesa, mas seu apelido é China. – esclareceu.
– Diga para a moça ter paciência que, provavelmente, poderemos resolver. Do lado dela está o espírito de um moço moreno, por ela apaixonado, que se envolve em seus cabelos e tenta um relacionamento sexual. – esclareci.
– Mas como pode um espírito ter relacionamento desta espécie?
– Ele não pode, e aí é que existe o perigo. O espírito tem a emoção e precisa provocar o relacionamento para se embriagar no êxtase. Ele obsidiou o cunhado da moça, influenciando sua cabeça e despertando esta paixão que não existia nele, e sim no próprio espírito. Se acontecer o relacionamento, ele será, com certeza, um parceiro na cama do casal. Mas vamos torcer para reverter este quadro.
O médium, em ocasiões como esta, e também em algumas até de forma inconsciente, atrai para si a energia do espírito obsessor, neutralizando temporariamente a ação dele no obsidiado.
Na sessão seguinte preparei-me para atrair o espírito. Mentalizei a conversa com a Yedda, na cena vista intuitivamente. Não demorou muito, um dos médiuns de nossa corrente, incorporou a entidade. Gritava e afirmava não se afastar de onde estava. Às vezes dizia estar envolvido naqueles cabelos negros e longos. Era o amor que procurava. Ninguém iria prejudicá-lo ou desviá-lo de seu intento, já quase conquistado. Ele esqueceu-se da força de Jesus. Nós, simples médiuns, cheios de defeitos, mas imbuídos da vontade de ajudar nossos semelhantes, conseguimos, com a graça de Deus, afastar a entidade e encaminhá-la, através dos nossos guias, para um hospital do espaço. Foi concluído o trabalho. No dia seguinte, minha mulher dava a noticia.
A professora estava radiante. Seu cunhado rogou-lhe para não sair de casa e jurou-lhe todo o respeito que sempre lhe dedicou. Não sabia como chegou aquele ponto, quase de loucura. Mas caiu na realidade e não sabia como se desculpar. Afirmou amar a sua irmã e não sabe o que lhe tinha acontecido. Ele não sabia, mas nós tínhamos a consciência do afastamento do obsessor pecaminoso. Até hoje a moça desconhece a realização do trabalho deste grupo espírita que atuou no anonimato.
No caso anterior, o espírito sabia estar desencarnado e tinha conhecimento de como manipular as energias da matéria. Não era ruim, apenas perdido, sem orientação e voltado para as banalidades de uma vida comum e devassa, e não tinha nenhuma ligação com a família na qual, vibratoriamente, ligou-se. Espíritos desse tipo, como também os espíritos familiares, são fáceis de serem encaminhados.
Encontrei-me com um amigo que estava desesperado: sua filha, com apenas cinco anos de idade, fumava três carteiras de cigarro, diariamente. Apenas conversando vi o espírito de uma moça, ao seu lado, sentada com as pernas cruzadas, aspirando ansiosamente a fumaça do cigarro. Comentei com o amigo e, pela descrição que fiz na ocasião, afirmou ser sua cunhada, desencarnada há uns seis meses. Nem precisou fazer sessão. Só conversando com o amigo, na frente do espírito, ele desligou-se. Tudo voltou ao normal e até hoje a menina, agora mulher feita, não fuma nenhum cigarro. Neste caso o espírito não tinha consciência de seu desencarne e o clima criado pela conversação, deu-lhe um choque, caindo na realidade de estar vivendo num mundo paralelo.
O desencarne dos familiares deve ser tratado, espiritualmente, com muito cuidado. O familiar é um espírito amigo, querido e estimado. Existe o culto à memória do desencarnado, que às vezes chega ao exagero. De princípio, para os familiares, o espírito é evoluído, inteligente, já ocupou sua cadeira no céu ao lado de Jesus e sua figura, jamais pode ser vista como a de um espírito perturbador. Mas, às vezes, ele o é. A passagem do espírito para o outro lado, nem sempre é compreendida pelo desencarnado. Custa, muitas vezes, entender que está morto. Como um sonho, às vezes estamos aqui, de repente lá, mudando de cenário e acontecendo uma porção de coisas num simples cochilo. O espírito desencarnado e ainda não consciente de seu estado vive esses momentos, pensando estar ainda encarnado. Irrita-se, pois não é visto nem entendido. Isto lhe causa um mal estar, transmitindo essa situação para os familiares.
Fomos solicitados para fazer um trabalho em uma casa, onde o chefe da família tinha desencarnado recentemente. A situação tornou-se perigosa. Para se ter uma idéia, se não fosse colocado, durante as refeições, o prato e talhares no lugar que ele habitualmente ocupava, a mesa era desmanchada, voando pratos, copos e talheres. Este estado do espírito, neste caso, trouxe muita complicação, porque, além do próprio fato, acontecia o fenômeno, onde, provavelmente, o ectoplasma retirado para provocar a força da entidade para poder manipular os objetos, podia trazer até mesmo doença física para alguém da casa. Felizmente, após o trabalho e feita a devida e corriqueira doutrinação, o espírito percebeu seu estado de desencarnado, deixando em paz seus familiares.
Os casos mais freqüentes de obsessão são sobre os alcoólatras e os drogados. Dentro do principio que o semelhante atrai o semelhante, os viciados no álcool e nas drogas, atraem os espíritos afins. E o álcool e a droga são consumidos para atender aos dois, tanto o encarnado como o desencarnado, colado em sua aura. Por isso os viciados são chamados de copo-vivo. E o interessante é que são protegidos pelos espíritos obsessores. Cuidam de sua saúde e segurança física, tal e qual, cuidamos dos copos que nos servem de recipiente à água que bebemos, até não servirem mais. Nessas ocasiões, seus corpos estão doentes e debilitados, além de suas cabeças estarem totalmente alteradas pelos excesso da bebida e da droga. Infelizmente, vemos esse quadro, com freqüência. É, talvez, o maior índice da obsessão.
Existem casos mais graves, com razões inexplicáveis. Estávamos no início de uma de nossas sessões, quando entrou um homem, carregando um rapaz. Outras pessoas o ajudavam. Ajustado na cadeira, tentei conversar, mas em troca, recebia apenas um olhar raivoso. O pai contou que o menino estava com quatorze anos e, quando tinha doze, ou seja, dois anos antes, era uma pessoa normal, aluno comum na escola e gostava de jogar futebol. Foi ficando arredio, quieto, deixou de estudar, dormia bastante, falava muito pouco. E essas coisas foram se agravando. Naquele momento, o rapaz não andava, não falava e demonstrava muita impaciência. Iniciamos uma série de passes. O menino não se mexia. Percebi estar seu espírito ausente e longe. Comecei a chamar pelo seu nome de batismo, e pedia que seu espírito voltasse ao corpo. O menino teve uma espécie de convulsão, jogou sua cabeça para trás na cadeira e olhou-me. Foi, de certa forma, uma atitude assustadora. Seus olhos revirados estavam totalmente brancos. Foi quando, com voz cavernosa, gritou:
– Não adianta, eu não sou ele.
– Você vai sair já deste corpo, em nome de Jesus Cristo. Você não tem o direito de prejudicar este rapaz, podendo levá-lo ao desencarne, fato que aumentará bastante seu carma. – falava rispidamente, enquanto todos os companheiros do grupo aplicavam-lhe passes.
Nós tínhamos fé. Não desistimos e insistíamos nos passes vibratórios, enquanto eu chamava de volta ao corpo o espírito do moço. Foi quando aconteceu. Ele relaxou na cadeira, olhou para todos nós, como se estivesse, e de fato estava, voltando de um transe. Animei-me, falando mansamente com o rapaz e perguntei-lhe o que acontecia com ele.
– Não sei, é um bicho feio que pula em cima de mim. – foi a lacônica, mas esclarecedora, resposta.
Fiz o rapaz acompanhar um Pai Nosso, chamamos as entidades para abençoá-lo e pedimos, com todo respeito e humildade, a proteção de Jesus para aquele nosso humilde e sofrido irmão. A verdade é que ele saiu andando com suas próprias pernas e, na saída, o João Luiz da Veiga, um dos baluarte do espiritismo e companheiro do grupo, prometeu presentear o rapaz com uma bola de futebol, por ocasião do Natal. Cumpriu a promessa, e o garoto jogou muito futebol com a bola dada pelo João Luiz. Ficou completamente curado. Este é um espírito diferente. A medida que os espíritos desta faixa- os trevosos, regridem, eles vão criando forma de animal. Praticamente perdem o raciocínio e, em conseqüência, o livre arbítrio. Este, simplesmente, aninhou-se na energia do rapaz, da qual se alimentava para seguir sua negra jornada. Existem muitos desses animais por aí. Não devemos temê-los, mas, sim, dominá-los e enviá-los à alta espiritualidade, que os encaminhará à compreensão e recuperação.
Tivemos um caso interessante. Em nosso grupo, na parte inicial dos trabalhos, colocávamos várias cadeiras e os médiuns, um na frente e outro atrás, aplicavam os passes energéticos nas pessoas. Durante um desses passes, um homem pareceu-me muito perturbado. Enquanto lhe aplicava o passe, cochichei ao seu ouvido:
– Vou arriscar e fazer-lhe uma pergunta. Meio sem jeito, completei dizendo-lhe que, se não tivesse acontecido, me perdoasse. Você matou um homem? – completei.
– O que? – respondeu, demonstrando indignação. Não matei ninguém. Levantou-se e foi embora.
– Sujou! Pensei.
O médium não deve se abater por erros no exercício de sua mediunidade. Continuei, normalmente, o meu trabalho. Surpreso, vi que o homem tinha voltado à fila. Dirigiu-se a mim e confessou ter matado um homem. Não lhe perguntei as razões, quem foi o assassinado, muito menos se outros sabiam do crime. Apenas o fiz sentar-se novamente e roguei fosse aquele espírito, ao seu lado, encaminhado e parasse de fazer aquele homem sofrer, fossem quais fossem suas razões. Foi um alívio. O homem agradeceu e passou algumas semanas tomando passes em nosso grupo, até que veio a mim e confessou o seu bem-estar, afirmando sentir-se um novo homem, agora pacífico e bem humorado. Este é o espírito vingativo: sabia ter sido morto por aquele homem e veio, em busca de vingança, aterrorizar sua vida.
A doação mútua de energias entre as pessoas tem uma ação sobre elas de certa forma desconhecida da maioria.
Quando nos aproximamos de alguém, acontece uma das duas coisas: ou transferimos nossa própria energia, ou absorvemos a da pessoa, dependendo, do estado de cada um. O interessante deste fenômeno é a sua influência no doador da energia. Se a pessoa tiver consciência do fato, nada lhe acontece, mas, caso contrário, pode ficar fraca e sentir-se mal, até mesmo durante longo tempo.
Fui com uma pessoa visitar um doente no hospital. Ao entrar no quarto, ela sentiu um impacto muito forte: suor frio, mal estar, esteve à beira de um desmaio. Ao sairmos, contou-me o fato, afirmando estar o doente tão perturbado, ao ponto de lhe ter transmitido sua energia negativa. Foi o contrário, expliquei:
– Você doou a sua energia positiva, e ninguém dá mais do que pode.
Tomando conhecimento do fenômeno, imediatamente tranqüilizou-se, voltando ao estado normal.
A doação de energia, dentro das casas espirituais, através dos passes magnéticos tem uma eficiência assombrosa. Quem procura uma casa espiritual não se satisfaz só com o passe. Quer mais é conversar com as entidades. Mas na verdade, às vezes, é melhor um só passe do que dez conversas com os espíritos.
Fiquei confuso com um caso, não sabendo se devo enquadrá-lo como prova de fé, confirmação da eficiência da energia salvadora do passe, ou no anedotário espiritual.
Um Juiz de Direito, exercendo seu cargo em uma pequena cidade do interior, era conhecido pela sua convicção no espiritismo. Foi chamado para atender uma pessoa hospitalizada. Ao entrar no quarto, viu o paciente à beira da morte, desenganado pelos médicos. O Juiz aplicou-lhe, com toda fé, um passe energético, mais para atender a solicitação dos familiares, em choro pela expectativa da morte, do que propriamente por acreditar no milagre da cura daquele homem, já tão debilitado. Dias depois, o homem, completamente curado, foi à casa do Juiz agradecer o milagre de ter dado um sensacional drible no Cavaleiro Negro da Morte. O Juiz ainda não tinha chegado em casa. Sua esposa, gentilmente, fez o homem entrar e o convidou para sentar-se na sala, onde deveria aguardar a chegada do abnegado julgador. Delicadamente, deixou o visitante à vontade e foi cuidar de seus afazeres domésticos na cozinha, pois estava preparando o almoço. Chegou o Juiz, entrou em casa e viu o homem na sala, que, respeitosamente, levantou-se e aguardou-o para o cumprimento e agradecimento formal. O Juiz, homem calmo, sereno e extremamente espiritualizado, tirou seu paletó preto e surrado, um dos seus característicos, sentou-se na frente do homem e sentenciou, o que sabia fazer muito bem:
– Feliz é você que hoje está vivendo a verdadeira vida. Tenha certeza, meu amigo, que nosso querido Mestre Jesus Cristo está cuidando de você. Viva sua vida espiritual, tenha fé e não se apegue às coisas materiais. Ao contrário da revolta, agradeça aos bons espíritos terem facilitado seu desencarne…
– Não, doutor. Eu não estou morto. O senhor me curou e só vim agradecer-lhe! – interrompeu, sem graça, à entusiasmada doutrinação do mestre da lei.
Muitas histórias são contadas sobre esse notável homem, hoje aposentado como Desembargador. Quando foi Juiz na Vara de Execuções Criminais, e era ele quem deferia ou não os pedidos de soltura dos presos, sua casa foi assaltada. Por ser importante figura nos meios jurídicos, a imprensa deu destaque a ocorrência criminosa. Dias depois, recebeu, em sua casa, de portador anônimo, uma trouxa, contendo todos os objetos roubados, com um bilhete: “Desculpe, doutor. Não sabíamos que era o senhor”.
Para concluir, vou contar mais uma. Um Secretário de governo, estava passando momentos difíceis. Solicitou um trabalho ao nosso grupo. Fomos, excepcionalmente, à sua casa. Enquanto a dona da casa preparava a sala para a sessão, conversávamos com o importante homem público. Ele gabava-se ao Juiz:
– O Governador não faz nada sem me consultar. A carga é muito pesada. Todos os assuntos políticos do Estado, quem tem que resolver sou eu – dizia, não sei se para justificar seu estado espiritual, ou para se exibir.
E continuava a contar sua importância nas graves decisões políticas e governamentais. A certa altura, o sisudo juiz, interrompeu-o:
– Secretário, o senhor acha que está sendo vitima de um obsessor espiritual?
– Sim, creio estar com um espírito maligno ao meu lado. – confirmou o político.
– O Governador do Estado nada faz, sem pedir teu conselho. Você, pela obsessão, está sendo aconselhado por um espírito atrasado. Ora, então todos nós, estamos sendo governados por ele, o espírito maligno. – concluiu.
Consertei rapidamente a constrangedora situação. Quebrando o silêncio, e fechando o disfarçado riso do juiz brincalhão, convidei a todos:
– Vamos iniciar o trabalho. A sala já está pronta.
Existe uma outra forma da troca de energia. É a por afinidade espiritual. Entre mim e minha mulher, acontece com freqüência.
Começou a aparecer, em meu braço direito, incomoda coceira provocando pequena ferida. Alguns dias depois ela foi aumentando, parecendo infeccionada. Até que, ao meu lado, a Yedda, pegando em seu braço e no mesmo lugar da minha estranha ferida, queixou-se.
– Minha vacina pegou. Que azar!…
– Vacina? Que vacina?, deixe eu ver. – pedi.
As feridas eram iguais. Contou ter sido obrigada a se vacinar no colégio onde era diretora, para dar o exemplo. Elas foram secando, criaram uma casca e quando a do meu braço caiu perguntei a ela:
– Como está a ferida de tua vacina?
– A casca caiu hoje, respondeu.
– É, estou imunizado, sem ter tomado a vacina. – brinquei.
Quando tenho qualquer dor, ela também tem; ou se estou preocupado, por mais que tente dissimular, ou ela descobre, ou fica do mesmo jeito. Isso é afinidade, temos em comum nossas vibrações. Um alivia a necessidade do outro. E mais: a comunicação, por pensamento, torna-se bem mais fácil.
Sábado é o dia que não tenho compromisso. Saio cedo, sem destino. Vou aqui, ali, comprar qualquer ferramenta. Apelidei o sábado, de “o dia da bobagem”, feito para pequenas coisas. Num deles, resolvi passar no escritório de um amigo. Ao entrar, a Sonia, sua secretária, deu-me um recado:
– Senhor Fernando, é para o senhor telefonar para sua casa, pois dona Yedda precisa falar.
– Yedda, o que quer? – perguntei-lhe.
– Fernando, sua mãe está aqui e precisa falar com você.
– Já vou indo.
– Espera! Como você sabia que eu precisava falar com você?
– Recebi o recado, pela Sonia.
– Que recado? Eu não falei com ela.
– O que?. – pondo de lado o telefonei, perguntei à Sonia. Você não me disse que a Yedda telefonou e precisava falar comigo?
A Sonia me olhou, mostrando estar surpresa com a pergunta, e respondeu:
– Não senhor Fernando. Eu não lhe disse nada. O senhor entrou no escritório, foi ao telefone e o usou. Até estranhei. Finalizou.
Fiquei atrapalhado. Tinha certeza do que dizia. Disse já estar indo e fui para casa. Atendida minha mãe, a Yedda contou-me ela ter chegado à minha procura, e que precisava falar comigo com urgência. Não era hábito dela ir visitar-me. A Yedda explicou:
– Como ela estava nervosa, e eu não sabia onde te encontrar, fiquei mentalizando o pedido para você ligar para mim. Sou forte, não sou? – finalizou, triunfante.
Este é o tipo da materialização de um pensamento, que só acontece entre pessoas de muita afinidade.
A energia em harmonia também tem seu lado negativo. Entre as pessoas de sexo diferente, às vezes, na prática da espiritualidade, em qualquer religião, quando existe a afinidade, pode ser levada para caminhos perigosos, ao ser confundida por atração física, um dos grandes problemas dos terreiros e templos religiosos. Um cuidado que todo praticante da umbanda deve ter quando isto acontecer: lutar contra este sentimento, e, em caso de não o superar, contar ao dirigente do terreiro. Um pai-de-santo, nosso conhecido, trabalha com o Caboclo Tupinambá, a mesma entidade de um médium de nosso terreiro. Numa visita, ambos, já velhos conhecidos, se abraçaram. Ao sair o médium, o pai-de-santo observou:
– Este menino tem uma vibração muito boa. Tenho muita afinidade com ele, talvez por trabalharmos com a mesma entidade. Quando o abraço, fico até arrepiado.
– Bem, você já pensou se ele fosse mulher? Perguntei irônico.
Ele olhou-me espantado, pois já havíamos trocado idéias sobre o assunto.
– Agora entendo o que você diz.- Concordou.
Mas, inegavelmente, a presença da comunhão de vibrações entre os homens é boa, interessante e, se exercida com inteligência, pode ser muito útil, principalmente na divisão dos sofrimentos e na telepatia.
Brinco com as pessoas, quando digo que o espiritismo por si só é ilógico, mas dentro dele, mesmo ainda não descoberta, existe a lógica.
Minha casa no litoral tinha sempre suas telhas furadas, provocando goteiras, o que me obrigava a levar alguém para consertá-las. Levei o Basico, um carpinteiro conhecido há muito tempo. Enquanto fazia os reparos na estrutura do telhado, fui, ao lado, numa mercearia. Contei o caso dos estranhos furos nas telhas. Ocorreu-me perguntar:
– A senhora sabe, por ocaso, se aqui no balneário, pessoas costumam atirar com revólver?
– Por que pergunta?
– O tamanho dos furos nas telhas indicam serem feitos por pequenos objetos como balas, não havendo rachaduras. – expliquei, intrigado.
– Os furos são feitos pelas sementes dos sombreiros. – explicou, convicta.
As árvores não ultrapassavam a cumeeira da casa. Não tinha lógica. Perguntei:
– Mas como pode isso acontecer?
– Nos dias que tem vento forte, elas são levadas ao alto e, ao caírem, vêm com força, provocando os furos.
– É. Considerando que a semente tem o tamanho de uma castanha, é leve e tem uma ponta dura, tem lógica. Respondi, convencido.
O Basico era um descendente de italianos, meia idade, demonstrando muita força, adquirida no exercício de sua profissão. Era alegre e brincalhão. Contei a teoria da dona da mercearia vizinha, pedindo que cortasse a copa da bela árvore do meu quintal. Ele não deixou transparecer duvida quanto ao fato das sementes provocarem os furos nas telhas. Mas contou uma história:
– Outro dia, fui consertar um telhado de uma casa aqui perto, e umas cinco telhas estavam totalmente destruídas. Fiquei pensando o que podia ser. Quando fui ver dentro do forro da casa, descobri que as telhas foram quebradas por um peixe com mais de meio quilo. – concluiu, rindo.
Por mais que quisesse, não conseguia imaginar como um peixe podia cair no telhado de uma casa. Fiquei até contrariado por julgar estar sendo alvo de uma chacota. Afinal, sempre respeitei o Basico, o que me dava o direito de também ser respeitado. Indignado, falei:
– Pare com mentiras, Basico. Tua história está ofendendo a minha inteligência. Como pode ter acontecido isso? O peixe tinha asas?
– Não, o peixe não tinha asas. Com certeza a gaivota deixou ela cair de seu bico. – respondeu, rindo matreiramente.
Ele me pegou! Conseguiu criar a lógica.
O que às vezes parece absurdo e impossível, uma simples explicação torna tudo compreensível. E o espiritismo é cheio de mistérios. Existem crenças refutadas terminantemente, por não existir a lógica. Quando me perguntam se acredito na lenda do lobisomem, respondo, convicto:
– Acredito!
Acreditar que o homem se transforma em lobo e sai matando pessoas na lua cheia, é coisa de criança. É uma crendice, passada de geração à geração, e se ainda está presente entre nós, ainda viva e criando temores entre os mais crentes, é por ter sido inventada em fato marcante que deve ter abalado a opinião pública da época.
Pelo processo da reencarnação, os bruxos e bruxas da idade média talvez estejam hoje reencarnados, na umbanda, espiritismo ou qualquer outra religião transcendental. Mas eram, sem dúvida, mais voltados à magia que os de hoje, talvez porque não se distraíam com automóvel, televisão e computador e, por isso, entregavam-se muito mais à concentração, à manipulação de ervas, à alquimia e, principalmente, ao treinamento da saída do espírito do corpo, hoje em moda no meio esotérico, as chamadas saídas do corpo ou viagens astrais. Eles tinham a técnica apurada e, quando precisavam, seus espíritos saíam do corpo, em busca do lobo chefe de alcatéia e, dominando sua mente, o guiava aos ataques de quem queriam destruir. O lobo, agindo sob a influência do bruxo, parecia estar animado com uma vontade humana, como, no caso, realmente tinha. Daí, para o povo dizer que o homem se transformava em lobo, foi um passo.
A criação da lenda do lobisomem foi assim. Hoje, estou tentando criar a lógica, claro, dentro do ilógico.
O homem é suscetível à ameaça da magia. A idéia de ser vitima de um trabalho feito contra a sua pessoa, cria-lhe o medo.
Sobre esse assunto, uma entidade deu uma explicação:
– É mais fácil você fazer o bem, do que o mal.
A revelação, tão clara, surpreende-nos a todos, pois sempre acreditamos o contrário, pelo fato de julgarmos que a nossa energia é mais compatível com a vibração baixa.
– Quando você deseja o mal a outro, mesmo criando um campo energético através de trabalhos, toda a defesa espiritual da pessoa se fecha e a protege. Se você desejar o bem, a sua retaguarda afrouxa e abençoa a vinda da vibração de paz. Previno a todos: o pensamento pode tornar a mentira verdadeira. – Não criem o medo por infundados trabalhos pegados. – concluiu a entidade.
A maioria das consultas, nos terreiros de umbanda, é para desmanchar um trabalho feito contra a pessoa, quase sempre fruto da imaginação e do medo. Umbandistas mais experientes sabem distinguir um do outro. Quando o preto-velho ou o caboclo manda procurar o exu, e este faz um trabalho especial com elementos da terra, é porque existe uma energia ruim, precisando ser combatida pela criação de uma força semelhante àquela que provocou o distúrbio na pessoa. Caso contrário, é só imaginação.
Numa manhã, quando ainda não integrado ao movimento umbandista, ao sair de casa vi, do lado esquerdo do meu portão, um círculo pintado de vermelho, com uma cruz dentro. Imaginei o pior: alguém fez um trabalho de magia, contra mim ou minha família. Confesso, um arrepio incomodo correu pela minha espinha. Fiquei com medo. Elevando meus pensamentos, pedi proteção aos espíritos de luz:
– Tenho fé em Jesus Cristo e nos seus mensageiros. Este mal será banido da minha vida.
Durante o dia, aquela macabra pintura não saía do meu pensamento. E pior, era com tinta, daquelas que não sai mais, nem com chuva intensa. Embora não conhecesse a magia praticada nos terreiros, conhecia a força dos trabalhos do mal, e como introduzi-los num lar. A macumba, colocada em qualquer encruzilhada, com sapo morto, fica girando em torno de seu corpo pegajoso e redondo. O cascão do sapo é colocado pelos espíritos do astral inferior em qualquer canto de sua casa. Fica ali, vibrando como toda energia. A faixa vibratória, por ser negativa, é alimentada por força semelhante. Qualquer briga, confusão entre familiares, gera a tal energia compatível, imediatamente sugada pelo trabalho, que vai crescendo à medida que é alimentada, até ter uma força grande, pondo em risco a serenidade e paz da família, dona da casa. Fica o ambiente carregado, trazendo, muitas vezes, até a doença física. Mas, se ao contrário, o ambiente for de paz, harmonia, preces, tolerância e perdão entre os moradores da casa, a energia, não tendo com que se alimentar, vai diluindo-se até desaparecer.
– É, o correto é ter bons pensamentos. Que Jesus perdoe esse meu desconhecido inimigo. Vou esquecer essa estúpida magia. – dizia, para meus botões.
Mas eu não conseguia esquecer por duas razões: o medo e porque estava pintada na entrada da minha casa, visível e assustadora. No terceiro dia, não suportava mais aquele medo de ver minha gente, vitimada por um maníaco espiritual. Fui pedir ajuda a um amigo, experiente espírita. Levei-o à minha casa, mostrando o símbolo do diabo. Ele, assustado, explicou:
– Macumba! E é da grossa! A cruz, significa, neste caso, a morte. E o círculo é para fechar o trabalho.
Eu não sabia o que dizer ou fazer. Não iria solicitar trabalhos especiais, se eu fazia parte de um grupo espírita eficiente e com bons resultados. Meu fanático amigo, não gostou da minha decisão. Insistiu:
– Não adianta. A linha kardecista trabalha só com energia. No caso, tem que haver a criação de um campo de força da magia branca, para destruir a ruim.
Achei a interpretação da cruz e do círculo uma aberração espiritual, contrária ao bom senso e à inteligência, mesmo mediana, de qualquer um. Quanto ao fato de criar um campo de força para combater outro, achei lógico e certo. Para não falar mais no assunto falei:
– Vou pensar.
Com o decorrer dos dias, fui me acostumando com o círculo vermelho. Já não tinha mais medo. Na verdade, só um pouco. Numa tarde, fui caminhar no bairro. Passando em frente à casa do vizinho, vi o mesmo desenho feito na minha. Fui a outra, a mesma coisa. Todas as casas tinham a marca. Atônito, chamei um vizinho que regava seu lindo jardim, e perguntei:
– Você sabe por que, as casas estão marcadas com este símbolo?
– Sim, foi a Companhia de Rede de Água e Esgotos, que marcou as casas, onde vão ser mudadas as redes das águas pluviais.
– Mas, podiam ter uma marca mais simples. Respondi, sem ele nada entender.
Fui visitar meu sobrinho Benno, em seu escritório de advocacia. Conversávamos sobre espiritismo, quando ele me fez um convite:
– Fernando, estou freqüentando um terreiro de umbanda. Não quer conhecê-lo? – perguntou.
Eu? Claro que não. Sou contra qualquer tipo de ritual. Já tenho meu grupo, que você conhece, e não tenho nenhuma intenção de conhecer outro tipo de religião, principalmente essas de macumba e de baixa categoria. Não conte comigo e te aconselho a se afastar o quanto antes dessas religiões afro-brasileiras. – retruquei contrariado.
Pondo final à visita, despedi-me, dando as costas, e me dirigi à porta. Foi quando senti a aproximação de meu guia espiritual, e ouvi, dentro de minha cabeça, no ouvido, sei lá onde, um berro austero, determinado e, até certo ponto, zangado:
-Vá!
Não pensei duas vezes.
-Qual o dia das reuniões? Perguntei, humildemente.
– Hoje, Sexta-feira.
– Como é o nome e quem é o médium?
– Tenda Espírita São Sebastião, dirigida pelo Edmundo Ferro.
– Você me leva?
-Te pego às oito…
Enquanto ia para casa, pensava. Por que o irmão Maneco quer que eu vá em terreiro de umbanda? Logo eu, contrário a esse tipo de religião, tão presa a rituais. Lembrei-me de uma passagem que ocorreu durante uma sessão na linha kardecista. Incorporou em um médium o espírito de um índio, e dava vibrações, cadeira por cadeira, ordenando a todos:
– Bata a testa três vezes na mesa.
Na minha vez, quando deu a ordem, respondi-lhe em súplica:
– Meu irmão, peço-lhe, com todo o respeito e do fundo do meu coração, que me dispense dessa formalidade. Se cumpri-la, vou ferir todos meu princípio contrário a qualquer ritual dentro do espiritismo.
Se a entidade gostou, não sei. Passou direto, sem nada dizer. Ainda envolvido pelos meus pensamentos, e de certa forma até excitado, aguardava meu intrometido sobrinho, não imaginando o quanto ainda lhe seria grato.
Confesso que estava ansioso. Tinha sido muito bem recebido pelo pai-de-santo Edmundo Rodrigues Ferro, o dirigente do terreiro, a Tenda Espírita São Sebastião.
Era um salão grande, bem iluminado, diferente da nossa casa kardecista. Metade da parede era vermelha e metade preta. Achei estranho este mundo. Todos falavam e conversavam animadamente, sem a concentração comum dos trabalhos que estava habituado a freqüentar. Eu, curioso, perguntei ao Benno:
– Quando serão apagadas as luzes?
– Não se apagam. Respondeu lacônico.
Estava assustado, sem nada entender resmunguei:
– Esquisita a pintura. Vermelha e preta.
– Hoje é trabalho de esquerda. É dia dos exus e pombas-giras. Explicou.
– Exu? Pomba-gira? Vou embora.
– Se acalme. Já que você está aqui, deixe começar!
Lembrei da ordem do irmão Maneco, e fiquei quieto. Prestei atenção na movimentação dos médiuns. Foi um tal de bater cabeça no chão, e um beijar a mão do outro. Aí entrou a mãe e o pai-de-santo. Três tambores começaram a tocar. Todos ficaram em pé. Eu fiz o mesmo, lembrando do tempo que namorava na igreja. Com a seguinte diferença: lá acabava, e aqui estava começando. O pai-de-santo concentrou-se e começou a cantar o Hino da Umbanda. A corrente foi entrando em fila. Todos de branco, garbosos, seguros, demonstrando um orgulho enorme por estarem ali. Os vestidos das mulheres eram impecáveis, suas saias rodadas balançavam aos som dos atabaques. Os homens não deixavam por menos. Suas calças e camisas eram brancas e muito limpas. Todos cantavam o Hino. Senti um calafrio. Parecia uma parada militar, tocando o Hino Nacional. O medo transformou-se em emoção, e depois em fascínio. Já não queria ir embora. Meu desejo era entrar no meio, para cantar com eles. Foi uma vibração incrível! Pareceu-me ter levado uma tijolada na cabeça. Nunca podia imaginar uma coisa assim. Estavam mais para anjos do que para os filhotes de diabos, que eu estupidamente imaginava. Não paravam de cantar e dançar. Bem, de repente pensei: e o exu? Como será ele? Terá cornos, rabo e pés de bode, como me falam? Sou hoje um homem sem medo. Sentei e deixei as coisas acontecerem. Começaram as incorporações. Mas o ritual era diferente do que estava habituado. Luzes acesas, todos cantavam e dançavam. O pai-de-santo incorporou a entidade chefe naquele terreiro, da linha da esquerda,. Vovô Conrado era seu nome. Sentou-se numa cadeira, espécie de trono, capa preta, fumando e bebendo uma mistura, depois fiquei sabendo ser de sete espécies, material para deixar qualquer um de porre. Fiquei olhando, curioso. Não perdia um movimento sequer. Outros espíritos incorporavam nos demais médiuns. Era incorporação em massa. Totalmente diferente do que conhecia. Riam, brincavam e falavam com todos os presentes. Ouvi o Vovô Conrado chamar:
– Careca, venha aqui. Quero falar com você.
Olhei para todos, e reparei ser eu o único careca ali dentro. Levantei-me, já solto e alegre, e corri para conversar com ele.
– Careca, ele falou. Você não está aqui por acaso. Prometi ao Nêgo Maneco ensinar uma porção de coisas a você. Está vendo coisas estranhas. Saiba, meu filho, que cada um viaja como pode. Uns vão andando a pé, outros com essas máquinas de vocês, outros de canoa. Mas, no fim, está o lugar onde todos devem chegar.
Não acreditei. Já tinha ouvido essas palavras, há anos. Fiquei olhando o exu. Não vi cornos, nem rabo e muito menos pé de cabra. Vi, isto sim, uma entidade alegre, determinada, doce e amorosa, repetindo as mesmas palavras do Pai Joaquim ditas há mais de trinta anos. Meu irmão – disse, procurando iniciar uma conversação.
– Não sou teu irmão, coisa nenhuma. Aqui sou pai, ou, simplesmente, vovô. Quando falar comigo, tenha respeito!
Meu pai – disse, retomando a conversação. Explique-me duas coisas:
– Quem lhe contou o nome do irmão Maneco e como o senhor sabia a frase que ouvi há anos. E por que Nego Maneco.
Com um olhar matreiro, após um baita gole no caneco da bebida, olhou-me e disse:
– O espírito tudo sabe. E esse irmão Maneco não é irmão coisa nenhuma. É um preto-velho, sim senhor. Vá para o teu lugar, ou para onde queira, fique olhando e vá aprendendo.
Saí de fino, voltei para meu lugar e fiz o que o Vovô mandou. Fiquei olhando. Admirado. Empolgado. Entusiasmado. Sei lá o que mais. De repente parou na minha frente um médium incorporado. Olhou-me fixamente. Deu uma gargalhada e ofereceu-me bebida. Era uma caneca, em forma de caveira. Dei um gole e quase vomitei, porque detesto bebida alcóolica, principalmente conhaque. Devolvi-lhe o copo-caveira. Exu sempre tem um olhar marcante. Mais dominador do que assustador. E ele estava desse jeito quando informou:
– Careca jaguara!. Já te conheço da outra casa. Foi bom você ter vindo para cá. Meu nome é Tata Caveira mas lá eu sou o João.
Lembrei-me do “sêo” João, na linha kardecista. Às vezes dizia ser Caveira. Era o espírito que resolvia nossos problemas. Lembrei-me de um trabalho maravilhoso, feito por ele. Uma médium, companheira nossa, estava em grande dificuldade e como não queria mais freqüentar os trabalhos, ficamos preocupados. Pedimos socorro ao “sêo” João. Ele, incorporado, disse-nos já voltar, pois ia resolver o problema. Subiu. Uns dez minutos depois, incorporou novamente, dando-nos a notícia de estar o caso resolvido, e no próximo trabalho a médium iria voltar. Vi estar carregando uma caixa cheia de cobras. Fiquei curioso. Perguntei-lhe a razão.
– Chegando na casa da médium, vi que ela estava cheia de espíritos perturbadores, influenciando nossa companheira para não mais ir aos trabalhos e abandonar o espiritismo. Coisa de espírito brincalhão. Soltei várias cobras na casa e, no plano espiritual, quando eles as viram, saíram em debandada – disse, rindo. Quando foram embora, recolhi todas e o ambiente ficou livre desses infelizes obsessores. E despediu-se.
Na outra semana, após seis meses de ausência, nossa irmã voltou, normalmente, aos trabalhos.
– Que bom revê-lo, “sêo” João – respondi agradecido.
– Tata Caveira, Careca! – corrigiu, e foi falar com outra pessoa.
Este foi meu primeiro contato com a umbanda. Voltando para casa, enquanto cantarolava os pontos que ainda ecoavam em meus ouvidos, pensava comigo: pena não poder um dia freqüentar a umbanda, afinal sou contra rituais…
Eu e a Yedda estávamos descendo a serra do mar. Eu dirigia o carro devagar porque o paralelepípedo da tortuosa estrada estava umedecido pela densa neblina, e o perigo do veículo derrapar recomendava muita prudência.
O cheiro da mata que entrava no carro, envolvido com o suave frescor da neblina, e a expectativa de um dia ensolarado e bonito, trazia uma paz interior dentro da medida que essas coisas boas me cercavam. O pensamento não tem parada, voa de um assunto para outro. “O mundo é bom, mas podia ser melhor”, pensei. Interrompi o silêncio:
– Se Deus me desse a oportunidade de modificar alguma coisa de Sua obra, sabe o que eu iria mudar?
Minha companheira de quarenta e três anos de convivência é uma legítima representante do Orixá Ogum. Quando embravece deixa explodir todo seu gênio indomável, mas mesmo neste estado é capaz de ficar embevecida diante do colorido do beija-flor. Ao mesmo tempo que é irreversível em suas decisões e incapaz de ficar sensibilizada diante do choro convulsivo de um neto, estende sua mão para afagar a cabeça de um cão doente ou socorrer um cavalo atropelado na rua. Tem atitudes antagônicas: não gasta vintém à toa, mas abre sua bolsa para satisfazer os caprichos de alguém. Gostando de dar felicidade aos outros, sempre põe à frente dos fracos seu pequeno porte de mulher guerreira. Talvez pela sua ágil facilidade de raciocínio, não gosta de ter atitudes coniventes com os sonhadores. É sensata, no que difere de mim. Eu sonho e ela me acorda. Sempre foi assim. De soslaio, aquiesceu em ouvir.
– Pediria que todos os bichos pudessem falar, de preferência em português . Completei a frase, antes que ela dormisse outra vez.
Continuei divagando, envolvido na minha aventura de mentira:
– Seria bom para os homens se eles pudessem entender os bichos. Se nossos olhos e corações são insensíveis aos seus comportamentos, quem sabe eles pudessem nos dizer onde erramos. Imagine quanta coisa a águia poderia nos ensinar, por ser ela a ave de vôo mais alto e que pode ver o mundo em toda sua amplitude.
– E o que você iria perguntar à águia ?
– Ainda não sei. Talvez lhe desse a mesma oportunidade e perguntasse o que pediria à Deus para melhorar o mundo.
– Sabe o que ela iria pedir? Disse a Yedda em tom sarcástico.
Fiquei aguardando o já certo e fulminante complemento da frase.
– Ela ia pedir que para o mundo ficar melhor, os homens não pudessem falar.
Fiquei em silêncio, desenxabido, e cheguei ao nosso destino, pensativo, sem falar em querer modificar o mundo, pretensão para quem não consegue modificar nem os seus defeitos próprios. Mas o diálogo sonhador ficou calado em mim, imaginando como seria o mundo.
Às vezes sou convidado para fazer uma palestra sobre a umbanda a grupos de estudantes. Diante de trinta deles, e após ter já respondido várias perguntas, contei para eles o diálogo na descida da serra, e como ele tinha ficado cravado em meus pensamentos e como um simples devaneio tinha revolvido os meus conceitos dos mistérios da magia. Mencionei a magia das palavras, destacando sua locução, tom e efeito.
– O som é vibrante, e tem um efeito no espaço. A musica e os mantras, são prova disso. A sonoridade das palavras de Jesus deveria inebriar seus ouvintes e ao pregar o Sermão das Montanhas deve ter causado um impacto maravilhoso nos que o ouviram. Não poderia ter sido o grande pregador se a impostação de sua voz não fosse perfeita. Falei, esperando o resultado entre o grupo do meu inflamado ensinamento.
Todos estavam atentos e me olhavam com expectativa, o que me animou a continuar.
– A educação da voz, deveria fazer parte da matéria obrigatória escolar, porque a maneira de emitir as palavras tem um efeito enorme, não só para quem a pronuncia, mas para quem as ouve. A suavidade, tonalidade e firmeza das palavras, expressam a qualidade de quem as emite. Um falante descontrolado, voz estridente e tom alto, pode causar efeitos negativos em seu ambiente. Os gritos histéricos, as gargalhadas, os berros e a má formação da expressão, têm um lugar no espaço, e com certeza, não será em lugar espiritualizado, e sim no astral inferior. Estamos alimentando o inferno sonoro de nossa alma. Falo da ação e da reação, da causa e do efeito e da lei dos semelhantes. O mais importante não é a vibração da emissão dos sons. A intenção das palavras é que causam o efeito. Todos os nossos sentimentos reprimidos eclodem e se somam às vibrações dos sons, sejam eles positivos ou negativos.
Um aluno criticou de forma irônica:
– Seguindo seus ensinamentos, se o homem não falasse, conforme você disse no início, a magia das palavras desapareceria.
– É verdade, mas em compensação o maldoso efeito da infâmia, tão própria dos homens, não destruiria mais lares, nem romperia amizades, nem seriam levantados testemunhos mentirosos, o que, muitas vezes, jogam à lama o nome de pessoas honradas. A maledicência da inveja seria banida da humanidade, e a intriga seria definitivamente sepultada, e o mentiroso e gabola não mais existiria, facilitando a paz entre os homens. E o velho ditado “quem conta um conto aumenta um ponto”, por desuso, seria sepultado, evitando a criação de imbecis e irresponsáveis, aqueles que falam mentiras para apaziguar seus sentimentos ofuscados pelas trevas demoníacas da incompetência e da frustração. Falei, encerrando minha palestra.
Ao chegar em casa, a Yedda me perguntou:
– Como foi a palestra?
– Foi boa, porque além de ter sido muito aplaudido, eu tive um revelação.
– Que revelação? Perguntou, curiosa.
– Deus fez o mundo com perfeição. É melhor deixá-lo como está.
Eu tenho um problema cultural hoje irreparável: não fiz viagens internacionais, o que me tornou um desconhecedor das culturas do mundo.
Sempre gostei de ler, mas não é a mesma coisa que evidenciar os fatos. Em compensação a minha intimidade com os espíritos me fez um homem imaginativo. Se alguém abrir a mão e mostrar em sua palma uma semente de girassol, imediatamente vejo a planta crescida, com uma enorme flor, carregada com sementes, procurando a luz do sol, que está brilhando no céu cor do infinito, onde estão os planetas, os astros, as constelações, onde provavelmente existem outros mundos habitados, com culturas diferentes da nossa, e descubro que estamos no meio do dia, senão o sol não estaria tão alto, e logo vai cair a tarde e o dia vai desaparecer, e vamos ter trabalho de umbanda à noite, e ainda me lembro do Van Gogh, que se freqüentasse um terreiro de umbanda, talvez tivesse sido mais feliz e morreria com as duas orelhas. Volto à realidade, mas viajei até o espaço, dentro de uma semente de girassol. Eu sou assim, e gosto de sê-lo.
Estava conversando com o Giovanni, um simpático italiano. Baixo, nariz alto, falante e irrequieto. Não para de falar e gesticular. Pormenoriza tudo. É incapaz de dizer macarronada, sem ensinar como sua mama fazia. Estava com ele, sentado em uma mesa de uma pizzaria, saboreando uma pizza à calabresa. A casa era famosa, e por isso a clientela era grande. Rodeavam-nos as mais estranhas figuras, de várias nacionalidades. Foi quando me lembrei da minha lacuna cultural. Disse para o Giovanni:
– Vocês italianos são agitados. Suas vidas íntimas também vivem dessa forma?
– É, lá em casa minha família fala ao mesmo tempo, e cada um querendo falar mais alto que o outro, até virar uma gritaria. Mas isso nos dá bom humor. Somos felizes assim.
Lembrei-me da música italiana. São rápidas, por exemplo a Tarantela, sem contar as óperas, verdadeiras fontes de energia. Já voei na imaginação. Se eu não posso viajar, o Giovanni, que conhece o mundo inteiro, vai ser o meu informante.
– Italiano – como o chamavam carinhosamente – os ingleses são bem diferentes de vocês, não são? . Perguntei informalmente.
Depois de pensar um pouco, confirmou:
– É. São sim. Por que será?
– Pelo modo do andar deles. Justifiquei.
– Não entendi.
– São comedidos no falar, andam com calma com passos firmes e seus gestos são suaves. Isso os torna diferentes, considerando que o movimento é uma ação que gera uma reação. Será que isso não pode caracterizar uma natureza espiritual de um povo? Argumentei
O Giovanni me olhou desconfiado. Somos amigos e por isso ele me conhece bem. Percebeu que eu tentava uma ligação do que falávamos, com a umbanda.
– A pizza está boa? – perguntou, para desconversar, pois era um medroso do espiritismo.
– Está. Analise o argentino, adorador do tango. É um movimento macho, austero, estudado, que retrata, via de regra, a desgraça amorosa. E eles gostam de contar os sofrimentos, sempre dos outros – brinquei. São amantes da vida, de um brio diferenciado, apaixonados por tudo que fazem, e admirados pela cultura política do povo comum. Deve ser o resultado da reação do movimento da dança por eles preferida. E os franceses, inveterados amantes, delicados e galanteadores, não seria o som musical de suas musicas? O Maurice Chevalier não é protótipo deles? E que tal o chá servido pelas gueixas, com as saias apertadinhas e passinhos curtos, se ao invés daquela música fosse um samba brasileiro? Ou as nossas mulatas cariocas andassem como as gueixas? Reparou como cada um está ajustado às músicas? Concluí.
– Você não vai me contar nenhum caso de espírito, não é? Suplicou o Giovanni.
– E o americano. Dançarinos de rocks, funks e sei lá mais o que, e ainda mascando chicletes. São dinâmicos, presentes e dominadores. Seus gestos os levam para esse lado. – afirmei. Os irlandeses são admiradores da gaita de foles. Não te parecem felizes? Será que são as suas áreas verdes, ou o movimento ritmado do som de seus instrumentos musicais?
O Giovanni fez um gesto, como pedindo uma pausa na conversação. Respeitei seu pedido.
– Por falar nisso, garçom me traga uma coca-cola.
Com tudo o Italiano concordava. Ele sabia que não me podia tirar da minha inculta viagem. Só eu falava, tanto que tive que pedir ao garçom para esquentar minha pizza, enquanto ele já tinha comido duas.
– Veja o que está acontecendo hoje no oriente médio. Quem sabe se, ao invés de se auto punirem em nome de Allah, e suas danças fossem mais alegres, não houvesse tanto sofrimento.
– Nunca vi tanta bobagem.Criticou resmungando.
– É, eu sei. Mas é uma idéia, não é? Sabe que na umbanda o movimento tem magia?
– Sabia que você ia chegar na macumba. Ironizou
– É a corimba. Os índios eram mestres nisso. Cada movimento atraí um tipo de vibração, por força da própria ação desses gestos. Falei com seriedade.
– Como assim? Perguntou o ignorante.
– Se você na gira, ao cantar uma música, dançar – no mesmo lugar, tomei o cuidado de explicar, você está trazendo um pedaço de vibração de qualquer lugar, que seja compatível com a dança. Você já viu as oxuns corimbando no terreiro?
Apesar de medroso, às vezes eu levava o Giovanni para assistir uma gira no terreiro, o que lhe dava insônia.
– Se são aquelas entidades que ficam rodando e olhando para a palma da mão, como se tivessem um espelho, já vi. Confirmou contrariado.
– Não te lembram as águas de um rio? E as Iemanjás, não te levam até as ondas do mar? Os Oguns, não parecem soldados romanos? Os Xangôs não te lembram a dureza das pedras e a ira dos trovões? E as Iansãs, não parecem ventanias? E os caboclos de Oxóssi? Não te lembram as matas?
Cada vez que eu falava, ele com a boca cheia de pizza, confirmava com a cabeça.
– Então, Giovanni, agora você já sabe que quando precisar de auxílio da natureza, você tem que fazer um movimento que vibre no local da força que origina essa energia. Isso, em síntese, é magia! Exclamei triunfante.
– E você, Fernando. Onde se encaixam os teus movimentos? Anda todo torto, um dia calmo, no outro agitado, não sabe dançar, e quando o faz é sem ritmo, às vezes tua expressão está tranqüila, outras não, às vezes é violento. Afinal, você o que é?
– Eu? Eu sou brasileiro, tentei escapar. Garçom, traga a conta para o meu amigo aqui.
A gira estava animada, e eu, eufórico por ter sido convidado para ingressar na gira, depois de três meses freqüentar a assistência no terreiro.
Todo de branco, a tudo acompanhava atentamente. Sempre fui tímido para dançar e cantar. Mentalmente acompanhava o ritmo da música. Queria ser um bom médium. Embora já tivesse a prática de vinte cinco anos na linha kardecista, segurava minhas incorporações no terreiro. Também pudera! Na última vez que incorporei na umbanda, fui parar dentro do congá. Mania de kardecista de incorporar com o olho fechado. Foi ridículo. Incorporei, fechei os olhos e saí pelo salão dando vibração no ar. Justifico-me: fiz o que sabia. Foram me buscar, no meio das imagens. Quando entrei na gira, o pai-de-santo me chamou para um conversação:
– Tenho um constrangimento muito grande de mexer com você.
– Constrangimento? Por que?
– É que você já tem vinte cinco anos de pratica. Não posso dar o mesmo tratamento dos médiuns comuns.
– Não só pode, como deve. – afirmei. Kardecismo e umbanda são diferentes. O que lá aprendi, ao menos por enquanto, aqui não vou usar. Ao ingressar na corrente, depositei em tuas mãos o meu futuro mediúnico. Se eu for um bom médium, o mérito será teu, e, em caso contrário, a culpa será tua. Finalizei, pondo o pai-de-santo bem à vontade.
– A umbanda é exigente, os médiuns devem obedecer as ordens da hierarquia do terreiro. Se eu usar de toda a autoridade recebida pela lei da umbanda, você pode ficar, em alguns momentos, com raiva de mim, a ponto de querer até chorar e ir embora.
Percebi ter caído numa armadilha. Era o que ele queria ouvir. Não tive alternativa. Fiquei encurralado na trama do pai-de-santo. Foi um bom aprendizado: prender a pessoa, através do jogo das palavras. Asseverei:
– Sou um homem disciplinado e obediente. Pode fazer e dizer o que quiser, e acatarei a determinação, com muita humildade. A não ser que você me falte com o respeito.
– Que bom! – exclamou, aliviado. Tome nota das primeiras ordens: quando você chegar no terreiro, beije a minha mão e de toda hierarquia, inclusive dos ogans dos atabaques. Não me chame mais, aqui dentro, de Ferro. Dirija-se a mim, como “pai” ou “padrinho”. E quando você estiver na gira, cante, mesmo que não saiba, por ser o canto um mantra da umbanda. E dance, por ser a dança, um movimento necessário. Mesmo, que você tenha vergonha ou não saiba. E tem mais: ponha uma roupa mais adequada. Essa que você usa, embora seja branca, não está igual aos outros da corrente. E desde já você está escalado para sábado próximo, vir ajudar na limpeza do terreiro.- fechou a cara, deu as costas e me deixou sozinho.
Corri atrás dele.
– Padrinho, com licença. – arrisquei, respeitosamente. Só para eu saber, qual é a hierarquia do terreiro?
– Além de mim, a mãe-de-santo, minha esposa, a mãe-pequena, os capitães do terreiro, e os ogans da engoma. – respondeu, agora de forma delicada.
– Engoma? E o que é engoma? Perguntei.
– Engoma é o conjunto dos instrumentos que fazem a musica no terreiro – explicou. E os atabaques têm nome: rom, rumpi e ê.– encerrou.
Fiquei pensando: será que foi vingança daquele índio por me ter negado bater a testa três vezes?
Acho que todos vão concordar comigo que o banheiro é nosso esconderijo responsável por momentos de nossa necessária privacidade. E é nessa importante peça de nossa casa que está o espelho, um elemento de grande utilidade na magia.
Entre outras tantas formas dos magos usarem o espelho é buscar no espaço o reflexo dos elementos para aumentar a força dos trabalhos na construção de campos de energia. Presto-lhe minha reverência, por acolher em sua essência o inverso de tudo. Certa vez, exercendo o direito do meu recolhimento neste cômodo, vi minha imagem refletida no enorme espelho estrategicamente colocado na parede. Somos displicentes com o nosso outro eu. Nós usamos o espelho para limpar os dentes, pentear os cabelos, fazer a higiene e conferir se a roupa está adequada com nosso gosto. Nesse dia olhando concentrado e fixamente para minha imagem refletida levei um susto: aquele homem dentro do espelho era outro. Seus olhos eram misteriosos e o seu rosto não me pareceu familiar. Era o outro eu, ainda meu desconhecido. Foi uma experiência incrível, por isso divido-a com os outros, recomendando a mesma tentativa. Os que já me ouviram tiveram a mesma sensação. E foi essa a convicção da minha inspiração na conversa com o Julio sobre o inverso da umbanda.
O Júlio é alto e apesar de seus cinqüenta e tantos anos mantém um corpo de jovem. Seus cabelos são grossos, bem penteados, pretos e salpicados nas pontas de um grisalho compatível com a sua idade o que me cria uma recriminável inveja por eu ser calvo. A verbosidade é a sua maior arma para manter acesa uma discussão. E com ela nos digladiávamos com eloqüência e em calorosa defesa das idéias da religião. Um grupo de quase meia dúzia de adeptos da umbanda ouviam curiosos nossa discussão. Era ele quem dizia:
– A umbanda se perde no tempo. Existe há milhões de anos.
– Você está confundindo. As vibrações cósmicas e a mediunidade nasceram com o homem. A religião chamada umbanda tem menos de cem anos, considerando ter nascida oficialmente em 1908, no Rio de Janeiro. Foi anunciada pelo Caboclo Sete Encruzilhadas incorporado no médium Zélio de Moraes. Rebati.
– A umbanda é uma religião afro-brasileira, originada do candomblé. Afirmou.
Ele ficava irritado e sua grossa voz já estava passando da tonalidade própria dos cavalheiros. A minha acompanhava o mesmo diapasão.
– A umbanda é uma religião autenticamente brasileira. É formada por grandes falanges de espíritos na qual predomina o nosso índio, não usa o sangue como elemento nos trabalhos, não prega o medo e muito menos exige compensações financeiras pelo exercício da mediunidade Está na hora de mudarmos os conceitos. Vamos colocá-los diante do espelho e descobrir o seu inverso. Eu dizia, inflamado.
Como estávamos no jardim da casa de um amigo comum, convidados que fomos para uma reunião, sugeri que nos uníssemos aos demais convivas ao até então aprazível evento. A idéia foi aceita. Enquanto desabotoava o seu jaquetão cinza para sacar de um cigarro, ele me comunicou em educado sussurro:
– Como amanhã é domingo, vou te visitar para continuarmos nossa conversa.
Na minha casa nós ficamos na sala, antes ajeitada para recepcionar o Julio. Ele era meu amigo íntimo por isso já foi servindo o cafezinho, vestido à vontade, sem a horrorosa gravata amarela que destoava de seu terno cinza claro, demonstrava estar de bom humor. Iniciei a conversa:
– Vamos trocar idéias sobre a umbanda buscando uma interação religiosa e não discutir ou compará-la com outras religiões. Estou fazendo essa sugestão por querer que você me ajude a consolidar a filosofia que há anos estou tentando implantar no terreiro que dirijo. Está combinado?
– Não sei se vou conseguir ficar quieto, mas prometo tentar. Brincou.
– Antes de tudo quero deixar claro que não combato nenhuma religião ou forma de exercê-la. Respeito o livre arbítrio de cada um e confesso só ter uma noção básica do candomblé apesar de achar essa religião muito bonita, forte e que reúne adeptos de grande envergadura cultural. Apenas sou contra a mistura da umbanda com o candomblé. Tive uma experiência com o espelho que me fez repensar toda minha conduta humana, inclusive a espiritual. Tudo tem o outro o seu inverso. Dentro do bem reside o mal e vice-versa, dentro do mal existe o bem. A umbanda tem que ser redescoberta. Não tenho a pretensão de descortiná-la, mas tenho o dever de entendê-la, sem precisar conhecê-la.
O Júlio estava circunspeto demonstrando estar bem atento e surpreso com minhas explicações.
– O inverso da umbanda? Você quer dizer descobrir coisas ainda não reveladas?
– As coisas reveladas e não entendidas. Quero juntar as peças e concluir o quebra-cabeça. Depois de explicar continuei: descoberto o Brasil, os índios então os legítimos donos da terra foram escravizados. Com a não adaptação ao regime da escravidão os portugueses, escrevendo a mais triste página da nossa história, trouxeram escravos negros da África. No decorrer dos tempos os africanos já mais adequados às suas condições de serviçais, misturaram sua raça negra com a vermelha do índio e entre elas a intromissão dos brancos. As três misturas deram início à civilização brasileira. Não foi só a raça que se misturou: a religião também. A prática da cultura religiosa dos indígenas com os africanos foi proibida pelos brancos que impunham o catolicismo entre eles. A religião dos brancos foi refugada pelos negros que criaram o já conhecido sincretismo católico na umbanda. Esses espíritos dos índios, negros, brancos, europeus e religiosos católicos, reencarnaram aqui mesmo no Brasil, cheios de crenças, misticismos e filosofias espirituais. Os Arquitetos do Espaço resolveram juntar todas as suas filosofias religiosas em uma só: a Umbanda! Ela foi planejada e criada para atender o povo brasileiro. Por ser nova e pouco estudada, a miscelânea de conceitos está gerando uma confusão muito grande. Dizem ela ser originada do candomblé. A sobrancelha grossa do Júlio levantou e ele interveio:
– E não foi?
– Pelo pouco que sei do candomblé, são religiões antagônicas, exceto quando são misturadas, o que desagrada tanto os adeptos da umbanda como do candomblé que não tem nenhuma vinculação com o sincretismo católico. Aí vem a revelação do inverso: devíamos pregar e cultuar a umbanda dentro da lógica dos acontecimentos históricos do Brasil. Acho que basicamente os espíritos que fundaram e trabalham na umbanda têm alguma página dentro da época do descobrimento do Brasil.
O Júlio não se conteve:
– E o preto-velho não é o africano?
– Estou inclinado em acreditar que ele foi trazido através da descendência da raça africana que criou a capoeira, hoje o único esporte brasileiro. Repare que todos os pontos da linha dos preto-velhos são iguais às musicas da capoeira. E ela foi criada pelos africanos à guisa de esporte mas na verdade era um meio de defesa. E a capoeira nasceu antes da umbanda. Não tenho nenhuma dúvida que a umbanda tem que seguir seus princípios morais e filosóficos ensinada pelos espíritos, mas deve ser revista adequando-a à lógica correta de uma religião independente, maravilhosa e múltipla na sua construção, sem nunca esquecer que ela é autenticamente brasileira.
O Júlio mal se continha. Indagou:
– Baseado no que você afirma isso? Foi o espelho que te contou? – ironizou.
– De certa forma. Ele me disse para ser ousado e buscar respostas por mim ainda desconhecidas. Veja uma delas: por quê o orixá Oxum carrega um espelho? Impossível ser vaidade, defeito que lhe derrubaria o título de espírito superior.
Atrapalhei o Júlio. Parou uns instantes olhando-me para pensativo e torpedeou:
– Você sabe?
– Eu não sei, mas espero descobrir. Quem sabe nós devemos buscar a resposta pesquisando o inverso do orixá. Mas antes devemos ver o inverso de nossas ações que ferem a espiritualidade ensinada pelos espíritos que fazem a umbanda.
O Julio despediu-se e prometeu fazer a experiência do espelho. Tenho certeza que vai aproveitar, pois se não encontrar o seu outro “eu”, ao menos vai se admirar.
O Domingos era um membro da corrente. Gordo, brincalhão e alegre, era muito querido por todos. Dizia coisas desconexas.
Falando sobre preparação espiritual dos médiuns, deixou escapar uma das suas marcantes falas:
– A gente lê, estuda e aprende. Quando vem o espírito, ele faz o que quer, não adiantando nada o que se aprendeu.
O pai-de-santo fechou a cara, demonstrando sua indignação pelo comentário do festejado gordo, principalmente por contradizer tudo aquilo que ele pregava. O Ferro costumava berrar, gritar, reclamar por tudo, mas tinha um coração imenso. Toda aquela postura era mentirosa. Mas, filho de Ogum não deixava as coisas para depois. Interrompeu e vociferou:
– Domingos, você é um burro! O médium tem que dar condições ao espírito, para poder extrair sua cultura. Na umbanda chamamos o médium de cavalo. Um cavalo bem domado, sabendo andar, trotar e galopar, deixar ser montado e obedecer as rédeas, facilita ao cavaleiro. Quanto mais preparado, cultural e espiritualmente, mais fácil para o espírito dar sua comunicação. Você é um imbecil!
Apesar da grosseria das palavras, todos, inclusive o Domingos, acharam graça da forma do pai-de-santo expressar-se.
Embora comum e fundamental para a religião espírita, a incorporação de um espírito com o médium é um grande mistério. O Domingos acreditava que não adiantava nada o médium ter cultura espírita. Já o pai-de-santo com sua experiência pregava o contrário. Foi com outro espiritualista que entendi a incorporação e a necessidade da preparação do médium.
Naquela ocasião, ainda não conhecia o Andir de Souza, um experiente pai-de-santo. Gosto de conversar com ele e, principalmente, trocar idéias sobre a umbanda. Falávamos sobre a mediunidade, principalmente no que se refere a diferença da mesma entidade incorporada em médiuns diferentes.
– É a terceira energia – disse.
– Terceira energia? Explique melhor, pedi.
– O espírito é uma energia e o médium é outra. Cada qual com sua cultura, sensibilidade e conhecimentos. Um é um e outro é outro. Entretanto, quando a entidade toma o corpo do médium, essas energias se unem, formando uma terceira. Ambos estão ali presentes, reunidos em uma só força. É como dois em um.
– Como o café com leite? Tentei ajudar.
– Sim, boa colocação – elogiou. O café é uma bebida pura, o leite também. Os dois juntos criam uma terceira bebida.
– Isso explica bem. Se a entidade incorpora em mim, ela fica com uma parte que sou eu. Se incorpora em outro, fica com uma parte do outro. Não pode ser igual, em dois médiuns diferentes. Falei, para esclarecer minha compreensão.
– Isso mesmo, disse o Andir. Vamos imaginar um exu, incorporado em um médium manso, culto, amoroso, com sua aura limpa e vibrante. O mesmo exu incorporado em um médium menos preparado, violento, e cheio de ódio. Obviamente, no primeiro, ele vai trazer, em sua manifestação, toda esta parte boa do médium, misturada em sua energia. No segundo médium, vai ter que lutar para não deixar esta parte ruim do médium, se sobrepor à sua vontade. Vai parecer, para quem conversar com os dois médiuns, que não é a mesma entidade.
– O princípio do computador. Completei. O espírito só pode tirar do médium o que ele tem programado. Como um computador. Se seus arquivos são de má qualidade, só pode informar coisas semelhantes. É, está bem esclarecido este ponto.
Enquanto voltava para casa, pensando na proveitosa troca de idéias com o Andir, lembrei-me do Domingos.
– Pena que o Domingos já desencarnou, senão poderia explicar para ele o que o Ferro não conseguiu.
Já estava habituado às incorporações da umbanda. Cantava e dançava, estava solto, bem à vontade.
Incorporava, normalmente, o Pai Maneco, dentro da nova roupagem de preto-velho, entidade para mim fácil de lidar, considerando-se estar trabalhando com ele, na linha kardecista, já há vinte e cinco anos. Bebia cachaça e fumava cigarro de palha. Dava consultas sentado no toco, olhos abertos, sem necessidade de luz apagada. Soube que meu Orixá era Ogum e já tinha feito o cruzamento na umbanda e o amaci. Já me considerava médium pronto, muito embora, nas giras de Ogum, incorporava uma entidade que não tinha dado o nome. Tempos depois, o espírito declarou chamar-se Akuan, o meu pai-de-cabeça. É importante mencionar, já tinha abandonado o Centro Espírita. Optei pela umbanda por ter encontrado nela a minha necessidade religiosa. A diferença foi a batida alegre da música e a manipulação da energia da Natureza pela criação de campos de força. Senti-me mais seguro e protegido na umbanda.
A gira era de Caboclo. O pai-de-santo me chamou e me fez ficar no meio do terreiro, hábito comum quando ele queria chamar um espírito para incorporar num determinado médium.
– Intuí que um Caboclo está querendo incorporar em você. Fique calmo e concentre-se. Se tiver dificuldade, fique rodando, para você ficar tonto e facilitar a incorporação. Se não der certo, faça uma respiração rápida e curta, que você, com certeza, ficará bem amortecido. – orientou-me.
Mandou cantar o ponto do Caboclo Junco Verde. A incorporação foi rápida e forte, jogando-me de joelhos no chão, para só depois levantar e saudar a todos alegremente. Já tinha o preto-velho e o Caboclo. Só faltava o Exu. Bem mais cedo que esperava, o pai-de-santo chamou o Exu Tranca Ruas das Almas, que recebi sem nenhuma dificuldade. Pela imponência da entidade, diferenciava bastante dos outros exus. Fiquei intrigado e procurei o pai-de-santo, pedindo uma explicação. Ele atendeu:
– Nem todos os exus são iguais, mas, via de regra, os médiuns ficam muito apegados ao folclore, e ficam mancos, entortam as mãos e cometem outros trejeitos. É a falta de conhecimento dos médiuns que provoca esse quadro atípico da entidade, mas comum entre cavalos inexperientes.
O desenvolvimento da mediunidade na umbanda deve ser espontâneo, devendo o médium tomar o cuidado para não incorrer na imitação das incorporações de outras pessoas. O segredo é a paciência e a confiança nos responsáveis pela direção do terreiro, e nunca deixar de perguntar as dúvidas que tiverem.
No terreiro do Ferro, uma vez por mês, havia uma sessão fechada, para desenvolvimento dos médiuns. É um tipo de treinamento, onde os médiuns, numa gira fechada e sem assistência, trabalham suas mediunidades, sob a orientação dos dirigentes e médiuns mais experientes. Incorporei o Exu Tranca Ruas das Almas. No final o pai-de-santo fazia suas observações, explicando as coisas certas e erradas dos médiuns. Fiz uma pergunta:
– Durante a incorporação tive o impulso de ir bater a cabeça no ponto de segurança da gira. O espírito não foi. Estou em dúvida se fui eu, o médium, que atrapalhou a entidade não o deixando fazer o pretendido, ou se fui eu quem criou a idéia e ele não me deixou ir, por estar errado. – detalhei – independentemente dos meus problemas na incorporação, na sua ótica, seria certo ou errado ele ir bater a cabeça?
Nessa altura, toda a corrente estava em pé, me olhando, em silêncio, inclusive o próprio pai-de-santo. Fiquei sem jeito, pensando ter feito uma pergunta inadequada ou primária.
– Meus parabéns, Fernando. Exclamou.
Fiquei sem entender. Que fiz para merecer cumprimentos? – pensei. Ele continuou:
– Você é o primeiro médium, em meu terreiro, que faz uma declaração publica afirmando ser médium consciente. Para teu controle, todos teus irmãos de corrente, aqui presentes, juram serem inconscientes.
– Mas tenho que ser inconsciente para trabalhar na umbanda? Perguntei assustado.
– Claro que não. Eles é que pensam assim. Com medo de errarem, omitem o detalhe da consciência ou inconsciência, durante a incorporação. Não tem nada de errado ser médium consciente. Ao contrário, além de ser a maioria, é muito bom, porque assim você aprende as coisas que o espírito ensina. Arrematou.
Fui saber, mais tarde, que existem mães e pais-de-santo, que se dizem inconscientes, com a intenção de saberem as coisas contadas pelos filhos da corrente. Acreditam que, se os outros souberem da consciência, não contarão ao espírito suas dificuldades íntimas. É uma pura asneira, além de ser falso.
Tempos depois, fui cruzado no terreiro como pai-pequeno, em cujo cargo fiquei durante…anos e só sai daquela casa com morte de meu pai-de-santo.
Estava comandando uma gira da esquerda. A casa estava cheia, os médiuns alegres, o canto muito bem afinado. Por comandar a gira, não estava incorporado.
O pai-de-santo chefiava, espiritualmente, incorporado no Vovô Conrado. Estava no meio do terreiro, quando ouvi o famoso chamado da querida entidade.
– Careca, venha cá. – gritou.
Deixei meus afazeres e sentei-me à sua frente. Mexeu-se no seu trono, ofereceu-me a forte bebida e disse aos seus dois ajudantes, os cambonos:
Saiam daqui, que quero falar sozinho com o Careca. – ordenou.
Percebi uma certa gravidade, porque, mesmo sendo o chefe espiritual da casa, e estar incorporado no pai-de-santo, não se deve jamais falar com ninguém, sem a assistência do cambono. Os dois saíram e ele, olhando fixamente, deu a noticia:
– Careca, hoje é a última vez que estou incorporando neste cavalo. Ele vai ter alguns pequenos problemas, que impossibilitarão as incorporações e, mais tarde, vai desencarnar. Comunicou, de pronto.
Sou um homem de fé. Acredito nos espíritos, razão que me fez gelar, assustado. Minha reação foi imediata e em suplica:
– Não deixe isso acontecer, Vovô. Se ele não puder trabalhar, eu cuido do terreiro. Mas não deixe ele morrer.
Estávamos no mês de Setembro. O pai-de-santo Ferro, gozava de boa saúde e não demonstrava estar passando nenhum problema. Tudo estava certo na sua vida. Era um homem importante para a umbanda e para o próprio terreiro, que tão sabiamente comandava, há quase cinqüenta anos. Não aparentava a idade que tinha. Devia pesar uns setenta quilos, mantendo uma forma física invejável. Não sentia nele o espectro da morte, muito ao contrário, era todo vida e alegria. E eu me identificava muito com ele. Além de meu pai-de-santo, tornou-se um grande amigo. E ninguém gosta de saber que os amigos estão com os dias contados. Esperei, aflito, uma resposta da entidade à minha solicitação.
– Cuide do meu terreiro, Careca. E vou dar um conselho: para dirigir uma casa, você guarde teu coração no cofre.
Apoiado em sua bengala preta, levantou-se e ordenou o canto de subida para ele. Não acreditava no que tinha ouvido. Não era compreensível uma entidade dizer não incorporar mais, porque seu cavalo ia morrer. E falava de um homem incomum, especial mesmo. Todos o adoravam, apesar de suas rabugices. As lágrimas foram por mim contidas. Ele subiu e eu fiquei assustado. O pai-de-santo era médium inconsciente, ou seja, não sabia o que espírito tinha falado. Fiquei sozinho, amargando minha antecipada dor. Ele – o pai-de-santo e esposa, familiares e filhos de corrente comentavam sobre a bem sucedida sessão. Era demais para mim. Retirei-me, tristemente e comecei a pensar como poderia administrar seu desencarne, pois antevia as conseqüências entre todos nós, que o amávamos. Na minha fé, sabia ser inevitável o desencarne, sem prever sua data. Já estávamos em dezembro. Os sinais dados pelo Vovô Conrado estavam cada vez mais fortes. Não incorporou mais em seu cavalo.
Todos os anos o terreiro fazia uma festa de confraternização, reunindo os médiuns e seus familiares. Fui com minha mulher, para a qual também nada tinha dito da comunicação da entidade. Eu o via, alegre e com todos festejando, e não podia tirar de dentro de mim o segredo que com muita dor carregava, sem dividir com ninguém, desde que tomou o cuidado de afastar seus cambonos para me dar a notícia. Foi no começo do ano. Ao chegar em casa, recebi o recado:
– Alguém telefonou para você, dizendo que o Ferro teve um enfarte e vai ser operado.
Sabia ter chegado o momento. Os espíritos não erram. Perguntei:
– Qual o hospital?
– No Santa Cruz – informou
Fui ao hospital, onde já muita gente estava solidária com a família. Ela era benquisto e além dos amigos e filhos da corrente, sua família era grande. A Therezinha, então mãe-pequena no terreiro, aproximou-se:
– Marcamos um trabalho para hoje à noite, para que tudo corra bem. Informou-me com ar sombrio e triste.
À noite a corrente estava reunida. Fizemos trabalho na linha da umbanda, chamando os caboclos e pretos-velho. Eles se encarregaram de mandar cantar os pontos da linha do Oriente, conhecida pela cura de doenças físicas. No meio do terreiro, em cima da segurança, foi posto um ponto riscado, que dava para perceber, muito antigo. Perguntei à Therezinha que ponto era aquele.
– Este ponto foi riscado pela Madrinha – a dona Stelinha, esposa do Ferro, que o mantém aceso já há muitos anos. É para a saúde do Padrinho. Esclareceu.
– Mas ele já teve algum problema antes? Perguntei.
– Teve uma pequena doença e, feito o ponto, nunca mais o desfez alimentando-o com bebida, água e vela durante todo esse tempo, na sala do oriente.
Durante um mês, fizemos vigília, ora no Hospital, ora no terreiro, na expectativa de sua cura. Foi um período revoltante. Parece-me que cinco cirurgias foram feitas naquele homem, já marcado para morrer. Estava respirando, ainda, por força dos aparelhos hospitalares. Sabíamos, médicos e familiares, serem paliativas as cirurgias, diga-se, até agressivas – e caras. Todas as manhãs eu fazia uma visita ao Ferro. Numa delas, ele estava sentado em uma cadeira, no quarto. Fiquei surpreso.
– É para movimentar o corpo – disse-me a aflita esposa do pai-de-santo.
Meu pai-de-santo era sombra daquele homem esperto e ágil. Estava magro, pálido, barba crescida, falando quase por sinais. Ajoelhei-me ao seu lado, peguei sua mão com muito cuidado, por causa dos soros e agulhas em suas aparentes veias, e, talvez até emocionado, beijando-a, pedi-lhe a benção:
– Mucui meu pai.
– O velho Ogum, com seu olhar já enfraquecido pela doença, fazendo um esforço muito grande, tomou minha mão e, como sempre fazia, também a beijou, dizendo num sussurro:
– Mucui no Zambi – Deus te abençoe.
Era difícil vê-lo assim. Fui embora, muito triste, talvez não mais pelo seu iminente desencarne, mas por tudo que estava passando. Fiquei pensando porque o Vovô não vinha buscá-lo. Num Sábado, como diariamente fazia, fui ao hospital. Sentei-me com a Madrinha Stelinha, e enquanto tentava consolá-la, disse-me:
– Meu filho, o que mais podemos fazer? Implorando, não a mim, mas à espiritualidade, um raio de Luz.
– Madrinha, a senhora não vai gostar do que vou dizer.
– Fale. Ordenou-me.
– Acho que a senhora deve levantar o ponto firmado na linha do oriente. Respondi, determinado.
– Você pode fazer isto por mim? Aquiesceu.
– Claro, Madrinha. Vou já, e me retirei.
Telefonei à Therezinha e nós dois fomos ao terreiro. Levantamos e descarregamos o ponto. Na volta, conversava com ela.
– Não posso acreditar que um ponto riscado, embora alimentado, possa atrapalhar o desencarne de um espírito do naipe do Ferro. Mas tive uma intuição, e foi essa a razão de eu ter sugerido à dona Stelinha, levantar o ponto.
– Um ponto de firmeza, para segurar na terra o espírito de alguém, tem este poder de manter o espírito junto ao corpo, às vezes, além do necessário. Respondeu a Therezinha, demonstrando muito conhecimento e fé.
Conversamos sobre e assunto e deixei-a em sua casa. Retornei à minha. Ainda estava à mesa de refeições, junto com meus familiares, no nosso tradicional almoço dos sábados, quando o telefone soou.
– É alguém, comunicando que o Ferro morreu! – exclamei, instintivamente.
Minha mulher atendeu o telefone.
– Teu amigo morreu!
O Edmundo Rodrigues Ferro, conforme me fora anunciado pelo Vovô Conrado, desencarnou, trazendo uma tristeza muito grande para todos nós e apesar de abrir uma lacuna na umbanda, deixou como legado cinqüenta anos de eficiente desempenho na religião, e um ensinamento até hoje seguido por muitos, principalmente por mim. Fiquei, na ocasião, muito triste, mas hoje não estou mais. Só saudade física. Afinal, sinto quase sempre sua presença no terreiro e, para variar, dando ordens e palpites, os quais, sem discutir, acato muito agradecido!
Habituado com o estilo do meu pai-de-santo, Edmundo Rodrigues Ferro, em conduzir o terreiro, após sua morte não me adaptei ao da minha mãe-de-santo Stelinha de Oxum, a esposa de meu pai desencarnado.
Saí da Tenda Espírita São Sebastião, casa que ainda, volta e meia, vou visitar. Mas, naquela ocasião, sem casa para trabalhar, fiquei totalmente desorientado. Não queria voltar para a linha kardecista. Passei a visitar vários terreiros, na esperança de encontrar um que fosse compatível com aquele do qual tinha saído. Não o encontrei, embora tenha conhecido alguns belíssimos. Não houve sintonia vibratória entre mim e eles. Nas andanças, tive até momentos hilariantes. A Yedda, minha dedicada esposa, embora não participe da umbanda, a respeita e me prestigia. Ia junto comigo, tentando, como sempre faz, ser minha grande amiga e companheira. Nós gostamos de cães. Naquela época, uma cadela nossa tinha desaparecido e foi esse o pretexto usado por ela para correr comigo os terreiros. Eu, buscava axé, e ela, a cadela. Num terreiro, pedimos consulta na entrada e fomos indicados para falar com uma médium incorporada com uma entidade. Fomos juntos. Minha mulher explicou sua vontade de achar sua cachorra. Eu, no fundo, achava graça por essa distorção de consulta. A entidade disse que ia ajudá-la. Virou-se para mim e perguntou:
– E você meu filho, o que deseja de mim?
– Meu pai, só quero axé.
– O que? Também quer achar?
Durante uns dois meses não conseguia me decidir. Numa reunião com meus companheiros, fui provocado por eles para incorporar o Pai Maneco, pois, segundo meu aprendizado, e isso eles sabiam, jamais deveria incorporar qualquer espírito fora do terreiro por motivos de segurança. Diante de minha hesitação, eles insistiram. Acabei cedendo às solicitações, principalmente por estar necessitando de uma orientação mais direta para meu destino espiritual. Achei o momento oportuno. Após os devidos cuidados, veio o Pai Maneco. Já havia orientado meus companheiros para fazer-lhe perguntas, que me servissem de orientação.
– Que a paz de Oxalá, Nosso Senhor Jesus Cristo, e Iemanjá, a Virgem Maria, protejam todos vocês – cumprimentou, como seu hábito, a adorável entidade angolana.
– Salve, Pai Maneco – respondeu o Geraldo, em nome do grupo. – Meu Pai, seu cavalo quer uma explicação sobre tudo que lhe aconteceu.
– Tudo faz parte de um plano. Tinha que ser assim. Explicou lacônico.
– Seu cavalo quer que o senhor lhe indique o caminho que deve seguir. Voltar para linha kardecista, não quer. Está procurando um terreiro onde encontre afinidade, mas não o encontra. Ser pai-de-santo, uma das hipóteses, hesita, por ter duvida se é este o destino, ou se é uma vaidade inconsciente mexendo com sua cabeça – expôs.
– Meu filho, eu, o humilde preto-velho, sei que sou justo. Não poderia ser diferente, se vivo entre eles. Isso não é vaidade, é conscientização. Serei vaidoso, se quiser ser o mais Justo entre os Justos. Selou o meu querido mestre e protetor.
Continuou conversando com os presentes, sem mais nada falar sobre mim. Subiu e o grupo voltou à conversação. Eles perguntaram:
– E daí, Fernando. Deu para entender alguma coisa?
– Meus amigos, quando tenho necessidade de uma decisão importante, ouço a palavra dos espíritos, pelos sinais que me deixam, nas entrelinhas de suas mensagens. E eles me indicam que devo ser pai-de-santo. Comuniquei a todos.
Sou um homem de fé e decidido. Já não tinha mais nenhuma duvida do meu destino, exceto o Geraldo e o Francisco, meus dois companheiros que não se conformavam com a minha saída do terreiro do Edmundo Ferro. No dia seguinte a nossa conversação, os dois foram à minha casa. Tentavam me dissuadir e me aconselhavam a voltar à casa onde ambos ainda permaneciam. Depois de várias tentativas em me demover da decisão, eu já começava a ficar impaciente.
– Vocês ouviram ontem a mensagem do Pai Maneco. Ele disse ser este o caminho. Acham que vou ignorar a palavra do espírito?
Eles se entreolharam, demonstrando terem alguma dúvida. Não hesitei:
– A não ser que a mensagem por ele deixada foi interferência minha. – arrisquei.
O Geraldo não pensou duas vezes ao responder:
– É uma possibilidade muito grande de ter acontecido, considerando o teu atual estado de perturbação.
Não queria acreditar no que estava ouvindo. Tanto o Geraldo como o Francisco, não podiam duvidar da minha capacidade de transmitir as mensagens do Pai Maneco. Fiquei chocado e em silêncio. Foi quando ouvi a voz do Pai Maneco, no meu ouvido, dizendo:
– Não admito dúvidas sobre você. Vou incorporar no Francisco, e confirmar tudo que falei ontem por sua mediunidade.
Fiquei emocionado. Sem nada dizer, fiquei na expectativa da incorporação prometida. Não demorou, e o Francisco, mesmo relutando, foi dominado pela entidade, e, sob minha forte emoção, realmente repetiu a mensagem anterior. Ajoelhei-me em sua frente, tomei as suas mãos, e beijando-as suavemente, agradeci:
– Muito obrigado, Pai Maneco! – e me afastei, deixando sobre as mãos do Francisco, duas lágrimas por mim derrubadas.
A partir desse momento, recebi só apoio dos meus dois companheiros.
Estava atento à aula de catecismo que a Francisca estava dando nas dependências da Igreja do meu bairro a um grupo de meninos, entre cinco e dez anos. Era preparação para fazer a primeira comunhão dentro do catolicismo.
Eu era um dos alunos com a idade mínima. Não era só a religião que me fascinava: a Francisca também. Minha paixão por ela transcendia o limite da benquerença, para se infiltrar no sonho do impossível, onde deixava transbordar meu amor por aquela mulher. Nos meus desejos, só queria ter mais vinte anos de idade, para poder cortejar a dona daquele rosto redondo, risonho e aquinhoado pela divina arte do belo. Embevecido eu cuidava para que a classe ficasse quieta e atenta às palavras da formosa professora.
Naquele dia eu não devia ter ido à aula, mesmo que fosse minha primeira falta. O encanto que ela exercia sobre mim foi profanada por ensinamentos rudes e contrários à minha infantil percepção religiosa. Ela sentenciou:
– Quem falta às missas nos domingos está cometendo um pecado mortal.
Em aulas anteriores ela tinha ensinado que quem cometesse um pecado mortal iria para o inferno. Na ocasião achei forte a pena, mas meu otimista raciocínio isentava minha pessoa da negra ameaça: era só não cometer nenhum pecado. Mas faltar a missa era pecado mortal? Retornei à minha casa, desiludido com a minha amada, com a religião católica, com os padres e os santos. Só perdoei Deus e Jesus Cristo. Jogando no lixo o material que carregava para à aula, corri ao encontro de minha mãe e comuniquei:
– Não vou mais fazer a primeira comunhão. Essa religião não presta.
– Por que?
– A Francisca disse que você e o pai vão para o inferno porque vocês não vão nas missas e têm pecado mortal. Falei, dando as costas e correndo para a rua, na ânsia de recuperar o meu tempo perdido na igreja, e arranjar uma nova namorada.
A lembrança de um fato acontecido há mais de sessenta anos, foi reavivada durante uma palestra que fazia a um grupo de umbandistas. Tomava o cuidado de ser bem claro nas explicações, buscando sempre a lógica. Foi quando uma risonha moça presente pediu a palavra para dizer:
– Eu estou muito feliz na umbanda. Minhas entidades são maravilhosas. Sempre estou fazendo oferendas, para agradecer o bem que me fazem.
– Você conhece a estrutura de um terreiro?
O olhar espantado da moça revelou que ela nada conhecia. Contei para eles, se bem que direcionada à risonha loira, uma história do Pai Maneco:
“Quando vocês saboreiam a fruta de uma árvore não se preocupam em saber que ela teve início com uma pequena semente que cresceu, ficou adulta, criou fortes raízes que extrai a água e a força da fértil terra e produziu flores que se transformam em frutos. Foi um longo processo e mesmo assim vocês não agradecem à árvore e toda a organização natural que a torna produtiva e forte. Seus olhos só enxergam a fruta.”
Todos aguardavam a continuação da minha explicação. Os pontos tinham que se encontrar. Sabendo disso, continuei:
– Um terreiro de umbanda teve um começo, provavelmente uma semente simbolizada pela vontade obsessiva de um pai-de-santo. Cresceu e criou raízes estruturando fisicamente a casa, firmada com vários pontos magnéticos e de força para manter sua harmonia. O empenho material para as construções físicas, tudo muito caro e sem um provedor, o cuidado com uma corrente de médiuns honestos e caridosos, onde sempre se infiltram os mal intencionados, que têm que ser expurgados como se faz com a parasitas das árvores, faz brotar a flor do amor e da vontade de ajudar os semelhantes. Tudo isso e muito mais que eu talvez não tenha mencionado é que dão as condições para que possa ser oferecido à vocês um fruto mágico colhido das sagradas mãos dos orixás, com o doce sabor de uma madura e gostosa fruta.
O silêncio na sala e o sério olhar da já não mais risonha loira, demonstravam claramente terem entendido a mensagem que um terreiro de umbanda só abre suas portas graças a uma insistente organização material, sustentáculo de uma boa vibração espiritual. Continuei a explicação:
O terreiro é o templo dos Orixás onde se realizam os cultos da umbanda. É um construção que tem um congá, onde ficam as imagens das entidades, um espaço para a realização das giras e a parte onde fica uma eventual assistência. No espaço das sessões estão enterradas no meio as armas do orixá mandante da casa, além das seguranças necessárias, indicadas pela entidade chefe. Enfeites quase sempre estão ornando a casa, como flechas, machados, espadas e retratos das entidades. As dimensões do terreiro são adequadas para o número dos médiuns que constituem a corrente. Uns têm construção requintada e outros são simples. Todo terreiro tem na sua entrada a tronqueira, onde estão alojadas as armas do exu guardião, necessariamente da linha Tranca Ruas, sabidamente a segurança dos terreiros de umbanda, independente da linha de seu dirigente. Dentro do espaço dos terreiros também existem o roncó, lugar destinado aos alguidares dos santos de cada médium do templo, e a casa dos exus. Esta, basicamente, é a ordem material de um terreiro de umbanda. Eu não faço distinção da qualidade de um terreiro pela sua construção física. A limpeza espiritual é que vale.
As diferenças ficam por conta do tamanho da corrente, do bom gosto dos dirigentes ou pela aplicabilidade coerente de um arquiteto. São diferenças puramente materiais e que dependem também dos recursos financeiros do grupo, os anônimos provedores do dinheiro para a construção da casa, e da habilidade dos dirigentes de promoverem eventos para a coleta de moedas que paguem o preço de um mestre de obras e seus pedreiros. Essa são a realidade e as dificuldades para a construção de uma templo de umbanda. Os dirigentes da Umbanda são pobres porque seguem à risca o ensinamento da alta espiritualidade que nos ensina “dar de graça, o que de graça recebemos”. E quem fugir desse princípio e vender seus passes e orientações espirituais, vai cair no outro ensinamento, pouco conhecido, talvez por conveniência: “quem recebe, já está pago”.
Tudo isso acolhe um mundo invisível: o dos espíritos! É uma energia paralela que se modifica, de acordo com a vibração e o axé da casa. Durante o desenrolar de uma gira de Oxóssi, o espírito de um índio incorporado em um médium com experiência, conversando comigo, perguntou:
– O que você vê agora no terreiro? Descreva tudo que teus olhos podem enxergar.
– Eu estou vendo o congá iluminado com as velas, os médiuns em volta, todos de branco, alguns incorporados, a assistência silenciosa a tudo assistindo e, lá atrás, as paredes que cercam o terreiro.
– Eu já estou vendo de forma diferente. – falou o poderoso guia. O congá é uma mistura de cores. Oxalá está irradiando para todo o ambiente uma luz prateada e brilhante, que se mistura com as outras cores dos orixás. Essa luz como um arco-íris está ligada no centro do terreiro onde está a segurança. Os médiuns que você viu, eu não enxergo. No lugar de cada um estão os índios e índias, todos armados, alguns com seus cocares mantendo um brilho intenso. Eles rodam e emitem luzes para todos, formando uma espécie de cerca iluminada por várias cores nunca vistas por vocês. A assistência também desapareceu e, em seu lugar, várias falanges e tribos de índios estão de prontidão no aguardo de um chamado para fazerem a defesa dos que estão no meio. Paredes não existem. Nós estamos no meio de uma campina cercada por um verde e lindo mato, iluminado por uma luz que nunca se apaga e é mais brilhante e forte que o sol na Terra. Toda essa luz e alegria estão temperadas com a música emitida por vocês. Talvez a imagem mais bonita ainda seja a de um cavaleiro montado em um cavalo branco galopando em volta de todos. Cada vez que seu corcel bate as patas saem faíscas da cor do sol, que se mistura com as outras do terreiro. O cavaleiro armado e imponente é um guerreiro de Ogum. Do meio de seus olhos sai uma corrente energética, que direcionada para algumas entidades sofredoras, trava seus movimentos e amortece seus corpos, fazendo-os cair em sono profundo, do que se aproveitam os índios para carrega-los para um lugar onde receberão orientação.
– Que linda essa visão, Caboclo. Quer dizer que todos os terreiros de umbanda são mágicos assim?
– Não pense você que todos são iguais. Quando as coisas não são bem feitas, as seguranças não são cuidadas, os médiuns negligenciam nas suas preparações e a corrente não fica coesa no mesmo propósito espiritual, tudo pode mudar para visões bem piores, havendo o risco da escuridão e o trânsito livre das entidades trevosas.
– Nós corremos esse risco? Indaguei, assustado.
– Não, vocês não estão correndo esse perigo, pela firmeza dos orixás da casa. Esse perigo, se continuarem assim, não ameaça este terreiro. Mas as oscilações existem. Cuidem-se. Recomendou.
Fiquei aliviado. Senti a responsabilidade que temos quando abraçamos uma religião. Mas não posso viver sob o horror do medo, e para isso é necessário ter fé, calma e sobretudo, obediência ao comando dos espíritos. E acho que, como eu, todos os terreiros de umbanda recebem a mesma orientação, e por isso nossos terreiros são uma fonte de energia e de luz. E foi bom saber que as paredes do terreiro desaparecem mostrando um mundo diferente, de amor e suavidade, bálsamo de nossas dores e mola propulsora de nossa vontade de vencer as dificuldades. Dias depois alguém observou que o terreiro estava pequeno para a quantidade de médiuns. Lembrando-me do ensinamento do índio guia, observei:
– Pequeno? Como pequeno se não temos paredes e nosso espaço é ilimitado?. Respondi, deixando o interlocutor sem entender o que eu dizia.
O grupo parecia satisfeito com nossa conversação. Estava com frases formais e tradicionais para por fim ao encontro, quando alguém me perguntou:
– Por que no início você estava tão pensativo?
– Estava me preparando para não repetir o mesmo erro cometido há tempos por uma linda e simpática professora de catecismo. A imposição do medo fez a Igreja Católica perder talvez um fervoroso e disciplinado seguidor de seus ensinamentos. Encerrei, sabendo que não seria entendido.
Já conhecia o Luiz Gulini, um jovem pai-de-santo de grande força mediúnica.
Simpatizei com ele, atraído pela respeitosa maneira de falar da umbanda, além de deixar transparente a sua simplicidade e os conhecimentos demonstrados pelos mistérios da umbanda, trabalha com o Exu Tranca Ruas das Almas, a mesma entidade a quem eu, orgulhosamente, servo como médium. Fui falar com ele e solicitei:
– Luiz, preciso receber a coroa de pai-de-santo. Gostaria muito se você pudesse me preparar.
Sua surpresa foi visível, embora tenha demonstrado satisfação.
– Com muito prazer, Fernando. Grato pela confiança. Mas por que eu, uma pessoa simples?
– Por isso mesmo.
Durante vários dias tínhamos encontros constantes, não só eu pedindo explicações, como ele me ensinando o que julgava necessário. Com seus companheiros e sua esposa Dilma, cuidou da preparação do sagrado ritual: a feitura de um pai-de-santo.
– Vou deitar você na camarinha, enquanto preparamos os pratos para as obrigações. Informou-me.
– Luiz, você é uma pessoa jovem, já pai-de-santo, e sabe muito da religião. Onde aprendeu?
– Com minha mãe-de-santo Lourdes. Inclusive, na sua preparação, sempre pergunto para ela alguma coisa. Não quero errar. – afirmou.
– Fique sossegado, você não vai errar. Falei, confiante.
Ele confeccionou as belas guias de contas, não só a que identifica a hierarquia de dirigente, como as das demais entidades. Comuniquei-lhe meu desejo de fazer o ritual na minha casa do litoral. No dia marcado, fomos todos, o Luiz, o Geraldo Carrano Almeida, a Dilma e alguns membros de sua corrente. Tiramos a cama do quarto onde, com muito zelo, ele estendeu no chão uma esteira, cobrindo-a, cuidadosamente, com um lençol de pano virgem. Na cabeceira, dentro de um alguidar de louça branca, estavam as ervas e bebidas dos orixás, onde foram postas todas as guias. Cercou a esteira com nove velas de cera, destinada aos sete orixás e às linhas do oriente e africana. Convidou-me a segui-lo
– Venha ver como vai ser.
Fomos até a cozinha. A Dilma, hoje mãe-de-santo, comandava um simpático grupo de moças, todas devidamente paramentadas com as saias rodadas, guias e, enquanto cozinhavam e cortavam frutas, entoavam suaves pontos da umbanda. Ele esclareceu:
– Amanhã cedo, quando eu te tirar da camarinha, iremos fazer as entregas.
Com o turíbulo fumegando cheirosa fumaça, o Pai Luiz defumava todo o quarto, também fazendo sua louvação à defumação, cantando pontos. Todos defumados, convidou-me a entrar.
– Quem serão teus padrinhos espirituais? Quero chamá-los, cantando seus pontos.
Eu já os tinha escolhido e por isso não hesitei:
– O Pai Joaquim de Angola e a Cabocla Guaracira.
O Pai Luiz me fez entrar no quarto e, após algumas orações, me convidou a deitar.
– Esta camarinha é o momento da reflexão. As entidades deverão aproximar-se de você que, neste momento de paz, terá condições de receber muitas orientações. A cada nova percepção, bata o adejá que virei conversar com você. Estou aqui, do seu lado. Fique em paz, meu filho. Cumprimentou e afastou-se.
Senti muita paz, segurança e, acima de tudo, sabia que minha coroa estava sendo feita por pessoa competente, o jovem Pai Luiz de Ogum. Pensava como eu iria comportar-me no futuro, como um dirigente espiritual. Conseguiria reunir as pessoas em minha volta? Seria determinado o suficiente para construir o futuro? Teria condições para atender e orientar outras pessoas? E qual seria a diferença de incorporar as entidades, após a feitura? Foi quando senti a presença do Caboclo Akuan, querendo dizer alguma coisa. Falamos mentalmente e ele disse:
– Vou dar meu ponto cantado.
– Que bom meu pai. Seu axé. Implorei, ao mesmo tempo que batia o adejá chamando pelo Pai Luiz.
Ele entrou, sempre silenciosamente, sem nada dizer, olhou-me como me inquirindo.
– Pai Luiz, o Caboclo Akuan quer deixar seu ponto cantado.
Tirando uma caneta e um papel, ajoelhou-se ao meu lado para escrever as palavras que eu transmitia:
– Ogum chamou das matas, Akuan para trabalhar; sua lança e sua flecha são armas neste congá; vencedor de demandas, os seus filhos vem salvar; é caboclo, é guerreiro, vamos todos saravar – ditei as palavras.
– E a melodia?. Pediu.
– Ele disse para você e o Geraldo ficarem na sala, que ele vai intuir.
Na verdade, em poucas tentativas a música ficou pronta, e até hoje cantamos este ponto para chamar o Caboclo Akuan, no terreiro.
Continuei na minha concentração espiritual. Sentia a presença de várias entidades, da umbanda e também familiares. Vinham mensagens de apoio e satisfação. Sentia força e confiança. Criei coragem para a caminhada para a qual me preparava. Serei, ao menos, um pai-de-santo com muita fé.
Às oito horas da manhã, o Pai Luiz entrou no quarto e me tirou da camarinha, ou seja, um ritual simples, mas de muita força. Ao sair do quarto, todos me aguardavam e bateram palmas, saudando o início dos trabalhos. Vi os pratos que seriam entregues às entidades. Estavam lindos, enfeitados, feitos, sem nenhuma dúvida, com muito amor e carinho. Iniciou-se esta fase do ritual.
– Vamos entregar o padê do exu e, depois, iremos até o mar. –
– Pai Luiz, explique direito a necessidade dessas entregas.
A entrega dos amalás, nesse caso, chama-se “obrigação”, ou seja, se a entidade incorporar, aceitando o trabalho, ambos, você e ele, estão estabelecendo um vínculo de reciprocidade dentro da religião. Quando você cantar o ponto de chamada, e ele ouvir e incorporar em você, aceitando a entrega do amalá, estará feito o pacto: ele passa a ser, para você, a principal entidade na quimbanda, mesmo que não seja o pai de nascença, e ele, não pode incorporar em outro médium, isso, claro, dentro do terreiro que você comandar, onde ele será o dirigente espiritual e determinará todas as regras dos trabalhos.
Escolhemos um lindo lugar no mato, debaixo do encontro de dois galhos, simbolizando a encruzilhada cósmica, e iniciamos a montagem do trabalho. Concluído, ele ficou muito bonito. Eu ajudei a montá-lo, claro, mas os elementos foram escolhidos pelo Pai Luiz. Reparei existirem vários tipos de bebidas, colocados estrategicamente entre a farofa, charutos, flores, fitas e velas. Inquiri:
– Por que, ao invés de tantas bebidas, não tem uma só?
– Ele é quem vai escolher qual a bebida que vai usar com você. Incorporado em mim, pode usar um tipo, com você outro. Ao escolher a bebida, será a sinalização da aceitação do vínculo espiritual, objetivo dessa entrega.
Todos cantaram o ponto de chamada do poderoso Exu Tranca Ruas das Almas. Pensava: será que ele me aceitará como seu cavalo? Felizmente, senti sua forte vibração e, incorporado, falou:
– Salve, meus filhos. – Dirigindo-se ao trabalho, pegou um charuto e uma garrafa de uísque. Estava feito: a sua bebida seria o uísque.
No caminho para a praia, onde iríamos fazer a entrega para a mãe Iemanjá, fiquei pensando: não gosto de bebidas alcoólicas, e ele vai escolher logo o uísque? Não podia ter pedido água ou, ao menos, uma cerveja? Coisa de exu, resmunguei.
Oxalá, Iemanjá, Ogum, Oxossi, Xangô, Oxum, Iansã, Preto-velho, Crianças e Oriente. Fizemos todas as entregas. Selei um compromisso com as entidades que até hoje me orientam e protegem.
A tarde estava caindo. Todos os presentes ficaram em círculo e o Pai Luiz de Ogum, simbolicamente, para meu pecaminoso orgulho, colocou em meu pescoço a linda guia de pai-de-santo. Jurei honrar o compromisso assumido com a espiritualidade e com a umbanda.
Dias após, reunido com alguns amigos, empolgado, eu relatava a todos a minha feitura de pai-de-santo, fazendo questão de contar os detalhes do sagrado ritual, principalmente para que não fosse criada nenhuma fantasia em torno disso.
Alguém me perguntou:
– Qual a ligação sua com o Pai Joaquim e a Cabocla Guaracira, para apadrinharem sua coroa?
– O Pai Joaquim de Angola foi a primeira entidade que vi incorporar em um médium. Fiquei muito impressionado com a sua meiguice, aliada com uma esperteza afinada. Na continuidade, em outros cavalos, sempre foi muito atencioso comigo, estreitando, cada vez mais, nossa ligação. Na linha kardecista, quando eram chamados os pretos, eu recebia o Pai Joaquim. Sua vibração era envolvente, suave, parecendo um sopro quente, como o calor de uma lâmpada poderosa. Já participando na umbanda, percebi a ligação entre ele e o Pai Maneco. Parecem irmãos. Durante uma consulta, o Pai Maneco mandou seu cambono levar um palheiro ao Pai Joaquim, que estava sentado no lado oposto do terreiro. Como é costume durante uma gira de umbanda, ninguém deve atravessar pelo meio do terreiro, devendo circular por trás da corrente. No trajeto, ele encontrou o cambono do Pai Joaquim, que estava vindo pedir, ao Pai Maneco, um palheiro, por determinação da entidade. A ligação entre eles, é muito forte, esclareci. Amo este velho. – conclui, emocionado.
– Não tenha duvida que você está bem apadrinhado. – respondeu alguém.
– Quanto à cabocla Guaracira, temos muitas histórias. Antes mesmo de ser da religião da umbanda, sentia a presença de um índio, chamado Guaracy. Ele sempre estava acompanhado da índia Guaracira. E eu era ainda kardecista – brinquei. Na Tenda Espírita São Sebastião, a Cabocla incorpora na minha mãe-de-santo Stelinha de Oxum, tornando nossa ligação mais íntima. E é uma cabocla de uma clareza incrível. Escute estas duas passagens:
Estava servindo de cambono para ela, quando uma pessoa, doente, recebeu uma receita para seus males. Era uma mistura de ervas. Quando a consulente saiu, ela explicou:
– Nos dias de hoje, os remédios modernos da terra são, às vezes, mais eficientes que as ervas. Mas não é certo os espíritos receitarem pelos médicos. Senão, porque estudam tanto? – completou, demonstrando estar bem ao par da modernidade.
Na outra passagem, teve uma participação eficiente num caso, aliviando e fazendo desaparecer um mal estar que me dominava.
Eu era, talvez o único médium que tinha permissão do pai-de-santo para participar de um trabalho estranho ao terreiro: o da linha kardecista, depois por mim abandonado, por serem suas vibrações diferentes com a umbanda. Íamos iniciar os trabalhos quando, de surpresa, apareceu na sala o meu pai-de-santo, o Ferro. Saudei entusiasmado
– Que bom ver você aqui.
– É, você fala tanto deste grupo, que quis conhecê-lo. Podem continuar, que ficarei daqui, assistindo.
Fiquei orgulhoso. Fiz de tudo para a sessão corresponder as expectativas do ilustre visitante. Chamamos os caboclinhos, os pretinhos e todas as entidades que nos assistiam. Terminado o trabalho, corri para o Ferro.
– Você gostou?. Perguntei, dando a entender que sua opinião teria muito valor para mim.
– Amanhã nós conversamos melhor, agora tenho que ir.
Deu um abraço em mim e em todos os companheiros, desejou axé e foi embora. No dia seguinte, fui visitá-lo, esperando sua opinião, provavelmente com elogios.
– Foi o pior trabalho de umbanda que assisti. Fiquei com vergonha de você, que, pelo jeito, não aprendeu nada até hoje em nosso terreiro. Onde já se viu? E continuou criticando com veemência.
– Mas não é umbanda, é trabalho da linha kardecista. Tentei explicar.
– É umbanda! Onde se canta ponto e se chama preto-velho e caboclo, é umbanda, sim senhor! É mistura com a linha kardecista. Estou decepcionado.
Fiquei muito aborrecido. Ele não tinha o direito, embora fosse meu pai-de-santo, de criticar um trabalho honesto, bom e eficiente como era o do nosso grupo. Fechei a cara, desenxabido, e despedi-me.
– Depois conversamos melhor. Estou com pressa, porque tenho que voltar aos meus afazeres profissionais. Até depois!
Na primeira gira do terreiro, veio a Cabocla Guaracira, chamou-me, dizendo querer falar comigo. Fui ao seu toco, sentei e esperei. Ela abraçou-me docemente, ofereceu um gole de sua bebida, que eu, cumprindo a lei, dei três goles, com o rosto virado para ela, e devolvi o coitê, segurando com as duas mãos e agradecendo.
Faz parte da magia da umbanda a bebida alcóolica. Eu não bebo absolutamente nada, e as poucas vezes que ingiro uma bebida deste tipo, fico facilmente embriagado. Incorporado, já bebi uma garrafa inteira de cachaça, sem nada sentir. Mas por que a bebida de álcool na umbanda? A cabocla esclareceu:
– Você sabe a razão da bebida na umbanda? Perguntou.
– Não, e gostaria muito de uma explicação sobre o assunto.
– Uma parte, vai para magia, outra para amolecer a cabeça do cavalo e permitir ao espírito uma incorporação melhor.
A forma simples de falar, desfez um mistério que me incomodava. E eles, os orixás, são assim. Falam e nós entendemos, daí a razão de eu gostar de ouvir suas histórias. Depois desse curto diálogo, a Cabocla voltou ao problema inicial, a minha mágoa com o babalaô. Aconselhou-me:
– Meu filho, não fique triste com teu pai-de-santo. Ele é radical com as coisas da umbanda. Perdoe-o e tente entendê-lo. Também fui olhar teu trabalho, e achei muito bonito e bom. Não esmoreça, continue firme trabalhando.
Não sei se foram as palavras, seu gesto ou sua vibração espiritual, que me fizerem muito bem. Tirei de dentro aquela tristeza, pelo tratamento recebido pela linda entidade de Jurema. Mais do que justo, pois, ser ela a minha madrinha, quando me fazia um dirigente.
Enquanto ainda rememorava a minha infância e a minha trajetória na vida espiritual, fui despertado por uma advertência:
– As pessoas estão esperando o início da gira.
Era a Lucilia, a mãe-de-santo do terreiro, minha herdeira espiritual.
Na frente do Congá, saí da reflexão, voltando aos dias atuais, reassumindo a minha posição de dirigente, dando inicio aos nossos rituais.
Pronunciei as tradicionais palavras, pedindo a proteção de Deus, Nosso Pai, de Oxalá, Jesus Cristo, e das entidades chefes no terreiro, e convidei a todos a rezarem, comigo, o Pai Nosso. A respeito do grande mantra Universal – o Pai Nosso, é interessante repararem a coincidência: foi ensinado por Jesus, conforme consta no Evangelho, segundo Mateus. Tem sete menções, sendo três glorificando a Deus, e quatro rogando as necessidades do homem. Vejam: As tr~es primeiras, dizem: 1. Pai Nosso que estais no Céu, 2, Santificado seja o Vosso nome; 3. Venha a nós o Vosso Reino, seja feita a Vossa vontade, assim na terra, como no céu; As quatro seguintes: 4. O pão nosso de cada dia, nos daí hoje; 5. Perdoai nossas dividas, assim como perdoamos nossos devedores; 6. Não nos deixeis cair em tentação; 7. Mas livrai-nos do mal . Amém. Acho que Jesus sabia que se não houvesse pedido para nós, não daríamos ênfase à oração Divina. Depois do Pai Nosso, cantei o ponto especial da abertura, e declarei aberta a gira. Batemos a cabeça para a umbanda, mandei fazer a defumação em todos os presentes, saudei os anjos da guarda, os Orixás cósmicos, os espíritos, e o Exu Tranca Ruas. Percebi que uma parte da assistência, não se voltou para a entrada do terreiro. Fazendo cara feia, chamei a atenção:
– Todos devem ficar de frente para a entrada do terreiro, porque é ali, onde está a Tronqueira, que o guardião do Exu Tranca Ruas fica, e este ponto é em sua saudação.
Atendido na minha observação, e dando início à abertura da gira, voltei para a frente do congá, para receber o Caboclo Akuan, chefe espiritual do terreiro, que traz consigo grande falange, cujos espíritos incorporam, ao mesmo tempo, nos vários cavalos, para dar segurança ao terreiro. Os terreiros nunca devem deixar de ter um ritual de segurança, e muito menos não ter hora certa para iniciar. Chegar atrasado, é falta de educação. Quando inibimos a incorporação, por não seguir um horário rígido para iniciar os trabalhos, com certeza somo nós, e não eles – os espíritos- que chegam atrasados. A umbanda é organizada. Se o terreiro não seguir princípios mínimos do relacionamento homem e espírito, fica, obviamente, um terreiro desorganizado, pondo em dúvida até mesmo a qualidade das comunicações. Ainda com o pensamento voltado para minha obrigação de manter ordem no terreiro, ouvi uma suave voz, no interior de minha cabeça, deixando uma doce mensagem:
– Calma, meu filho. O aprendizado através da paciência é bem mais proveitoso.
Meus pensamentos se voltaram para uma curta viajem que fiz até o litoral catarinense. Na estrada, enquanto dirigia, sob a rígida fiscalização da Yedda, conversava animadamente com nossa amiga Etelvina, uma ilustre e atuante historiadora, com várias obras editadas. É gostoso conversar com pessoas cultas como a Etelvina. Aprende-se muito, se falarmos pouco, é claro. Procurando tirar proveito das suas experiências como pesquisadora, expliquei estar muito interessado no resgate da história da umbanda. Complementei, dizendo pretender introduzir em nosso terreiro as regras nascidas na origem da religião. Ela fez uma observação dizendo determinada:
– Cuidado com as regras. Visitei o terreiro e o que mais admirei, foi a alegria dos médiuns praticando a umbanda. Ali, todos são pequenos deuses. As regras podem cercear suas liberdades.
– Pequenos deuses? Não entendi.
– É. Todos resolvem os problemas das pessoas, pela sua própria capacidade. Cada um sabe o que fazer.
Diante a apropriada lembrança, voltei-me a todos e implorei:
– Não liguem minha rabugice. Foi coisa de velho implicante. – esclareci. Peço a todos: se em algum momento, eu estiver tirando a liberdade de vocês ou impondo regras desnecessárias, me chamem a atenção.
Sob o semblante aliviado da corrente, incorporei, dando início aos trabalhos.
Meu trabalho profissional ficava perto de um aprazível logradouro municipal. Quando ficava nervoso, irritado ou estava perdendo meu controle emocional, ia a este mini zoológico.
Parava em frente do enorme viveiro das águias, e ficava alguns minutos, absorvido e encantado com elas. Era a maneira mais fácil de curar minhas dificuldades. Cheguei até mesmo a fazer pedidos para elas, e de forma surpreendente, fui atendido. Sempre gostei das águias, gaviões e qualquer ave de rapina.
Quando comecei a receber o Ogum, sem saber seu nome, ele riscava um ponto, assinalando uma ave, em um canto da tábua. Antes de subir, o Caboclo faz um gesto, como se soltasse uma ave de seu antebraço, momento que o terreiro cria uma energia muito forte, sentida por todos os presentes.
Não gosto de ouvir sonho dos outros, mas adoro contar os meus. Há muitos anos, sem imaginar um dia estar integrado à religião umbandista, tive um sonho muito marcante. Estava no alto de um morro, vendo uma multidão compacta. Lá no fundo vi um ponto de luz que crescia à medida que se aproximava de mim. Tornou-se imenso. Era de cor prateada, todo cheio de faíscas, e transformou-se em uma águia enorme, prateada, vibrando bastante como se fosse dois fios descarregando eletricidade. Parou na minha frente e sobre aquela multidão movimentava suas enormes asas, deixando escapar uma brisa energética e gostosa. Embevecido, emocionei-me, ao absorver aquela maravilhosa energia, quando ela foi encolhendo e transformou-se num homem. Pena! Quando ia ver seu rosto, acordei. Tentei dormir novamente, para ver se o sonho continuava, mas não consegui. Fiquei muito excitado e me levantei, extasiado com este evidente contato espiritual. Juntando as peças do quebra-cabeça espiritual, descobri a minha ligação com as aves de vôos altos: era a mesma do meu pai-de-cabeça, o Caboclo Akuan.
Estava incorporado com ele quando, no meio no terreiro, em vibração especial, estava uma senhora, tendo ao colo uma menina excepcional. O Caboclo levantou-se, pegou no Congá duas espadas e um escudo, e deu de presente para a menina. Emocionado disse à mãe:
– Só quando você desencarnar é que vai entender a razão de você ter esta filha. – falou, voltando ao seu lugar.
Os cambonos estranharam esta atípica atitude do forte guerreiro. Ele contou sua comovente história.
– Eu era cacique. Tive vários filhos. Um deles como esta menina – disse apontando para o meio do terreiro. Eu a amava, bem mais que os outros. Não sabia a razão, por que logo a doente, quando deveria me apegar aos sadios? E o Cacique não deve demonstrar fraquezas sentimentais. Eu a pegava escondido, e corria com ela para o mato.
Um fato curioso. Quando o espírito conta suas histórias, o médium consciente, como eu, vê a cena, à medida que a lembrança do espírito reaviva a cena. Via aquele enorme índio, com a criança de encontro ao seu peito, correndo para o mato, até mesmo desviando as folhagens e árvores. Foi nítida a visão. O Caboclo continuou:
– Quando sabia que ninguém podia me ver, punha minha filha no chão e ficava bom tempo, brincando com ela feito um curumim. Foi precoce sua morte. Chorei muito, e senti sua falta. Mas não ia querer conhecer a razão, sabendo que os deuses estavam cuidando dela. Emocionado parou de falar.
Os cambonos, vendo a emoção da entidade, cuidaram para ninguém do terreiro chegar perto. Ele continuou:
– Quando desencarnei, tive o reencontro. Entendi tudo que antes era mistério para mim. Esta menina, quando encarnada foi minha filha, hoje trabalha comigo, em forma de águia…
Nosso terreiro já estava pequeno para a quantidade de médiuns que formava a corrente. Era nossa intenção construir um maior, no terreno que tínhamos recentemente comprado, e para isso contávamos com uma doação governamental, que para variar, não saiu.
Diante da frustração da tentativa de obter a ajuda pública, pedi ao Roberto Ribas, presidente da nossa organização jurídica, para pedir uma orientação ao Caboclo Akuan, na qualidade de dirigente espiritual e espírito iluminado.
– Peça uma luz, Ribas. Em meu e no seu nome. – expliquei.
Quando ele incorporou, sentado já no toco e com seu ponto firmado na tábua, o Ribas sentou na sua frente.
– Meu filho, por que está tão nervoso? Ele perguntou, calmamente.
– Caboclo Akuan. Eu e seu cavalo estivemos conversando, e estamos com um problema enorme. Esperávamos a doação de um pataco – dinheiro, no linguajar dos terreiros, para construir sua casa nova, e não conseguimos. E essa era nossa esperança. Falou, cheio de preocupação.
– O que? Você ia construir minha casa com a mentira? Retrucou, fechando uma carranca.
– Não entendi, Caboclo. Respondeu o Ribas sem jeito.
– Esperança é a arma dos covardes. Ela acoberta o comodismo e protege a preguiça. Troque a “esperança” por “determinação”, que tudo vai dar certo. – enfatizou, enérgica e duramente.
No intervalo da gira, chamei alguns companheiros e contei o fato. Estávamos no meio do mês de Novembro. O José Gonçalves, um dos companheiros, antes de iniciar a segunda parte dos trabalhos, pediu a palavra, e falando à corrente e aos visitantes, comunicou solenemente:
– Depois da gira de hoje, teremos mais duas, sendo a última a de encerramento. O terreiro entrará em férias neste fim de ano, reabrindo suas portas na primeira segunda-feira do mês de fevereiro. Só que estaremos no terreiro novo, no bairro da Santa Cândida.
Um frio correu minha espinha. Perguntei, baixinho, só para ele ouvir:
– Você é louco, Marreco – o apelido do Gonçalves. Como vamos construir em dois meses um terreiro?
– Se o Caboclo Akuan falou, vai dar certo. Respondeu, cheio de fé.
No dia seguinte, minha mulher e eu procuramos nosso sobrinho Gustavo Guimarães, arquiteto, e com ele, saímos em busca de uma galpão de cimento, pré-fabricado, o limite máximo da minha imaginação. Deixamos acertado numa fábrica a compra de um deles, e só não fechamos o negócio porque já era tarde, ficando o acerto final para a manhã seguinte.
Confesso ter dormido muito mal, excitado pela realização do negócio e a expectativa de um terreiro novo. Acordei cedo, e, como sempre faço, estava lendo o jornal no desjejum. A Yedda – que não teve insônia, levantou-se depois de mim. Sentou-se à mesa, e abrindo o jornal falou:
– Fernando, tive um sonho, com um tipo de construção para o terreiro que pode dar certo e é barata.
Explicou o tipo que havia sonhado. Era uma construção redonda, com a estrutura do telhado aparente, com grossas toras de eucaliptos.
– O terreiro hoje é uma tapera. Construa, então, uma tapera de luxo, brincou.
– Estou em duvida. Acho esquisita. Respondi.
Determinação! Lembrei dessa ordem dada pelo Caboclo Akuan. Telefonei para a casa do Gustavo. Ele atendeu. Rapidamente informei:
– Gustavo, houve mudanças nos planos. A Yedda sonhou. Falei, sem contar com o que foi.
– Se a Yedda sonhou, já passo aí em tua casa. Respondeu, rindo.
E o terreiro de alvenaria, redondo, com telhado aparente de eucaliptos, aconchegante, como a Yedda sonhou, construído com recursos obtidos junto a comunidade, e com o empenho dos participantes do grupo, abriu suas portas no dia 1 de Fevereiro de 1997 (? Ou 8), véspera do dia de Iemanjá. Dois meses depois que o Caboclo Akuan declarou: a ordem é a determinação!
Nesse dia, risquei do meu vocabulário, a palavra “esperança”!
No tempo da duração de uma viagem, os assuntos mais polêmicos sempre são discutidos de uma forma mais minuciosa, do que em reuniões formais.
Foi numa delas, tendo como parceiro de boléia o Álvaro, um culto e dedicado pesquisador da religião umbandista que provoquei um assunto que só gosto de discutir com pessoas entendidas:
– Álvaro, qual o teu entendimento sobre o Anjo da Guarda?
– Como diz o nome, é o anjo que nos protege. Afirmou
Esperava outra resposta. Fiquei calado, demonstrando decepção. Ele deve ter percebido meu desapontamento, tanto que me interpelou:
– Não é o que você pensa?
– Talvez para mim o maior mistério da umbanda, para o qual não tenho uma explicação, seja o Anjo da Guarda. – respondi.
Despertei a curiosidade no meu simpático e culto companheiro de viagem.
– Já vem você com tuas polêmicas. Nunca ninguém discutiu isso comigo. Falou, já no aguardo de outras indagações.
– Sigo, apenas, o ritual da umbanda. Quando abro uma gira, reverencio: Zambi, que é Deus; Oxalá, o nosso Mestre Jesus Cristo; Ogum, meu orixá, aquele que só é a energia cósmica; o Caboclo Akuan, meu pai-de-cabeça, o índio de ogum, meu protetor, o responsável e o guardião, desde meu nascimento, pela minha evolução espiritual; o Pai Maneco, o preto-velho, o meu desenvolvedor, o meu mestre, o guia espiritual, amigo e protetor material; os Caboclos Junco Verde e da Cachoeira, meus guias nas linhas de Oxóssi e Xangô, encerrando com as entidades da quimbanda. Continuando no ritual, todos os médiuns batem a cabeça para a umbanda, saudando o orixás cósmicos, todos os guias dos médiuns integrantes do grupo, e o Anjo da Guarda. Argumentei, dando a entender ter concluído.
– Você explicou o ritual no teu terreiro, igual, em princípio, a todos os outros. Mas o que tem a ver isso com o Anjo da Guarda?
– Já saudei a Deus, Jesus Cristo, o pai-de-cabeça, o desenvolvedor e também protetor e guia, os chefes das outras linhas, e o exu. Não sei onde o Anjo da Guarda se encaixa.
O Álvaro ficou calado e pensativo. Depois de rodado uns dez quilômetros, ele quebrou o silêncio:
– Será São Gabriel, São Miguel ou São Rafael?
Achei engraçado. Tinha atingido meu objetivo, que outro não era, senão despertar a polêmica e confundir o amigo. Argumentei:
– Não acho. São Gabriel veio anunciar à Virgem Maria o nascimento de Nosso Salvador; São Rafael guiou Tobias e Miguel; e São Miguel chefiando uma falange de anjos, derrotou Lucifer. E depois são Arcanjos, e não anjos.
– Qual tua idéia sobre anjo?
– A idéia não é minha, é ensinamento bíblico. Retruquei. Anjos são os espíritos puros criados por Deus, e significam mensageiros, e Anjo da Guarda é o anjo que Deus dá a cada homem, para protegê-lo.
– Quem você acha ser nosso Anjo da Guarda? Inquiriu.
– Acho que é o nosso próprio espírito.
– Como assim, nosso próprio espírito. Você está se contradizendo. Como você chegou a essa conclusão?
– Se temos dentro de nós a vontade e a partícula Divina, não pode ser essa essência, nosso próprio guardião? E se nessa vida, estamos vivendo uma unidade de encarnação, temos todo direito de evocar a somatória de nossas vidas anteriores, para proteger a nossa atual. Quem melhor que nosso próprio espírito, para nos proteger?
– Quando acendemos uma vela para nosso Anjo da Guarda. estamos iluminando nosso próprio espírito? Perguntou, dando a entender ter compreendido o que eu queria dizer.
– Sim, é o que penso até haver uma explicação melhor para dirimir minha duvida. Até lá, continuo a cultuar meu Anjo da Guarda, com um pé atrás. Completei, cheio de dúvida.
Em qualquer religião, o fanatismo é condenável, principalmente na umbanda. Não me refiro à paixão extrema da sua religiosidade.
Alguns adeptos da umbanda não sabem separar a religião de seus afazeres tradicionais, como o trabalho, a diversão e a família. Por ser a umbanda envolvente e cheia de mistérios, provoca uma excessiva sede de vivê-la em todos os instantes. Nas minhas andanças pelo espiritismo, ganhei muita experiência para poder recomendar, principalmente aos jovens, uma observância severa no policiamento de suas atividades espirituais.
O estereótipo do fanático religioso fica por conta do Pedro José. Quando moço, fazia parte do terreiro em que eu trabalhava. Recém ingressado na maioridade civil, exorbitava com seu deslumbramento pelos mistérios da umbanda e pela impaciência no processo evolutivo da sua mediunidade. Só falava em umbanda. Sua noiva Dulce também componente do grupo, uma doce e bonita jovem, ainda com a graça dos dezoito anos, era sua companheira incondicional, acompanhando-o em todos os lugares, mesmo nos quais o assunto era a religião umbandista. Um grupo de pessoas, formada por casais e pessoas de meia idade, no qual eu me incluía, recebia sempre a visita do jovem casal. Aquilo me preocupava. Quando tive oportunidade, chamei-o para conversar. Recomendei:
– Pedro, não entenda errado o que vou dizer, mas gostaria muito, para teu próprio bem, que você não fosse mais com a Dulce nas nossas reuniões.
Ele pareceu surpreso. Indignado retrucou:
– Por que você disse isso? O que ela fez?
– Não distorça as coisas que te disse e ainda vou falar. Você não percebeu que nessas reuniões só existem pessoas com suas vidas familiares já definidas, e que se reúnem com o objetivo único para falarem sobre a umbanda? Vocês são jovens, noivos, e ela só está dentro da religião por imposição sua. Isso deve aborrecê-la.
Sempre disse que conselho dos mais velhos, não precisa ser acatado, mas deve, ao menos, ser considerado. Ele, ao contrário, estampou um largo sorriso, e se enchendo de empáfia, limitou-se a dizer:
– Fiz a cabeça dela. É uma umbandista convicta e adora as reuniões. Ela é até a cambone das minhas entidades.
Eu não conhecia o Pedro na intimidade. Nem podia, pois só falava dos exus, dos caboclos e dos orixás. Eu tentei convencê-lo, já com sarcasmo, diante de sua irredutível posição.
– Antes de mais nada, meus parabéns: você já tem entidades. – falei, ironizando sua assertiva ao mencionar “minhas entidades”. – Mas aconselho, Pedro, vão assistir filmes nos cinemas, leve-a passear, ou vão dançar em uma discoteca, ou mesmo vão visitar amigos da tua geração.
Nada adiantou eu falar. Ele continuou, cada vez mais fanático e convencido que sua noiva gostava de sua egoísta programação religiosa. Fiquei preocupado, mas não me arrependi de ter dado esses conselhos ao Pedro. Alguns meses passados, ouvi tocar a campainha da porta da minha casa. Fui atender, era o Pedro. Já sentado no sofá da minha sala, ele era a expressão do sofrimento. Olhar triste, pestanas caídas, pálido e com olheiras marcadas. Perguntei, preocupado:
– Que aconteceu com você?.
– A Dulce desmanchou nosso noivado. Exclamou, desolado.
– Por quê?
– Não sei. Hoje, quando cheguei na casa dela, me disse que nosso relacionamento tinha acabado, por razões que não queria explicar.
– Posso fazer alguma coisa por vocês? Prontifiquei-me.
– Você pode conversar com ela? .
Prometi procurar a Dulce e tentar convence-la a reatar o compromisso com o desesperado Pedro. Só a procurei uns dias depois, esperando ela refletir bem sobre o assunto. Pelo telefone, nosso diálogo não foi produtivo:
– Dulce, é o Fernando. Soube que você rompeu o noivado com o Pedro. Vocês sempre deixavam transparecer muito amor e harmonia. Que aconteceu?
Devo ter mexido com os brios da Dulce. Ela, não se fazendo de rogada, foi categórica:
– Não agüento mais falar de umbanda. Não vou me casar com um homem que não sabe diversificar sua vida, ou ser agradável. Ele demonstra um egoísmo incomum. Que fique com uma pomba-gira qualquer e me deixe em paz. Asseverou, rancorosa.
Conversamos algumas banalidades e desligamos o telefone.
Liguei para o Pedro para dar conta do prometido. Ele, ansioso no telefone, perguntou:
– Ela contou porque brigou comigo?
– Foi teu fanatismo. Expliquei, lacônico.
De fato, não houve mais acerto entre os dois. Hoje estão em caminhos diferentes. Ele, ainda solteiro, abandonou a umbanda por desgosto, e ela constituiu uma família.
Por esses fatos de comportamento familiar, que nada tem a haver com a umbanda, é que os dirigentes devem ter a cautela de orientar os membros da corrente, inclusive com hora de encerrar a gira.
No terreiro do Edmundo Ferro, as giras terminavam por volta da meia noite. Alguns médiuns, inclusive eu, nos habituamos a ir num bar depois das giras, comer um sanduíche ou uma coxa de frango. Tinha até uma mesa de bilhar, onde alguns deles demonstravam suas qualidades juvenis. Chegávamos em casa já dentro da madrugada. Claro, no dia seguinte, ouvia a costumeira advertência da Yedda:
– Como acabou tarde ontem o trabalho.
Eu, omitindo o frango, o bilhar e o papo, não mentia:
– Não, você está enganada, a gira terminou cedo. Cheguei tarde em casa, porque ficamos conversando.
O experiente pai-de-santo sabendo do fato, quando chegamos no final de uma gira, antes de dispensar o grupo pediu a atenção de todos, e lendo uns nomes anotados em um papel, determinou:
– Fernando, Mingo, Antonio, Mauro, Paulinho, Leocádio, Mario e Zezito. Peço que todos fiquem no meio do terreiro.
Surpreendidos com a atitude do Ferro, caminhamos, todos, desconfiados e lentamente para o meio do terreiro, sem entender nada. O dirigente retomou a palavra:
– Soube que vocês, incentivados pela gula deste gordo de cento e vinte quilos– e apontou para o Mingo, quando saem do terreiro, vão comer coxas de frango em um bar. Não tenho o direito de proibir que vocês façam isso, mas posso exigir que ao saírem daqui do terreiro, vocês voltem às suas casas. Depois saiam, e façam o que quiserem. Ordenou.
A preocupação dele tinha procedência. Não queria que nossas famílias se voltassem contra o terreiro por chegarmos tão tarde em casa. Na verdade não eram as coxas de frango nem a fome que nos levava ao leviano programa. Era falta de bom senso.
Gosto demais de uma entidade da linha dos ciganos, a Manon, principalmente quando usava como médium a Fátima, hoje agregada à igreja evangélica.
Sorte dos evangélicos, pois tenho certeza que ela é uma correta e dedicada integrante da igreja, como foi enquanto freqüentou o nosso terreiro. A Cigana Manon trabalhava tanto na linha dos ciganos como na quimbanda. Por ser da linha neutra, tem acesso à gira dos exus. Enquanto trabalhou em nosso terreiro ela foi uma estrela deslumbrante, sempre deixando belas mensagens de amor e fé.
O Caboclo Akuan, em uma gira, quando incorporou, contou uma passagem da esperta cigana Manon.
– Estava no Humaitá, quando o guardião da porteira veio me avisar que tinha alguém na entrada querendo falar comigo. Era a Cigana Manon, trazendo um papel que segurava cuidadosamente na mão. Ela me fez a entrega desse papel. Era uma relação de pedidos para eu atender. – concluiu, rindo.
Humaitá, o lugar dos oguns. Como ele é bonito! Tive a felicidade de conhecer uma parte, quando o caboclo passou para minha consciência a fotografia do lugar. É um imenso campo, cercado por uma paliçada, como se fosse um forte. Não tenho como explicar esta visão: é indescritível! Mas aprendi: até no Humaitá existe guardião. E a Cigana Manon ficou na entrada, o que evidencia a proibição do acesso às outras entidades no lugar sagrado dos oguns.
Passado muito tempo, num final de gira, mesmo incorporada no meio do terreiro a Fátima dava sinais de não estar bem. Foi uma cena constrangedora, ver a Manon não conseguir dominar seu cavalo. Eu corri em seu socorro, pedindo ajuda para a corrente:
– Todos devem ficar concentrados! Vamos ajudar a Manon!
Talvez superestimando o potencial mediúnico da excelente médium, a corrente hesitou e a vibração não ficou como eu queria, o que em nada ajudou a Manon. Dava para perceber a angústia da médium, e o esforço do espírito para dominar a situação. Foi quando o Caboclo Akuan incorporou, de forma inesperada, sem ponto de chamada, como fazem as entidades, quando é necessário. Obviamente, pelo simples fato dele incorporar na linha da quimbanda, toda a corrente ficou apreensiva. Ele pediu um toco, e sentado nele, no meio do terreiro, dirigiu a palavra à corrente:
– Contei para vocês, faz muito tempo, que recebi a visita dessa Cigana no Humaitá. Só não contei quais foram os pedidos que ela fez. No papel que me entregou, os vários pedidos eram em favor de cada um de vocês, não tendo sido omitido nenhum nome. O pedido era para a corrente.
O silêncio dominou o terreiro. Os médiuns entreolharam-se, surpresos com a revelação. O corpulento índio fez uma revelação:
– O que ela está pedindo em troca é a vibração de cada um de vocês para ela ajudar seu cavalo.
Dentro de uma das mais fortes vibrações criada no grupo, a Manon conseguiu dominar seu cavalo e sair, mais uma vez, triunfante do nosso terreiro, desta vez tendo como compensação da sua bondade o amor sincero de toda a corrente. Essa é a força da umbanda…
Nunca senti a necessidade, e muito menos encontrei razões lógicas, para tentar convencer alguém que o espírito pode se manifestar no mundo material.
Falar das curas, das mensagens que comprovam a veracidade das manifestações, das aparições, dos depoimentos de pessoas ilibadas e até mesmo do fenômeno das incontestáveis materializações, não modificam a opinião dos incrédulos. Não há razão para se discutir sobre religiões. A escolha do caminho de cada um é o direito da liberdade sagrada do livre arbítrio. Os parapsicólogos e religiosos estão sempre se digladiando, até mesmo publicamente, quando discutem a manifestação do espírito em nosso plano material. As falácias deturpam o real objetivo das religiões: retornar ao Criador!
Gosto quando os espíritos ordenam nossas idéias. Tudo começou com um telefonema do Roberto Ribas, um dos médiuns do nosso terreiro, quando me fez um pedido singular:
– Uma terapeuta que trabalha com as fotos Kirlian quer permissão para fazer uma foto com um médium incorporado, para ver qual será o resultado. O que você acha?
Foto Kirlian é uma máquina inventada pelos russos…(pesquisar), que fotografa a aura das pessoas, com a intenção de desvendar o estado de espírito, diagnosticar possíveis doenças, e descobrir eventuais aproximações negativas. Interessei-me.
– Acho ótimo. Pode combinar com ela para levar a máquina no terreiro.
– E qual o médium que poderá se submeter a isso?
– Quem? Claro que eu! Adoro novidades e não vou perder essa oportunidade.
– Você? – exclamou surpreso. E com qual entidade?
– Com o Caboclo Akuan. E depois, brinquei, quero saber como é a aura dele.
– Na próxima gira estaremos lá.
No dia da sessão, o Ribas me apresentou a terapeuta, uma moça simpática e falante. Estava eufórica por termos concordado com seu pedido. Não deixei ela notar que eu era o mais curioso de todos. Combinamos os detalhes. O Caboclo incorporou, riscou o ponto de firmeza do trabalho, dava gostosos tragos em seu marafo misturado com mel e tirava fumaças com seu imenso charuto, quando o Ribas, acompanhado da terapeuta, sentou-se à sua frente conforme o combinado e respeitosamente explicou:
– Caboclo Akuan, esta moça é uma cientista aqui na terra e quer fazer uma experiência com o senhor: fotografar sua aura.
– Fazer o que com minha aura? Respondeu, seco, o índio guerreiro.
– Caboclo, não sei bem como explicar ao senhor, mas seu cavalo já está sabendo. O Ribas respondeu, atrapalhado.
– Está bem então. Resmungou.
Sem muito rodeio, a terapeuta e o Ribas organizaram a ligação da máquina na tomada elétrica e iniciaram a experiência.
– O senhor tem que por o dedo, dentro desta máquina – explicou a terapeuta.
– Pôr o dedo aí? Por quê?
Às vezes os espíritos me atrapalham. Não sei se são ingênuos, ou espertos demais. Acho uma mistura, principalmente entre os índios. O Caboclo Akuan, e isso posso seguramente afirmar, ficava assombrado com a caixa de fósforo, quando um palito riscava e na sua ponta o fogo ardia. Por outro lado, aconselha políticos a tomarem decisões e discute química. Como saber? Difícil spírit-los. Depois de muita conversa, ele fez o que mandavam e o trabalho foi concluído. Satisfeito, o Ribas desligou o fio elétrico da tomada, enquanto a terapeuta guardava cuidadosamente sua estranha máquina, e alegre agradeceu:
– Muito obrigado, sêo Akuan. Vai ser, com certeza, uma experiência muito boa.
– Meu filho, estou sempre disposto a ajudar os outros. Mas, para saiba, dentro dessa caixa só está a energia do meu cavalo. Respondeu esboçando leve sorriso.
A esperteza do índio veio à tona. Ficou bem claro que desde o inicio ele sabia o que era foto Kirlian e fingiu-se de desentendido. Montaram tudo outra vez e fizeram nova foto, agora com a energia da entidade. Não houve nenhuma dúvida da intenção dele, separando as fotos – a minha e a dele, para futura comparação. Realmente, quando vi as fotos, fiquei impressionado com a diferença. A terapeuta colheu vários pareceres de especialistas em foto Kirlian, e chegaram à conclusão que a dele – da entidade, não tem como ser analisada, por ter fugido totalmente do padrão. Enquanto recolhiam o aparelho, o Caboclo Akuan sentenciou:
– A ciência sempre foi usada pelo espiritismo, para provar que ele existe. Está errado! Ele deve aproveitar a ciência, para evoluir e aprimorar sua pratica.
Neste episódio, o Caboclo Akuan demonstrou toda a habilidade inerente de um Chefe de Terreiro. Usou, com muito humor, o jogo de palavras, para dar conexão entre a ciência e o espírito.
Nunca tiro conclusões precipitadas das histórias dos espíritos. As coisas que eles fazem não se limitam ao momento, ao contrário, têm um alcance além do nosso pronto entendimento. É necessário paciência para spírito a-las. E o tempo veio esclarecer a parte conclusiva da trama habilmente arquitetada pelo Caboclo Akuan. Uns médicos me procuraram:
– Nós estamos fazendo uma pesquisa sobre o aborto. Gostaríamos da opinião da umbanda sobre o uso da pílula do dia seguinte, ou contracepção. Por ela ser abortiva, muito embora três dias depois da concepção, algumas religiões a combatem. – esclareceu um deles.
– Apesar de ser umbandista, não posso falar em nome da religião. Se vocês quiserem posso dar minha opinião pessoal – adverti.
– Sempre é uma opinião. – responderam, demonstrando decepção.
– O aborto é um tema polêmico, e sobre ele as religiões são austeras e radicais, inclusive o espiritismo. Seria um ato criminoso abortar o feto, se o espírito reencarnado estivesse grudado com ele. – afirmei.
– Mas, segundo dizem, ele já estaria reencarnado. Por que você insinua o contrário?
– O spírito só reencarna no corpo da criança, quando ela dá o primeiro grito. Afirmei, convicto.
– Você está declarando que é a favor do aborto? Perguntou, surpreso.
– De jeito nenhum. Sou contra, por entender que a gravidez rejeitada foi o fruto de uma paixão carnal, fugindo totalmente do princípio divino, que só admite o sexo para a perpetuação da espécie humana E os pais deveriam assumir responsabilidade de seus atos. Extravasei.
– Então as mulheres que provocam o aborto não são na sua concepção, criminosas? Enfatizou o médico.
– É comum às mulheres que abortaram, depois da conscientização do espiritismo, irem ao desespero por se sentirem criminosas. Vou aliviar seus corações, afirmando que os espíritos das crianças não estão cobrando nada, nem vão para o inferno. Esperam, com certeza, outra oportunidade de reencarnar.
– Se suas declarações são ou não verdadeiras não me compete julgar, mas elas são conflitantes com as que ouvimos até agora, principalmente quanto ao momento da reencarnação do espírito. A maioria afirma ser na concepção e você diz ser depois que nasce. Por mera curiosidade, nada tendo a ver com o objetivo da entrevista, você pode me dizer como chegou a esta conclusão, de um modo tão convicto? Perguntou, dando a entender ser o fim da entrevista.
– Posso, culpa da ciência. Esclareci.
– Como? Não entendi.
– Alguém pode me explicar, de modo convincente, como estão os quinhentos espíritos dos embriões humanos congelados na Inglaterra? Estão grudados nos quinhentos tubos de ensaio, esperando, sabe até quando, para serem gerados?
– É…Não tinha pensado assim… Respondeu o médico, despedindo-se, junto com os demais.
Depois que foram embora, olhei para cima, e pensei: “Salve, Caboclo Akuan, o grande cientista do espaço…”
Nós ficamos frágeis e inconformados com a morte das pessoas que amamos, seja um pai, ou uma mãe, os parentes e os amigos.
É irreparável a ausência física deles. É inevitável a saudade. Ela faz parte da tristeza, algumas vezes transformada em desespero. Nossa cultura justifica esse comportamento. Se tivéssemos uma conscientização maior do destino do espírito dos que desencarnam, quem sabe não sofrêssemos. Como não a temos, choramos a morte dos que amamos. Esses pensamentos remoíam minha cabeça, enquanto ouvia na sala da casa da Geni o seu desesperado relato da morte de sua mãe, acometida de uma parada cardíaca.
Ela era uma mulher de meia idade, magra, cabelos já grisalhos misturados com os negros, amarrados atrás. Arcada pela própria constituição física, seus olhos deixavam transparecer o seu sofrimento. Sua boca em nenhum momento deixou sequer esboçar um sorriso. Estava muito mal, e contava sem parar de falar as qualidades de sua mãe e o amor que tinha por ela, até que em prantos deixou escapar uma lamuria:
– Por que Deus foi ruim comigo?
– Não se queixe, você tem um dedicado marido e filhos saudáveis. Tentei consolar.
– Você não entende? Foi a minha mãe que morreu.
Não sou entendido no assunto de estudar as palavras adequadas para acalmar histerismo. Sou apenas um pai-de-santo, às vezes abençoado como outros tantos, por receber intuição dos espíritos. Acho que isso aconteceu, porque achei que estava no momento de dar um basta ao doentio apego da Geni. Era minha conhecida já há longo tempo, o que me permitia falar sem rodeios.
– Você me procurou para que eu pudesse te ajudar, mas pelo jeito você devia procurar algumas carpideiras para fazer coro. Falei, olhando para meu relógio dando a entender que ia embora.
Ela assustou-se com minha grosseria. Parou de chorar e ficou me olhando, boquiaberta.
– Infelizmente ainda tenho compromissos hoje. – disse, levantando-me do sofá. Não sei se eu vou poder ajudar você sem a assistência direta das entidades.
– Eu só quero saber como está o espírito dela.
– Estamos na quinta-feira. Você pode esperar até segunda-feira para saber. Te aguardo no terreiro, para você falar com a entidade.
Conforme havíamos combinado, a Geni já estava consultando com o Caboclo Akuan, incorporado em mim. Sentada na frente dele, a entidade perguntou, em seu estilo:
– O que está afligindo você?
– É que minha mãe morreu. Estou desesperada.
– Seu corpo morreu, o seu espírito não. Se te faz bem, vou trazer o espírito dela para conversar com você.
Após chamar um médium, ele induziu a incorporação do espírito da mãe da Geni, e ambas conversaram. Deve ter fluido bem a conversação porque a Geni estava emocionada e mais calma. Agradeceu a oportunidade e, antes de ir embora, perguntou à entidade:
– Minha mãe disse que estava bem próxima de mim, mas agora iria seguir o seu caminho. Por que isso acontece?
– Vocês ouvem ensinamentos sobre entidades obsessoras, que ficam ligados nos encarnados. No seu caso é o inverso: você é que atrapalha o espírito. Ele quer seguir seu caminho evolutivo, mas você não permite com seu infundado desespero. Se ao invés de mergulhar na revolta da separação você tiver a compreensão da passagem dos espíritos ao mundo invisível, o espírito de sua mãe teria mais tranqüilidade para seguir sua jornada.
Atendendo a sua egoísta necessidade de falar com ela os mentores do espaço se aproveitaram para acalmar sua revolta e livra-la da imantação que você exercia sobre ela. Explicou a entidade de forma direta e austera.
Para quem pratica o espiritismo, situações como a da Geni são comuns. Atendi uma pessoa que tinha perdido um filho com idade jovem. Não chorava com medo de prender o espírito de seu filho, o que é errado. A revolta é que prejudica o desencarnado, nunca o choro. Sobre o assunto, gosto de dar um exemplo material: se um homem tiver que empreender uma longa viagem, e seu familiares lhe afirmarem que poderá ficar sossegado porque eles vão ficar bem, e qualquer dificuldade eles resolverão, com certeza a despreocupação de deixar seus familiares diminuirá a tristeza de ter que dela se afastar. Em caso contrário, ele viajará preocupado e tenso. Devemos imaginar que a morte é um afastamento temporário.
Com respeito a essa conscientização as religiões têm uma parcela de culpa. No catolicismo a família do morto pede para o padre rezar uma missa em intenção à sua alma. No espiritismo pede que o espírito do falecido seja recebido no astral superior. Só mencionando essas duas religiões já se evidencia uma distorção: somos evoluídos para nos credenciar com competência para pedir por nossos mortos? Não seria mais coerente, o padre rezar uma missa pedindo aos santos para nos acalmar, ou pedir aos espíritos que não nos tornem obsessores dos espíritos? Pensando assim quando peço por alguém desencarnado, passei a dizer:
– Meu Pai Oxalá, mestre Jesus Cristo. Partiu da terra o espírito do nosso amigo Fulano de Tal, e nós daqui queremos que ele possa chegar ao lugar no espaço a que tem direito e por ele conquistado duramente através do resgate de seus carmas. Não queremos ser empecilho para a sua evolução, por isso rogamos ao Senhor e a todos nossos guias espirituais que nos confortem, nos acalmem, e que encham nossos corações de amor e fé e, quando for possível, permita ao nosso irmão que partiu, receber a notícia que aqui na terra todos seus familiares e amigos estão bem e que o amam muito. Obrigado!
Enquanto voltava para casa, lembrei-me da morte das duas mães na minha vida. A Alcina, minha mãe de carne, e a Izette, a mãe da Yedda. A minha devia ser filha de Iemanjá, pelo seu jeito bonachão. Seus ídolos eram seus filhos. Não gostava de se arrumar ou usar pinturas, exceto nas poucas reuniões sociais que ia, ocasião em que demonstrava toda sua categoria de mulher refinada. Ela tinha uma marca: adorava acordar tarde. Antes das doze horas, ficava espreguiçada na cama. A Izette era o contrario: magra, lépida e falante. Tinha três apegos: um wolkswagem amarelo, uma bomba para sua asma, e um baralho. Acordava cedo, para cuidar de suas tarefas do lar, para ficar livre à tarde, e poder ir jogar com suas amigas contemporâneas. Com a Alcina eu era dócil e submisso, com a Izette eu implicava. Coisas da terra, pois eu cumpria meu papel de genro. Pouca gente sabe, mas o meu amor pelas duas era igual. Eu tive a felicidade de ter duas mães, e ambas morreram com mais de setenta anos. A Alcina foi dormir e não acordou mais. A Izette, vindo da casa de uma amiga onde tinha ido jogar, teve uma parada cardíaca – como a mãe da Geni, e ainda teve tempo de estacionar seu conhecido fuscão amarelo e morrer em cima da direção. Quando foi encontrada dentro sua bolsa estavam sua bomba para asma, um baralho e a féria do dia. Ambas morreram como gostavam de viver. Lamentei a morte das duas, porque sabia que eu ia prantear as suas ausências físicas. Mas, pelos desencarnes, sou agradecido a Deus, pela morte que elas tiveram.
O Cristiano é um médium de uma corrente de umbanda. Ele estava em dúvida se devia ou não continuar fazendo parte da corrente.
– Você está gostando de participar da umbanda, de forma ativa como médium de corrente?
Ele fez uma pausa, provavelmente para uma rápida reflexão, e respondeu:
– Eu gosto, só não conheço minha utilidade lá dentro.
– Conte-me como aconteceu o convite para você entrar na gira.
– Estava passando uma dificuldade comercial muito complicada, e estava fisicamente muito fraco. Conversando com minha mãe-de-santo, ela disse que minha vida não entraria nos eixos se não entrasse na gira.
– Você entrou pelo caminho errado. O certo seria você primeiro resolver, com a ajuda dos espíritos, o teu problema material e depois caso você tivesse vontade, fazer teu ingresso no espinhoso caminho de cavalo da umbanda, tendo como incentivo o amor à religião. Se agora, resolvido o problema, você está buscando justificativas para romper o compromisso assumido faça-o, sem nenhum constrangimento. Aconselhei.
– Mas me disseram que não posso mais sair, porque voltam todos os problemas. – contou, assustado.
– Outra bobagem. Você pode sair que nada de ruim vai acontecer. Mas faça da forma correta: conte à sua mãe-de-santo o seu desejo, que ela levantará teu alguidar. Isso faz parte da lei, mas faça direito, justifique àqueles que o ajudaram, para quando você precisar, mesmo não estando vinculado à corrente, receber ajuda. E se você for com freqüência receber vibrações, e continuar cultuando as entidades através de orações e amalás, sua mediunidade se manterá equilibrada.
– Qual o seu procedimento quando o médium quer sair corrente. É assim, como você está falando? Perguntou, intrigado.
– No nosso terreiro, existem três portas: a da entrada, a da saída, e a da expulsão. Esta última, felizmente, faz muito tempo que não é usada, talvez por causa da porta da entrada. Nunca disse à ninguém que é necessário desenvolver a mediunidade, por ser uma assertiva mentirosa. Prefiro aconselhar para a pessoa pensar bem ao escolher este caminho, e que o faça com amor, com alegria e sem nenhuma influência externa, seja produto do medo ou da imposição. Quando vão sair, e isso acontece com freqüência, deixo bem claro que a porta da saída continua aberta para suas visitas normais e para visitar seus irmãos de corrente que permanecerem na gira.
– Vou fazer isso. Mas quero fazer uma pergunta: se não é para resolver os problemas materiais ou mediúnicos, qual a vantagem de estar se sacrificando no desenvolvimento? É só para fazer caridade?
– Caridade para quem? Ninguém precisa de você. Outro ocupará teu lugar. Respondi atravessado.
Notei que ele ficou embaraçado com minha resposta. Resolvi explicar melhor:
– Caridade, quem faz é a gira em seu todo. Um membro quando sai, não quebra o alicerce do terreiro. No espiritismo, o médium faz a caridade para si mesmo, ganhando a oportunidade de resgatar seus pecados cármicos e, principalmente, equilibrando seus sentimentos e emoções.
– Como equilibrar sentimentos e emoções?
– Vou exemplificar com a trilogia da umbanda: força, inocência e humildade. Temos dentro de nós esses sentimentos, mas de forma desequilibrada. No desenvolvimento da mediunidade, os caboclos trabalham na força, os pretos-velho na humildade e as crianças na inocência. Na troca das energias entre o médium e o espírito, esses sentimentos vão crescendo, até atingirem o equilíbrio, deixando o médium mais forte, mais inocente e humilde, nivelando os demais sentimentos a eles ligados, como a conscientização, a calma, o amor, a alegria, a sabedoria, a liberdade e assim por diante. Expliquei, de forma pausada e clara.
– Nunca tinha pensado assim. Vou repensar meu assunto – confidenciou.
Senti ter atingido o que pretendia: ele sentir a razão de ser um médium participativo da umbanda.
Junto com o Cristiano, a tudo ouvindo atentamente, estava um outro médium da mesma casa. Ele indagou:
– Posso lhe fazer uma pergunta?
– Claro! Se souber responder, farei com muito prazer. Respondi, solícito.
– O meu caso é diferente do dele. Adoro a gira, gosto de estar nos dias de trabalho, dizem que tenho mediunidade, mas não sei identificar nem o seu tipo nem sua potencialidade. Como posso saber?
– Você já mostrou, pela pergunta, ser um médium com fé e alegria. Esse é o começo. Tipo e potencial, ninguém pode antever. A mediunidade acontece, ela se desenvolve de forma natural, dependendo do próprio esforço. Deixe acontecer.
– Mas não é a mãe-de-santo quem deve saber? Perguntou, desconfiado.
– Se você duvida da capacidade da sua dirigente, é melhor você sair junto com o Cristiano. Pai ou mãe-de-santo não dão mediunidade para ninguém. Eles são apenas os dirigentes da gira e cuidam dos seus filhos de corrente. Faça o que ela determinar, por ser com certeza, o melhor para você. Cumpra as ordens do terreiro, senão você se enquadrará como rebelde. Sempre que você tiver dúvidas, pergunte a ela, que você terá uma resposta. Não contrarie jamais os fundamentos da umbanda.
– Nunca ninguém me explicou o que são fundamentos da umbanda.
– Fundamentos são os alicerces da umbanda, sua lei, ditada pela filosofia do dirigente do terreiro. O respeito aos orixás, às entidades, ao terreiro, à hierarquia, aos irmãos de corrente, aos consulentes e visitantes, e às regras determinadas pelos ensinamentos da Lei Maior. É, em síntese, o respeito ao bom senso e o amor que a umbanda prega. Respondi.
Sem querer, meu entusiasmo desviou a explicação que ia dar sobre mediunidade. Ele não perdoou:
– Fale mais sobre a mediunidade.
– Os potenciais todos têm. Um médium em desenvolvimento tem que passar por fase típicas: suar as mãos, sentir calafrios, tonturas, incorporações desencontradas, muitas vezes caindo no terreiro com as salutares incorporações de espíritos atrasados ou trevosos. As dúvidas começam a mexer com a cabeça de cada um.
Fui interrompido pelo Cristiano:
– Como pode uma incorporação de espírito atrasado ou trevoso ser salutar?
– Pela lei da afinidade! Todos nós sempre estamos imantados por energias ruins, algumas vezes até malignas. Quando o espírito com a mesma vibração desincorpora, ela leva junto as energias semelhantes, livrando o médium de suas interferências. Quando eu me sentia assim, recebia um espírito dessa faixa, para me limpar. Hoje não posso mais fazer isso. Expliquei.
– Se antes podia fazer, por que hoje não pode?
– Hoje tenho coroa de pai-de-santo. Já pensou como crescerá a força de um trevoso com esta hierarquia?
– Continue falando sobre as incorporações. Pediu, resignado com a explicação.
– É comum o médium iniciante incorporar na vibração do espírito, ou seja, quando a entidade chega perto, ele incorpora pela aproximação e não pela tomada do corpo e da mente, fato que não deve ser jamais recriminado pelos dirigentes, por ser comum, não trazendo nenhum prejuízo ao médium ou à corrente. No desenvolvimento, depois de todo o processo do bê-a-bá, as entidades de luz começam a incorporar. O médium fica mais dócil e mais adaptável às incorporações dos protetores. Já têm presença definida, pedem charuto e bebida, que lhes são concedidas a critério da direção da casa, até iniciarem um diálogo com alguém. Aí vem a grande dúvida: sou eu ou o espírito? Questionam. Isso é perfeitamente normal, enquadrando-se no processo comum do desenvolvimento da mediunidade. Quando o médium começa a perceber que as coisas que faz e diz estão corretas, começa a sentir confiança em si próprio. Essa é a forma comum do desenvolvimento da mediunidade.
– A mediunidade está me parecendo uma faca de dois gumes. Ela pode ser voltada para o mal?
Lembrei-me de uma consulta do Caboclo Akuan com um promotor público, que estava com sua vida ameaçada pelos traficantes de drogas, por causa de uma série de denúncias apresentadas na justiça pelo promotor. Por essa razão, andava sempre armado como precaução. Durante a consulta com a entidade, ele lembrou-se estar carregando na cinta a sua arma. Imediatamente se desculpou:
– Caboclo, estou lhe faltando com o respeito. Estou conversando com o senhor e, por descuido, trouxe comigo a minha arma que sempre carrego para minha segurança. Falou, demonstrando uma expectativa quanto à resposta do espírito.
– Não tem importância, meu filho. A arma é como a mediunidade: só causa dano quando é mal usada.
Expliquei ao moço, depois de relatar a consulta e a resposta do Caboclo Akuan ao promotor, que a mediunidade, ao contrário do que muitos dizem, é uma conquista do nosso próprio espírito, por ser a soma dos recursos acumulados em nossa espiritualidade, que nos dá maiores oportunidades para resgatarmos nossos carmas.
O Cristiano desistiu de abandonar a gira e seu amigo prometeu não questionar mais a umbanda. Mas antes de me despedir, deixei enfatizadas mais algumas palavras:
– Não se esqueçam: o médium deve cuidar de sua cultura, honrar os espíritos acima de tudo, doar-se inteiramente à casa que trabalha, sem entretanto esquecer de equilibrar sua vida profissional, social e familiar, e fugir do fanatismo tão nocivo ao bem estar dos religiosos. Deve respeitar as outras religiões, sem querer impor aos outros as suas convicções. Não beber, controlar seu emocional e não cobrar nada da religião. Nunca aceitar favores ou pagamentos pelos trabalhos que fizer e jamais usar a energia do sangue em seus trabalhos e, principalmente, nunca sacrificar nenhum animal. Por isso mesmo, antes de se filiar à uma casa, deve saber dos princípios filosóficos dos seus dirigentes. Deve fazer da umbanda uma religião alegre, gostosa e vibrante. Para isso não deve se imiscuir nos problemas dos irmãos de corrente, e nunca julgá-los. Encerrei.
Todo pai tem como obrigação levar seus filhos para assistir ao menos uma parada militar. Eu não fugi à regra e com o meu gordo filho de três anos assistia os nossos soldados marchando com indisfarçável garbo.
A bandeira brasileira tremulava e a banda marcial me dava arrepios pela força da música militar que executavam, fazendo-me hoje entender porque nos trabalhos de efeitos físicos elas são as músicas preferidas. O calor causado pelo intenso sol que ajudava o dia ser festivo e o peso do garoto já não me incomodavam. Eu na verdade sou de me entusiasmar com as coisas. Fui uma vez, extremamente contrariado, buscar meus filhos adolescentes em um show de um cantor que estava começando a despontar. O artista tinha um cavanhaque, roupas esquisitas e usava botas marrom sem graxas. Fiz sinal para eles saírem. Como de costume, fingiram que não me viram. Entrei entre os garotos disposto a puxá-los à força para casa. Para encurtar minha história, depois de algum tempo eu gritava junto com a juventude: “salve a sociedade alternativa…”. O nome do extrovertido e revolucionário cantor era Raul Seixas, posteriormente deixando um legado de belíssimas músicas, dentre as quais algumas introduzidas por mim nos rituais do nosso terreiro. Voltando ao instante da parada militar. Chamou minha atenção os brilhantes capacetes dos soldados com as letras PE, que significavam Policia do Exército. Por uns momentos esqueci da marcha para reparar a uniformidade dos tipos: todos altos, fortes e marchavam com irreparável e harmonioso garbo. Pareciam cópias que pensavam as mesmas coisas e serviam a um comandante único e com a mesma ordem. Obviamente foram escolhidos para formar aquele exército. Não podia imaginar que aquele momento servisse de exemplo no futuro para uma explicação espiritual. E serviu.
O Josias era um médium de umbanda. Como um bom filho de Xangô, era bastante questionador. De estatura baixa tinha tanto o rosto como o corpo largos. Cabelos negros e tez morena, não parava de fazer perguntas, e quando as fazia deixava aparecer gagueira. E foi assim que se lamentava.
– Eu não entendo. Dizem que eu trabalho com o Pai Joaquim, mas como pode ele estar em vários lugares ao mesmo tempo? Na mesma hora que ele incorpora em mim, também está incorporando em outros terreiros. Acho que não é ele.
Um pai-de-santo tem que ser tolerante. Eu tento, e às vezes me saio bem. Apesar do Josias não fazer parte da corrente que dirijo, de forma bem paternal e com bastante cuidado para não ferir a ética ao me intrometer em assuntos pertinentes a outro pai-de-santo tentei manter o diálogo:
– Pelo que eu sei você já está recebendo essa maravilhosa entidade já há muito tempo. Por que só agora você está duvidando?
– Sempre duvidei. Dizem que é ele mas eu não acredito.
– Ele não incorpora no ponto cantado, risca o ponto certo, atende muita gente e dá consultas maravilhosas? Por que você duvida?
– Se ele estiver incorporado em mim, como pode estar incorporado nos outros?
– O que teu pai-de-santo diz a você quando você questiona essa situação?
– Eu nunca falei com ele a respeito, principalmente porque é ele quem diz que a entidade é o Pai Joaquim.
– Fale com ele e exponha tua dúvida. Aconselhei.
Algum tempo depois encontrei-me novamente com o Josias.
Perguntei-lhe o desfecho da conversa que prometera ter com seu pai-de-santo.
– Ele disse que existem vários espíritos que se dizem Pai Joaquim.
– Embora ainda não totalmente convencido, resolvi aceitar como verdadeira essa orientação.
Expliquei ao Josias que em nosso terreiro várias entidade usam esse sagrado nome, alguns até mesmo como sendo de Xangô, da Praia, da Costa e o mais comum o conhecidíssimo Pai Joaquim de Angola, inclusive que incorporam do mesmo jeito, bebem a mesma bebida, fumam o mesmo cigarro de palha, e todos falam a mesma linguagem, diferenciando bem pouco um do outro. E o interessante é que em um terreiro se o Pai Joaquim atende alguém, em outro terreiro mesmo que seja outro espírito dessa linha, dá continuidade a conversa anterior. Ele voltou à carga:
– Eu aceitei, mas não entendo.
Tentei explicar falando do Exu Tranca Ruas das Almas de quem já tive várias provas desse fenômeno.
– Todos sabem que existe a energia Tranca Ruas. Dentro dessa energia, um exército de Tranca Ruas, subdivididos em das Almas e Encruzilhada, fazem presença nos milhares de terreiros existentes. Claro que não é a mesma entidade, mas são todos iguais, pensam da mesma forma e o que um fala o outro sabe. E em nada está errado que no mesmo terreiro existam Tranca Ruas incorporados em vários médiuns, exceto quando ele incorpora no dirigente da casa, por ser a palavra dele a ordem superior.
Ele ficou pensativo. Acho que extrapolei nas explicações, complicando a situação. Lembrei-me da parada militar.
– Para você ter uma idéia, imagine a Policia do Exército. Todos usam o mesmo tipo de uniforme, têm o mesmo tamanho e peso, e obedecem a ordem de um único comandante. Ali no exército não têm mais o nome de batismo: são soldados prontos para executar a mesma ordem, da mesma forma e com a mesma força. Os espíritos podem ser como os soldados.
Ele sorriu.
– É um bom exemplo. Vou pensar melhor…
Acho que fiz, em nosso terreiro o tipo enérgico no comando das giras. Na verdade apenas exijo que cada um cumpra o seu papel, sem se intrometer com os outros e estejam dentro das normas estabelecidas pela cultura espiritual que ensinamos e previamente estabelecemos.
Não são regras, mas princípios filosóficos copiados da essência da própria lei da umbanda.
A responsabilidade do controle dos médiuns cabe à hierarquia do terreiro, escolhida pelo dirigente espiritual.
Um dirigente de outro terreiro, o Hiran, pela amizade que mantemos há longo tempo, observando nossa organização, trocava idéias comigo a esse respeito. Não sei até hoje se a sua intenção era para comparar, aprender ou, quem sabe, criticar. Vou contar o diálogo:
– As determinações são cumpridas por todos os capitães sem discordância entre si?
– No nosso terreiro a hierarquia está formada, além de mim, por uma mãe-de-santo, dois pais-pequenos, onze capitães e cinco ogans de atabaque. Por serem heterogêneos, tanto na cultura como em seus temperamentos, não posso exigir igualdade. Mas, cada um com seu jeito, cuida com muito carinho dos médiuns.
– Como vocês procedem quando um médium está ingerindo bebidas alcóolicas em excesso? Mandam a entidade subir imediatamente?
– O procedimento correto não é esse. É muito perigoso o médium ficar embriagado. O choque da advertência pode fazer o cavalo se desligar do espírito, não dando tempo da entidade fazer a limpeza do álcool. Nem sempre é o espírito que se desliga, às vezes é o médium que sai da vibração da entidade. Recomendo à um dos membros da hierarquia conversar com o espírito e, em caso de persistir em beber, mando cantar o seu ponto de subida. E isso deve ser feito com muita cautela, para não magoar o médium.
– Para chamar a atenção do médium, você costuma falar com ele, indiretamente, através do espírito?
– Não usamos essa artimanha amadora de chamar a atenção da entidade, para o cavalo ouvir. Se o médium estiver extrapolando, recomendo que esperem o espírito desincorporar, para depois explicar ao cavalo o seu erro. Eu, particularmente, tenho um trato com as entidades: elas lidam com os espíritos, e eu com os médiuns.
Pela expressão de seu rosto, não sabia se o Hiran estava aprovando o que eu dizia. Já não estava tão expansivo, como no início de nossa conversação. Provavelmente a sua técnica devia ser diferente da minha. Interrompeu o curto silêncio, para dizer:
– Eu recomendo à minha hierarquia conversar com a entidade, para não humilhar o médium. Nem sempre é o espírito que está falando e sim o médium interferindo na comunicação. Justificou o Hiran.
– No dia que eu tiver dúvida que os espíritos não estão incorporados nos médiuns, fecho as portas do terreiro. Proíbo, terminantemente, que os membros da hierarquia desconfiem da manifestação das entidades nos médiuns. Nenhum deles, da hierarquia, como nem eu ou você, temos condições de saber se o cavalo está interferindo na comunicação do espírito. Só falta você me dizer, Hiran, que finge ser médium inconsciente, para que os membros da corrente contem para você os seus problemas sem constrangimento. Provoquei o pai-de-santo.
Às vezes o silêncio vale por um discurso. Ele não respondeu nada. Preferi consertar o constrangimento criado, abrandando a ênfase das minhas palavras. Retomei a o diálogo:
– Cada componente da hierarquia tem a obrigação de transmitir aos médiuns a palavra do dirigente. Não pode haver choques ou informações distorcidas, mesmo que tenha convicções diferente da dele. Nesse caso, não deveria ter aceitado o cargo que lhe foi confiado. E a minha filosofia é despertar nos médiuns a autoconfiança, de modo sincero, dando a entender para eles, que é melhor ser advertido de seus erros do que continuar errando. Isso não pode trazer mágoas, ao contrário, eles têm que reconhecer a nossa boa intenção.
Ele entendeu a direção de minhas palavras, tanto que confessou humildemente:
– Você está cheio de razão. Vou repensar no modo de lidar com os médiuns.
Retomei o assunto da mentira da inconsciência do pai-de-santo:
– Conversando e orientando os médiuns com sinceridade, você ganha a confiança deles. Tive uma alegria imensa outro dia, quanto um médium me procurou para contar um problema: “fiz uma coisa muito errada. Pensei em contar para o Caboclo Akuan, mas fiquei com vergonha dele. Por isso procurei você diretamente…” Veja, Hiran, como ele demonstrou respeito à entidade e confiança em mim. Falei orgulhoso.
Ele concordou, com gestos de aprovação.
– Eu tenho um problema com minha hierarquia: à vezes eles brigam entre si. Acontece com você o mesmo?
– Não com freqüência, mas acontece.
– E por que isso acontece? Disputa do poder?
– O ciúme e a falta de humildade! Respondi lacônico e convicto.
– Na verdade temos muito que aprender. Observou.
– Diariamente estamos enriquecendo nossos conhecimentos. Mas no caso que estamos discutindo, não é questão de não saber, mas como agir.
– Chegar neste ponto, que é difícil. Queixou-se.
– É só você não fazer aos outros o que não gostaria que lhe fizessem. E concluí nossa conversação.
A Patrícia, uma adolescente de classe média, estava passando um difícil momento. Desajustada socialmente, sentindo-se desprezada pelos amigos e revoltada com a separação de seus pais, despertaram na bonita jovem o ódio à vida.
A Patrícia, uma adolescente de classe média, estava passando um difícil momento. Desajustada socialmente, sentindo-se desprezada pelos amigos e revoltada com a separação de seus pais, despertaram na bonita jovem o ódio à vida. Indicada por alguém, ela me procurou, buscando uma explicação para seu problema. Após ouvir suas queixas, não hesitei:
– Vá conversar com a Carmem Silvia. Aconselhei, entregando-lhe o número de um telefone.
O seu tipo médio, com os olhos claros, mostrando os dentes salientes e bonitos, faziam da Patrícia a figura da moça bonita, sem deixar transparecer o quanto sua alma estava atormentada. Ao receber minha orientação, perguntou aparentemente decepcionada:
– Por que essa Carmem Silvia, que não conheço? É mãe-de-santo?
– Não é mãe-de-santo. Ela faz parte da hierarquia do nosso terreiro. É uma amiga e conselheira dos jovens integrantes da gira, aos quais atende sempre com um sorriso acalentador, muito embora esteja guerreando contra um terrível dragão, em forma de um insistente câncer. Sua arma é a fé, e o seu escudo é o amor à vida e a alegria de viver.
– Não entendo nada de umbanda. O que é hierarquia?
– São os membros que têm a obrigação de atender o terreiro, material e espiritualmente. São os auxiliares diretos do dirigente e lhes compete, além de fazer que seja cumprida a lei da umbanda, dar assistência direta aos membros que compõem a corrente mediúnica da casa. Tentei sintetizar. Você está precisando, além do amparo espiritual de uma pessoa semelhante a você, com quem possa trocar confidências. Converse com ela, e depois você venha falar comigo.
– Se o que mais quero é morrer, por que devo conversar com uma pessoa que luta contra a sua própria morte?
Lembrei-me de uma história da Carmem com o Exu Tranca Ruas das Almas. Durante uma gira, ele a chamou e pediu:
– Preciso que você faça um trabalho para eu resolver umas demandas.
– É só o senhor dizer o que devo fazer.
– Quero que você vá sozinha ao cemitério, na cruz das almas, à meia-noite, com um alguidar cheio de farofa, leve um galo preto, corte a sua garganta e derrube, dentro do alguidar, todo o sangue que escorrer da ave.
Depois de terminar as anotações como deveria ser feito o trabalho, retirou-se, voltando às suas tarefas no meio do terreiro. Um pouco antes do final da gira, ela, dirigindo-se ao exu, falou:
– Infelizmente não posso cumprir hoje a tarefa que o senhor me destinou, mas amanhã irei executá-la.
– Carmem, eu menti para você. Não precisa fazer nada do que pedi. Eu só queria testar tua fé. – respondeu, delicadamente, o poderoso exu.
Ela não questionou os incômodos que teria para executar o trabalho, principalmente a matança, o que é proibido em nosso terreiro.
Os olhos são a síntese da alma. Olhei para os da Patrícia: apesar de claros e bonitos, eles me revelaram que, dentro daquela prepotente fisionomia, estava sufocado um pedido de socorro. Retomei a conversação.
– Há anos atrás, a Carmem procurou o terreiro, em piores condições do que você. Hoje ele é a minha auxiliar que obedece, sem questionar, as ordens dadas pelos espíritos, o que me deixa orgulhoso, porque eu também sou assim. Ela aqui aprendeu ter fé e entendeu a importância de viver. Teve a revelação que desejar morrer é arma do covarde.
A impostação das minhas palavras deve ter impressionado a Patrícia. Não retrucou e foi falar com a abnegada Carmem Silvia. Não me procurou como tinha prometido, sinalizando ter encontrado a paz, fato que me foi confidenciado pelo amigo comum que lhe mostrou o regenerador caminho da umbanda. Só veio falar comigo dois meses depois, exibindo um sorriso lindo e com a sua face iluminada pela brilhante luz que saía dos seus olhos. Apelou:
– Fernando, posso fazer parte da gira da umbanda do terreiro de vocês?
– Compre uma roupa branca e pode entrar na nossa gira. Concordei, emocionado.
Há tempos atrás fui um zeloso e falido criador de cavalos de corrida. Sempre gostei dos cavalos e não existia nada mais emocionante que assistir aqueles belos e selecionados animais disputando uma corrida.
Os cavalos de corrida são atletas. Para a competição seu físico tem que ser apurado. Ensinam os antigos criadores que cavalo ganhador começa a se fazer na barriga da mãe. Daí a necessidade de uma alimentação saudável e boa. Por isso eu cuidava com carinho das pastagens onde os animais eram criados. Mandei fazer a semeadura de uma leguminosa que exigia um solo bem preparado. Era um rico capim para pastagem. A semente tinha que ser boa, por isso eu as comprei no melhor fornecedor na ocasião. Ver uma planta nascer mexe com nossas emoções. Foi um sucesso o plantio. Aquela imensa área verde crescia dia a dia. Eu não via o momento de deixar as éguas criadoras pastarem aquele pasto. Quando eu chegava no haras eu ia verificar o novo pasto para ver se crescia e estava bem incorporado como eu planejara. E lá no meio, parecendo uma criança com seu brinquedo novo, eu estava agachado acariciando as plantas quando vi aproximar-se o gerente do estabelecimento.
O Enio era o responsável por todos os cuidados do estabelecimento. Era um homem baixo, com os olhos esbugalhados, tinha beiços grande e tez mulata. Foi jóquei e era um lidador com os cavalos de grande paciência, tanto que se encarregava de domar os potros novos antes deles irem para o Jóquei Clube onde seriam preparados por treinadores especializados para disputarem os páreos. Falando de forma circunspeta ele me cumprimentou:
– Bom dia.
Conhecia o jeito dele quando queria dizer alguma coisa. Facilitei:
– Bom dia Enio. Alguma novidade?
Ele abaixou-se do meu lado, e separando algumas plantas da bela leguminosa, mostrou entre elas uma outra que nasceu junta.
– As sementes estavam misturadas. No meio nasceu também uma planta que parece uma salsa. Eu não sei o que é. Não será melhor fazer um exame para ver que tipo de planta é essa?
Fiquei surpreso. Ele nunca tinha feito observação semelhante. Achei ser um sinal e a desconfiança tomou conta de mim. Perguntei:
– Está com medo que seja uma planta venenosa?
– Nunca se sabe. Parece uma salsinha, mas pode não ser. Acho que não devemos deixar os animais pastarem sem um exame melhor.
Chegando em minha casa fui consultar os livros de plantas. Vi a salsinha, e sua raiz era ………….. No dia seguinte voltei ao haras e arranquei uma amostra, e a raiz era diferente da do livro. Era uma…………….(verificaar o nome certo). Colhi algumas amostras e levei na Escola de Agronomia para um exame técnico. No dia seguinte fui buscar o resultado. O Engenheiro Agrônomo havia solicitado à funcionária do estabelecimento que antes de me ser entregar o resultado eu falasse com ele. Ele veio pessoalmente atender-me no balcão. Sem rodeios advertiu:
– Essa amostra que você trouxe é de sicuta.
Levei um susto.
– Sicuta? A do Sócrates?
Ele rindo, confirmou:
– Foi o veneno que o Sócrates ingeriu para se matar.
Saí preocupado e frustrado. Voltei para o haras, chamei o Enio e determinei:
– Pegue o trator e acabe com a Serradela porque ela foi semeada junto com uma planta venenosa.
Enquanto o trator ia destruindo o verde pasto fiquei imaginando o risco que correram os cavalos.
Tempos depois tive um gostoso reencontro com o Pedro, um pai-de-santo meu amigo. Gostava de trocar idéias com ele sobre os segredos e magias da umbanda por ele ser uma pessoa de rara inteligência e um invejável senso critico, raramente fugindo dos limites do necessário equilíbrio racional que deve reger nossas duvidas. Estávamos sentados em uma enorme pedra no meio do rio Nhundiaquara. Os pássaros saltitavam e cantavam em nossa frente, e vez ou outra um beija-flor revoava em nossa frente como um curioso querendo ouvir nossa conversa. Só se ouviam as aves e o gostoso barulho das águas do lindo rio. Nosso silêncio prestava um tributo à essência de nossa espiritualidade envolvendo a nossa alma em profunda reflexão espantando os gestos grosseiros e os pensamentos mundanos. Quase em um sussurro ele deixou florescer as delicadas e difíceis questões que incomodam os dirigentes da religião umbandista, dizendo:
– Estou formando uma nova corrente, e estou com medo de errar.
– Errar no que?
Deixando suas sobrancelhas caídas mostrarem preocupação e seu rosto mais vincado que o costume, não hesitou:
– Não sei escolher os membros para a corrente. Tenho medo de criar monstros.
Fiquei surpreso. Indaguei:
– Criar monstros? Explique melhor.
O Pedro deu leve suspiro como coordenando as coisas que ia falar. Pelo seu jeito sabia que seria um assunto que aos outros poderia ser simples, mas não para ele acostumado a ir na sua essência mais profunda. Talvez a magia do espelho. Aquela que descobre coisas invisíveis escondidas dentro do visível. Fiquei aguardando quando falou:
– Não sei distinguir dentre os homens aqueles que saberão usar corretamente a força das suas mediunidades. Quando preparamos um médium, ele se torna uma bomba que pode a qualquer instante detonar contra pessoas inocentes. É criar, em que não merece, a magia da força da energia condensada no perispírito.
Fiquei atento e encantado com a suavidade da explicação, embora tenha visto uma preocupação íntima que deveria estar atormentando o zeloso e experiente pai-de-santo. Embevecido aguardei a continuação.
– Provocamos o desenvolvimento da mediunidade dos membros da corrente equilibrando os seus chacras, os catalisadores das energias, e praticamente abrimos caminho para que as entidades de força, como os caboclos, pretos-velho e exus, tomem seus corpos através da incorporação. Dentro de suas auras, principalmente no perispírito, as energias das entidades vão sendo depositadas. Com isso eles estão portando as energias dos orixás. Essas energias são fortes por terem sido deixadas por entidades desse nível, mas qualquer alteração de sentimento deixa escapar essas forças. Se eles amarem seus semelhantes deixarão exalar sempre a energia do amor, mas se ficarem irados, deixando o ódio dominar suas emoções e elas forem voltadas para alguém pode acontecer que sua energia somada com as das entidades provoque um mal muito grande a essa pessoa. Veja o perigo: sem o conhecimento dos espíritos eles estão jogando suas forças contra alguém por conta da ignorância de um médium.
Fiquei deslumbrado com a explicação do pai-de-santo. Perguntei:
– Seria o caso então de não provocarmos o desenvolvimento nos médiuns sem antes conscientiza-los dessa força, até que possam dominar suas emoções e jamais podem sentir o ódio?
– Exatamente. Mas como vamos saber quem vai ou não gerar esse sentimento no futuro?
Imediatamente veio na minha mente a corrente que dirijo. São jovens e velhos, homens e mulheres das mais variadas origens e capacidade cultural. Lembrei-me da minha plantação: misturei semente nobre e para alimentar os animais, com a terrível e danosa semente venenosa. Mas como poderia fazer isso? Como nós, dirigentes de terreiros de umbanda, poderemos prever ou saber quais os que devem ou não ficar misturados no grupo? Também fiquei preocupado. Consolei meu cuidadoso amigo:
– Acho que não temos alternativas. Só podemos confiar nas entidades e esclarecer aos médiuns que eles ficam proibidos de se zangarem com alguém.
Como toda religião, a Umbanda é machista. O caboclo manda na cabocla, o preto-velho na preta-velha, o exu na pomba-gira, e eu, apear de ser pai-de-santo, não mando na minha mulher – eu mando, ela que não obedece.
Não conheço nenhuma papisa, e até pouco tempo as freiras não podiam oficiar a missa católica, isso para não falar de todas as outras religiões. Moisés deve ter confundido as palavras do Criador, quando ao receber os dez mandamentos, ouviu “não desejar a mulher do próximo”, quando deveria ouvir “não desejar a mulher, ou o homem, do próximo”.
Não sou machista, mas quero que as feministas parem com sua perigosa marcha em busca da igualdade com os homens. Se isto acontecer, a delicada, graciosa e intocável redoma da feminilidade perderá o seu mais dedicado guardião: o homem, o sempre apaixonado servidor da mulher.
Um dia o Caboclo Junco Verde explicou sua ótica sobre o homem e a mulher: o homem é o Sol e a mulher a Lua. Ele é a força, e ela a magia.
A força do homem pertence à mulher. Ele a usa quando vê em perigo a dócil mãe dos seus filhos e a ferrenha parceira na luta pela sobrevivência. Protege a bela e apaixonante amante espiritual, a inspiradora da sua luta, a razão da sua existência, a provedora da sua felicidade. E ela, a mulher, como a lua, sabe usar a magia, ao eleger o homem, força e complemento de sua feminilidade.
A mulher não tem que pleitear a igualdade. Nenhum é mais que o outro. Eles são, ambos, complementos do amor. Não posso imaginar nosso mundo sem existir a força do sol e a magia da lua.
O Caboclo Junco Verde soube, com muita inteligência, separar os direitos e deveres de cada um. A sua indignação ao ver ameaçado o seu direito de defender a mulher ficou bem clara numa ocasião:
Para observar o comportamento de uma médium que recebia uma entidade da linha de Jurema, eu quis ver sua incorporação. Apesar das entidades chefes serem chamadas em primeiro lugar, desta vez fiquei de lado e mandei cantar o ponto da cabocla Jurema, a entidade que incorporava na complicada médium. Assim foi feito. Vi o que queria, tirei minhas conclusões, e pedi para chamar o Caboclo Junco Verde. Para recebê-lo, fico na frente do Congá, em lugar privilegiado pela hierarquia de dirigente. A corrente já cantava há algum tempo e eu, ali, sob o olhar de todos os presentes, parecia um pateta. Nada de chegar o Caboclo. Fiquei sem jeito, sem nada entender, quando fui intuído para receber outra entidade, o Caboclo da Cachoeira. Chamei o pai-pequeno, dizendo:
– Cante o ponto do Caboclo da Cachoeira.
Logo no início do ponto de chamada deste maravilhoso Caboclo de Xangô, ele incorporou, mostrando, nitidamente, que não era culpa minha a ausência do Caboclo Junco Verde, e sim dele, que não quis incorporar.
– Salve meus filhos! – cumprimentou o sisudo Caboclo da Cachoeira e foi sentar no toco.
A cambone, delicadamente, entregou-lhe uma tábua e pemba, para riscar o ponto.
– Não precisa, disse o Caboclo. Vou ficar enquanto o Akuan conversa com o Junco. Arrematou, aceitando, apenas, o charuto.
Nunca imaginamos situações como esta no plano espiritual. O Caboclo Akuan, chefe do terreiro, foi convencer o Caboclo Junco Verde, um espírito comprometido com o terreiro, a cumprir sua obrigação de vir trabalhar. São entidades maravilhosas, espiritualizadas mas sensíveis quando vêem ameaçados seus direitos legais. Não tinha terminado de fumar o seu charuto, e o sêo Cachoeira levantando, despediu-se dos cambonos:
– Vou subir. O Junco vai incorporar – deixando claro o poder de convencimento do Caboclo Akuan.
Fiquei ressabiado para recebê-lo. Ele veio, não alegre como de costume. Estava mal-humorado, com a cara fechada, deixando transparecer uma emoção, até então desconhecida para mim. Sem nada dizer e a ninguém cumprimentar, com passos pesados, dirigiu-se e sentou no toco, riscando o ponto com má vontade. Dava mordidas no charuto, como se tivesse vontade de comer a orelha de alguém. O pai-pequeno, sentou-se à sua frente, dirigindo-lhe delicadamente a palavra:
– Salve, Caboclo! O que houve, sêo Junco? Estamos assustados, nunca o vimos assim.
– Escute! Respondeu, secamente. – A mãe é Jurema, e quem cuida da mãe é o filho; a mulher é Jurema, e quem cuida da mulher é o homem; a filha é Jurema, e quem cuida da filha é o pai.
– Sim, meu pai, entendi a mensagem, só não sei, qual a razão de sua zanga.
– Como é então que vocês chamam uma cabocla antes do caboclo? Vociferou, aos altos berros. – Não conhecem a lei da umbanda? Nunca venho depois de cabocla.
– Sêo Junco, explicou, na verdade foi seu cavalo quem pediu, pois precisava ver a incorporação da cabocla na médium também. Não tivemos nenhuma intenção de desrespeita-lo.
– Essa não é a Lei. Não admito que pai-de-santo erre. Se não a conhece, entregue sua guia e vá aprender como se dirige um terreiro. Encerrou enfurecido.
As pessoas precisam entender que a mistura da energia do médium com a do espírito, caracterizando a incorporação, não ausenta em absoluto a presença da consciência do cavalo na comunicação, devendo dar descontos para eventuais e normais falseadas na mensagem.
Na linha kardecista, quando um espírito familiar se manifesta, mesmo que nunca em sua vida encarnada tivesse tido respeito à espiritualidade, ou tenha sido um analfabeto e com temperamento grosseiro, deixa mensagens cheias de amor, fala com muita intimidade o nome de Jesus Cristo e demonstra conhecimento das leis do espiritismo, com um linguajar requintado e manso. Nada de estranho, considerando-se a capacidade e a cultura do médium, que soube traduzir o sentimento e o desejo do espírito comunicante.
Na umbanda não é assim. Os consulentes exigem provas e mensagens mais concretas. Querem que o espírito diga nomes, datas e tudo que se relacionava com sua pessoa, quando encarnada. Existem muitos médiuns que têm esta capacidade, mas, via de regra não são assim, como um Chico Xavier – para mim, um homem santo. Devemos ficar atentos aos sinais do espírito, aos pequenos gestos e palavras que usava quando encarnado, e se acontecer, devemos entender como verdadeira a comunicação. O resto, fica para São Tomé. Existem histórias e histórias, que comprovam minha assertiva, mas, uma delas, para mim, foi especial. O Caboclo Akuan estava incorporado, no toco, quando o pai-pequeno, acompanhado de um rapaz alto, corpulento e demonstrando um ar muito triste, solicitou:
– Caboclo Akuan há questão de uns seis meses este moço perdeu seu pai, e está inconsolável – explicou. O senhor pode atendê-lo?
O rapaz sentou-se, a entidade ofereceu-lhe bebida e perguntou:
– Que houve, meu filho?
– Eu amava meu pai. Ele morreu, e estou muito nervoso com isso.
– Você conhece bem pouco o espiritismo, não é, meu filho?
– Realmente, nada conheço, mas sinto a presença dele ao meu lado. Estou buscando no espiritismo uma explicação, principalmente para saber se o espírito sobrevive à morte e, se eu me convencer, quero saber como ele está. Disse, de modo franco, mas respeitoso.
– Acho melhor você perguntar a ele. Traga aqui um cavalo, para receber o espírito do pai desse moço. Ordenou ao Beco , o pai-pequeno.
Rapidamente, o Beco pôs em sua frente a Cristina, uma excelente médium, fiel na transmissão da fala do espírito. Já habituada com essas situações, tirou seus óculos e ficou esperando uma nova ordem. Vale dizer, que nesses momentos, muito embora o médium perceba que vai servir em uma incorporação, nada sabe a respeito, desconhecendo se é espírito familiar, obsessor ou protetor, se é homem ou mulher Esta é a parte convincente da comunicação. A entidade fez uma vibração no consulente e a passagem do espírito aconteceu. A Cristina incorporou. Como sempre faz nesses casos o Caboclo mandou o Beco atender a conversação e ambos, espírito do pai incorporado e seu filho, iniciaram um diálogo, que transcorreu de um modo normal, com alguns sinais de ser realmente o espírito do pai do desconfiado rapaz. Após algum tempo, ambos levantaram-se e a entidade disse ao moço:
– Agora você sabe que eu estou bem e o espírito existe após a morte. Esclareceu, anunciando sua despedida.
O rapaz demonstrava estar desconfiado da autenticidade do que assistia, o que era perfeitamente compreensível. O pai falou estar bem, da saudade que tinha da família, testemunhou Jesus existir e outras coisas bonitas. Mas nada lhe dava a certeza de ser realmente o espírito de seu pai, talvez por não tido nenhum sinal evidente, aquele assunto que só os dois sabiam. E foi nesse estado, que disse ao espírito:
– Foi muito bom falar com o senhor, meu pai.
– Quando você precisar de ajuda, me chame que estarei ao seu lado, meu filho. Prometeu o espírito.
– Bem, e como vou saber que é o senhor que estará ao meu lado? Perguntou, o incrédulo filho.
– Quando você ouvir um arroto e sentir um bafo de uísque, serei eu. Afirmou, rindo, o espírito.
– O rapaz deu um salto para trás. Com os olhos arregalados, fechou uma carranca e franzindo as sobrancelhas, fixou um olhar espantado, para o rosto da médium. Aguardou nessa posição alguns segundos, jogou-se nos seus braços, e num choro convulsivo, exclamou, eufórico:
– Papai! Papai! É o senhor…
Entre os umbandistas, as provas também são exigidas. Até entre os pais-de-santo. Um deles, de São Paulo, estava visitando a Tenda Espírita São Sebastião. Foi recebido com todas as honras de sua coroa, como manda a lei da umbanda. Convidado a ocupar um lugar privilegiado, ficou assistindo a gira de quimbanda, naquela noite,. Faz parte da lei da umbanda, quando uma visita com hierarquia estiver presente, a entidade, quando incorpora, deve bater a cabeça ao visitante e naquela casa, especificamente, havia a determinação que as entidades batessem a cabeça literalmente, ou seja, encostando a testa no chão. A medida que incorporavam, as entidades cumpriam seu papel. Já incorporado com o Exu Tranca Ruas das Almas, fui levado pela entidade até o pai-de-santo e contrariando meu impulso e todas as regras da casa, deu um tapa no peito do homem e, rindo, falou:
– Para amigo não bato a cabeça. E foi adiante, sem dar importância à hierarquia do chefe de terreiro.
Estranhei o comportamento do exu, um grande respeitador da lei da umbanda e das determinações das casas umbandistas. Contrariando minha expectativa não fui repreendido pelos dirigentes materiais da casa. No dia seguinte, recebi um telefonema.
– Fernando, aqui é o Rangel. O pai-de-santo que ontem visitou o terreiro.
– Como vai, Rangel? Gostou do trabalho?
– Gostei. Preciso conversar com você. Podemos marcar um encontro?
Estranhei o curto diálogo. Não estava entendo a razão, mas alguma com certeza, havia. Convidei-o para vir à noite em minha casa. Conversando na sala, tomávamos um cafezinho com biscoitos, e contávamos histórias sobre a umbanda, eu as minhas e o Rangel as dele. Ríamos e aprendíamos, um com o outro. Era uma pessoa muito agradável. Só me intrigava a razão de sua visita. Não seria para contar passagens de sua vida espiritual. Não sabia como perguntar mas imaginava que, antes de ir embora, com certeza ele revelaria. Já passava da meia-noite, a famosa hora grande dos espíritos, foi quando ele, de repente, tornou sua expressão séria e formal:
– Você deve estar imaginando porque eu estou aqui, não é?
– Sinceramente? Não estou agüentando mais a curiosidade. Respondi, em tom informal.
– Fiz um trato com o Exu Tranca Ruas das Almas. Sempre que estiver incorporado, se for realmente ele , tem que dizer ser meu amigo. E ele, incorporado em você, cumpriu o combinado. Por não ser um fato comum nos terreiros que visito, quis conhece-lo. Explicou, desfazendo todo o mistério.
Entendi o Rangel, porque eu também gosto quando isso acontece comigo, mesmo que seja em sentido inverso.
Um espírito que reverencio com grande amor é o do Pai Joaquim de Angola, meu padrinho de feitura de cabeça. Fui visitar um terreiro de certa fama onde, durante a gira, incorporou em um médium, por sinal com hierarquia na casa. Fiquei alegre.
– Oba! O Pai Joaquim! Exclamei, cutucando meu companheiro ao lado.
À guisa de receber uma vibração, entrei dentro do local dos trabalhos e passei por sua frente. Ele nem me olhou. Imediatamente, dei meia volta, retornando para meu lugar, lá na assistência.
Enquanto calçava os sapatos que tinha tirado, como todos devem fazer, ao entrar no espaço dos trabalhos, informei meu amigo.
– Vamos embora. Disse, secamente.
Quando já estávamos de volta, no automóvel, ele perguntou:
– O que aconteceu lá, para você sair, praticamente no começo do trabalho?
– Não fico em terreiro onde o Pai Joaquim está incorporado e ele não me conhece. Respondi indignado.
Afinal, mesmo nós, crentes, temos nossas dúvidas, que desaparecem, mediante uma prova evidente.
O Exu Tranca Ruas das Almas faz questão de comprovar aos seus consulentes a sua autenticidade, como fez com uma senhora carioca que visitou nosso terreiro. Ela estava na assistência quando foi chamada para conversar com ele. Nada de extraordinário foi dito ou falado, exceto a confissão da simpática consulente ser uma incondicional fã da entidade. Voltando ao Rio de Janeiro, ela teve notícias que em Petrópolis um médium estava recebendo o Exu Tranca Ruas das Almas com muita fidelidade. Não hesitou e foi conhecer o terreiro onde trabalhava este médium. Estava na assistência, quando foi surpreendida com o convite da entidade para conversar com ele. Conversaram trivialidades, quando, antes de se retirar, o exu falou:
– Sempre que eu estiver no terreiro, mando chamar você para me cumprimentar, como fiz hoje e também como fiz há tempos na outra cidade incorporado com o cavalo careca. – completou, sob o olhar espantado da sua fã.
Essas comprovações, na verdade, não são necessárias para quem tem fé. Mas que são gostosas, não tenham dúvidas!
Será que o Amalá, a grande arma da umbanda, está condicionado na lei da troca, ou seja, eu te dou de comer e você atende meu pedido?
Vamos ver. Recebi um telefonema:
– Fernando, aqui é o Floriano. Identificou-se, como se precisasse, sendo ele meu irmão de carne. O filho de um amigo meu teve um acidente e está em coma, na UTI, já desenganado. Ele, desesperado, quer uma ajuda sua.
– Ligou no dia certo, hoje temos trabalho…
– É, eu sei. Por isso estou telefonando. Interrompeu.
– É trabalho na linha dos caboclos, gira especial para pedir este tipo de ajuda.
Tomei nota do nome do rapaz, idade e endereço do hospital onde estava internado. À noite, esclareci meus cambonos sobre como deveriam proceder para receber uma orientação do Caboclo. Assim foi feito.
– Sêo Junco Verde – disse a cambono, O nome anotado neste papel é de um rapaz que está muito doente no hospital, já desenganado pelos médicos da terra. O senhor pode fazer algo por ele?
O Caboclo pôs o papel em seu ponto riscado e disse à cambono que depois daria uma orientação. Antes do final do trabalho, ele recomendou que ela tomasse nota de um trabalho para o rapaz.
– Uma moganga assada, com milho. Abacate, maracujá, melancia, melão, abacaxi, ameixa e outra fruta do gosto do meu cavalo. Sete charutos, uma caixa de fósforos, sete velas brancas, sete verdes e cevada. – Faça uma entrega, não precisando escrever nada, apenas pense e ore pelo menino, disse.
Procurei um lugar adequado para fazer a entrega – o amalá. Escolhi o lugar, na entrada de uma mata, embaixo de uma figueira frondosa. Na relva, iniciei a montagem da entrega. Como não gosto de deixar no mato materiais não biodegradáveis, cortei três folhas de bananeira. Cuidadosamente, deixei-as como base. Em cima coloquei a moganga com milho, ajeitei as frutas ao lado, procurando construir a entrega do jeito mais bonito possível. No copo de casca de coco – coitê, depositei a cerveja. Pus os charutos no trabalho, cerquei-o com as velas, alternadas nas cores, de forma tal que fechassem um circulo bem harmonioso. Acendi-as e depositei a caixa de fósforos, entreaberta. Cantei o ponto de Oxóssi, do Caboclo Junco Verde, fiz uma oração, pedi a cura do moço, quando percebi, intuitivamente, o Caboclo dizendo-me que, em vinte e um dias ele sairia do coma e conseqüentemente ficaria curado. Agradeci,e afastei-me respeitosamente.
Dei a notícia ao Floriano, pedindo que não dissesse nada aos pais do moço, pois diante da gravidade de seu estado de saúde, alguma coisa poderia dar errado e eu não achava justo dar falsas esperanças. No dia seguinte, recebi um telefonema do pai do rapaz que dizia eufórico:
– Fernando, obrigado! Já contei para todos que em vinte um dias meu filho vai estar curado.
Claro, o segredo não foi guardado. Exatamente vinte e um dias após, o rapaz acordou. E hoje está completamente curado. Mas, o importante nesta história, não é a cura e sim o amalá. Como ele funciona? O espírito come e bebe? É guloso e beberrão? Se nada ganhar, nada fará? Vou entrar no faz-de-conta e estou vendo o desenrolar da entrega no mato, como me foi contada pelo próprio Caboclo Junco Verde. Durante a construção do Amalá, uma faixa de luz era para ele direcionada, vindo do infinito. Do trabalho emergiam vibrações semelhantes. Era a força cósmica do orixá Oxóssi, que foi atraída pelas vibrações semelhantes aos das comidas ofertadas. De longe, a tudo assistindo, o Caboclo Junco Verde permanecia em pé, dentro do mato. Quando acendi as velas e cantei o ponto de Oxóssi, a troca de energias, a cósmica e do trabalho, se intensificaram, criando, em volta da oferenda uma massa energética maravilhosa, de luz cintilante, e girava em torno do trabalho. Vários índios estavam em volta, mantendo pequena distância. Quando cantei o ponto do Caboclo Junco Verde ele saiu do mato, aproximou-se e cumprimentou aqueles maravilhosos espíritos indígenas. Todos se ajoelharam em volta do trabalho, e largaram suas energias, que se somavam à já existente. Ela foi se condensando, e era manipulada pelo Caboclo Junco Verde, até que todos ficaram em pé e ele, com aquela energias em suas mãos, foi até o mato, de onde saiu um outro índio, um Pajé, por todos reverenciado. Pegou toda aquela energia e sumiu com ela para dentro do mato. Esta energia de Oxóssi, do material que compunha o amalá, foi usada para curar o doente no Hospital. Okê Odê, Oxóssi.
Já morri várias vezes, mas não me lembro do céu. Tenho uma idéia do inferno, mais compatível comigo.
É mais fácil imaginar um tridente, um caldeirão, as labaredas e um homem magro, com cavanhaque, mostrando os crifres e a ponta do rabo. Do céu, não tenho a mínima idéia como possa ser. Como será? Terá árvores, riachos, brisa, luz, animais, ou suaves cantos de pássaros ? Ou será um lugar vazio, temperatura amena, cheio de nuvens, servindo para os querubins ficarem sentados e dedilharem suas harpas, anunciando ser qü o paraíso?
Se no céu não existir as árvores, os riachos, a brisa, a luz, os pássaros cantando, e os animais, não quero ir para lá!
Acredito que os animais têm alma. O tema é polêmico. Devia merecer um estudo mais minucioso das elites cultas. Enquanto uns alardeiam que eles têm alma, igual a nós, outros afirmam só possuírem o cascão que desaparece com a morte.
No livro “Nosso Lar” do Francisco Cândido, ditado pelo iluminado espírito do André Luiz, na página 183, ele descreve uma cena no espaço: “Identifiquei a caravana que avançava em nossa direção, sob a claridade branda do céu. De repente, ouvi o ladrar de cães à grande distância. Que é isso? – interroguei, assombrado. Disse Narcisa – são auxiliares preciosos nas regiões obscuras do Umbral, onde não estacionam somente os homens desencarnados, mas verdadeiros monstros, que não cabe agora descrever.” Mais adiante continua: “seis grandes carros, formato diligência, precedidos de matilhas de cães alegres e bulhentos, eram tirados por animais que, mesmo de longe, me pareceram iguais aos muares terrestres. Mas a nota interessante era os grande bandos de aves, de corpo volumoso, que voavam a curta distância, acima dos carros, produzindo ruídos singulares.”
Os umbandistas alardeiam que os Oguns vêm em seus cavalos brancos. Já não é um motivo para refletirmos se os animais têm ou não alma?
Minha filha Lucilia, estava começando a balbuciar suas primeira palavras. Já dizia mamãe. Papai ainda não, embora eu desconfiasse que ela soubesse e só não dizia para me contrariar. Deitada na cama, enquanto a Yedda trocava sua fralda, ela levantava os pequenos braços para cima, como se quisesse pegar algo no ar, dando a impressão de estar vendo alguma coisa que nós adultos não víamos, e com pequenas e delicadas gargalhadas, em perfeita coordenação com os gestos, falava:
– Dandy…Dandy… – e ria.
Minha mulher e eu trocamos olhares. Dandy era o nome de um belíssimo cão Setter Irlandês que um mês antes foi morto a tiros por ladrões que invadiram nossa casa.
– Ela está vendo o espírito do Dandy. Falei, assustado.
Cães, conheço bem. Raciocinam e têm alma, não tenho dúvidas. E se os cães têm, porque não terá o pequeno rouxinol ou o elegante peixe ou a peçonhenta cobra, e todos do mundo animal?
Se os homens, ao morrer, levam consigo seu estado espiritual, atrasados ou evoluídos, não pode acontecer o mesmo com os pássaros e animais? Se uma larva é mais atrasada que um cavalo, ao morrer, não permanecerão no plano espiritual sob o mesmo processo evolutivo da reencarnação?
Quero que os cães tenham alma, pois pretendo, depois de morto, que eles continuem em minha companhia.
O Caboclo Akuan tem, como sua companheira, uma águia. Os oguns sempre estão montados em cavalos. Os trevosos têm na cobra a companhia predileta. Os gatos, os cães e os cavalos são reconhecidamente videntes, enxergando os espíritos, o que demonstra possuírem a terceira visão, a qual, no homem está alojada no chacra espiritual. Se existe nos animais o terceiro olho, ele tem que estar também dentro do espírito, igual ao homem, o que reforça a tese que eles têm alma e podem sobreviver à morte.
Dando consulta para uma moça, o Caboclo Akuan perguntou:
– Você está muito triste com a morte dele?
Demonstrando surpresa, a consulente explicou:
– Acho que o senhor vai me entender. Foi meu gato que morreu, e senti muito sua morte. Não posso evitar. Tentou justificar.
– Pode chorar se quiser, e eu entendo você muito bem. Os animais também são nossos irmãos. Falou, com muito carinho.
Outro dia o caboclo Akuan fez um trabalho especial para um gato com câncer no intestino com o mesmo empenho que faz nas pessoas que sofrem de mal semelhante.
Entre os espíritos, mesmo que pareça fantasia, existe o bom humor e as passagens hilariantes.
O cigano Woisler tem sua vida baseada em cavalos. Ama os qüídeos, afirmando ter sido descendente de uma família de ladrões de cavalos. E alardeia isso com transparente gabolice. Conta várias histórias sobre esse assunto, dentre as quais, que seu transporte para vir no terreiro é um cavalo preto. Numa gira, incorporou sem sua habitual harmonia. Indagado pela Sandra porque estava triste, respondeu, sem jeito:
– Estou sem cavalo.
– Que aconteceu com o seu ?
– O Akuan tirou de mim. Respondeu amuado.
– E por quê?
– Porque eu quis roubar o cavalo dele.
– Mas cigano, roubar o cavalo do Caboclo Akuan? Que idéia! Disse, rindo, a cambono.
– Eu queria aquele cavalo branco. Ele é lindo. E o pior não foi isso. Além de ter ficado sem o meu cavalo, vim a pé para o terreiro, acompanhado por uma falange de pretos-velho, enfileirados atrás de mim, rezando para eu me regenerar. Foi humilhante. Queixou-se, abatido.
Passado alguns meses, o Caboclo Akuan, rindo, disse que tinha devolvido o cavalo para o cigano.
– É para ele nunca mais cometer essa ousadia.
Se aconteceu, não sei. Como espírito não brinca, considero essa passagem como uma prova da existência da alma dos cavalos, sinalizando eu estar certo nas minhas convicções.
A felicidade não está alicerçada nos bens materiais, mas no humor e bem estar espiritual…
Tenho um amigo que afirma ser feliz por ter uma esposa, filhos e netos. Conheço um boêmio que jura ser o homem mais alegre do mundo porque é solteiro, não tem mulher e muito menos filhos. A felicidade está dentro de quem aceita e gosta do que tem, podendo ser a numerosa família ou a liberdade de não ter compromisso com ninguém. O conceito é paradoxal.
A residência da infelicidade, ao contrário, tem como principal causa, a perda daquilo que o faz crer ser feliz. E pode a felicidade perdida ser readquirida pela fé? Acho que sim. Leiam essa história:
O domingo estava lindo, ensolarado e quente. O Nilson, de calção, sem sapatos e camisa, se mantinha debaixo de uma barraca à beira da piscina do clube que costumava freqüentar, ouvindo e contando lorotas descontraídas com alguns amigos, à guisa de esquecer seus afazeres semanais. A Eva, sua esposa, tinha ficado em casa. O Nilsinho, seu único filho, com oito anos, brincava e nadava na água clorada da piscina. Estava tudo perfeito e aprazível. Foi quando o Nilson ouviu gritos desesperados de uma mulher que apontava para o fundo da piscina. Todos, curiosos e no afã de serem úteis, se acercaram dela. O Nilson, pela água, viu, no fundo da piscina, o corpo do seu filho Nilsinho.
O Nilson era meu amigo e fui comunicado do trágico acontecimento. Chegando em sua casa, onde todos os amigos e familiares já cercavam o guapo Nilson e sua esposa, fui, como é natural, envolvido no sofrimento do casal e seus avós. O menino de oito anos, tinha morrido afogado em uma piscina. Não há quem não se envolva com emoção em casos que o espectro da morte faz cumprir essa divina, mas atemorizada lei, quase sempre não entendida por nós. Na ocasião, eu era mais jovem e, conseqüentemente, mais forte, mas mesmo assim, tive que fazer muito esforço para amparar o meu amigo nos ombros, dado seu corpo avantajado. Passado o funeral, no dia seguinte, fui levar minha solidariedade ao triste casal. Nada pude fazer ou dizer para apaziguar a dor do acontecimento, exceto oferecer os préstimos do meu grupo de trabalho espiritual. O casal, buscando um lenitivo, acedeu ao convite e passou a freqüentar assiduamente nossos trabalhos espirituais.
Em uma das reuniões o Nilson aparentando uma emoção muito grande levava com um carinho especial um pequeno embrulho de papel de seda, que parecia estar aninhado em suas duas avantajas mãos em concha. Seus olhos torneados por grossas sobrancelhas brilhavam com visíveis lágrimas. Vez ou outra uma lágrima escorria em seu grosso bigode preto. Sua esposa começou a desembrulhar o pequeno embrulho. A medida que ia abrindo o papel de seda suas mãos pareciam estar desfolhando uma delicada flor. Seus lábios mantinham um sorriso, e seu semblante demonstrava estar vivendo naquele momento um êxtase divino. Todo nosso grupo estava em volta do casal, aguardando com curiosidade o aparecimento do conteúdo do misterioso embrulho.
O Nilson falava emocionado:
– Vocês vão ver a benção de Deus que tivemos.
Aberto o pacote, dentro de um enfeitado estojo estava a escultura de um anjo com enormes asas. Um trabalho muito bonito e bem feito e até de certa forma comum no comércio do ramo, exceto não fosse ele estar esculpido em cera de vela derretida. Olhamos assombrados para o casal, que agora já não conseguia conter a emoção deixando correr as lágrimas pelos seus rostos.
– Hoje acendi uma vela para meu filho. Vejam o que ficou no prato,. É o sinal que ele está vivo e vai retornar a nós. Explicou o Nilson.
A fé transformou a vida daquele casal. Decorrido algum tempo, encontrei o Nilson. Estava feliz e sob forte abraço disse eufórico:
– Meu filho voltou para mim. Minha mulher está grávida.
Que Deus abençoe todos que conhecem sua maior magia: a fé!
O fogo é um elemento indispensável por todas as religiões. Ele é o princípio e a sua força é destruidora, mas quando bem manipulada, se torna com a mesma intensidade um grande aliado.
Com imaginação o homem criando a vela prendeu uma chama desta força em um invólucro de cera. Existem velas de todos os tamanhos, cores, tipos e finalidades. Têm todo o tipo de serventia, desde solicitar favores às divindades, até criar ambientes apaixonados em um jantar entre casais. Dentro das religiões todos têm histórias para contar a respeito das velas. Eu tenho a minha:
Hoje eu tenho sete netos, de doze a vinte anos. Amo a todos, porém com mais intensidade aquele que em um momento de sua vida necessita de mim. E foi assim com a Camila, hoje com dezenove anos, uma moça linda, com um sorriso resplandecente, dentes bem formados, altura média, com um gênio doce e afável, sempre pronta a fazer uma delicadeza. Seus cabelos são castanhos escuros e longos, tem um andar comedido, e por natureza tem o dom de reunir as pessoas em sua volta. É uma legitima filha de Iemanjá. Nesses dezenove anos, talvez a época que mais a tenha amado foi quando tinha ou três anos e estava acometida por um forte sarampo.
Não estava dando muita importância à doença por ser comum e de fácil tratamento, quando fui procurado por minha filha Lucilia:
– Quero que você venha ver a Camila. Estou assustada.
Morávamos, como até hoje, bem perto. Quando entrei no quarto da criança adoentada quem ficou assustado fui eu. Estava inteiramente tomada pela doença e dava sinais de estar ardendo em febre, pois mostrava estar fora da consciência. Não titubeei:
– Vamos levá-la imediatamente ao hospital.
No carro, enquanto dirigia o automóvel em direção ao hospital, olhava para a Lucilia. Talvez este tenha sido um dos dias mais tristes que tive. A minha filha, ainda uma mãe em sua plenitude jovem, mantinha os dentes cerrados, estava absorta olhando para o nada, com o queixo trêmulo e os olhos marejados, e segurava em seu colo a sua filhinha envolvida em um cobertor cinza escuro, quadriculado com cores vermelhas fracas. O dia estava cinzento, fazendo o quadro ainda mais triste. Meu Deus! Aquela mãe sofrendo era ainda uma menina. A amargura tomou conta de mim. Nada falei. Apenas sofri, um sofrimento inesquecível e que jamais sairá da minha lembrança. A preocupação com a doença da neta misturou-se com a perspectiva de perder para sempre o sorriso da Lucilia, gentilmente herdado pela Camila. Eu não pensei como um avô sofrendo. Senti-me frustrado e com raiva por estar impotente até mesmo para dar esperança para minha filha.
No hospital o diagnóstico foi grave uma vez que o sarampo tinha se alastrado internamente no seu corpo. Teve que ser levada para o isolamento por ser doença transmissível. No dia seguinte o comportamento da Camila era assustador. Uma tala de madeira prendia a agulha em sua mão para o soro e ela, como um animal, ficava em baixo da cama encolhida em um canto, batendo o braço onde mantinha a tala de madeira, agredindo quem dela se aproximava, atitude que não foi apaziguada nem pelos psicólogos do hospital. No terceiro dia de internamento procurei o médico diretor do isolamento e pedi-lhe:
– Não quero promessas, apenas quero saber a gravidade do doença. Além de ser o avô também sou o chefe da família, e se o pior acontecer tenho que estar preparado para poder sustentar o emocional de todos eles.
Embora fosse um homem delicado o médico ficou me olhando por alguns instantes como medindo o que iria dizer.
– A situação é muito grave e os riscos são grandes. Estamos fazendo todo o possível dentro da medicina para contornar a doença.
Em casa com a Yedda resolvi rogar aos espíritos pela nossa aflição. Sozinho na sala em um pires branco fixei uma vela da mesma cor e orei:
– Pai Maneco. Quero saber do senhor, meu Pai, o que vai acontecer com minha neta? Quando consultei o senhor me disse que ela ficaria boa, mas nada está indicando esse caminho.
Ouvi intuitivamente a poderosa entidade falar:
– Já disse que ela vai ficar boa. Para te acalmar vou deixar uma marca com esta vela.
Fui interrompido com choros convulsivos da Yedda que falava nervosamente:
– Estão tirando líquido da espinha da Camila, pois a suspeita é que a doença tenha atingido a medula.
Fomos ao hospital rapidamente. As horas se passavam, e nós aguardávamos ansiosos o resultado do exame. Apareceu o médico e informou:
– Ótimas noticias. O exame foi negativo. Os riscos desapareceram.
Já tinha chegado em casa bem mais calmo e conversava com a Yedda sobre o fim da nossa angustia, quando me lembrei da vela. Fui à sala e vi o sinal deixado pelo Pai Maneco. A cera normalmente consumida pelo fogo estava derretida ocupando inteiramente o pires branco formando o desenho de uma águia – minha ave da sorte, com as asas abertas e ainda com realces como se fossem as penas, com dois pés negros formados pelo palito do fósforo que usei para acender o pavio. Parecia uma escultura manipulada por um artista. Mostrei o sinal para a Yedda:
– Olhe a magia da vela. – balbuciei, por estar emocionado.
Minha vontade era guardar aquela figura de cera para sempre. Mas a lei tinha que ser cumprida, e fui obrigado a descarregá-la. Joguei-a na água corrente junto com algumas lágrimas de um avô feliz e agradecido.
O Pai Maneco sempre disse que se uma casa espiritual fechar suas portas, não abrirá mais e estará fadada ao desaparecimento.
Fazia questão de indicar a porta para todos verem estar sempre aberta, fazendo-me, no início da gira, ir até a porta da entrada, pôr a mão na maçaneta e mostrar a todos que ela não estava trancada. Eu fazia isso, muito embora soubesse não ter necessidade, pois nem chave a porta tinha. Mas era um gesto simbólico. E eu, claro, não ia desrespeitá-lo.
A corrente aumentava toda semana. O lugar estava pequeno. Num final de gira, no encerramento, quando ele já estava se despedindo, alguém observou:
– Pai Maneco, o senhor não acha que a gira está muito grande, com médiuns demais? Não devíamos diminuí-la?
Era a fome com a vontade de comer. Essa, ele jamais ia deixar passar sem fazer uma das suas já conhecidas armações.
Naquela época, ainda trabalhava comigo o Pai Luiz e a Dilma. Por ser meu pai-de-santo, merecia todo o respeito, de acordo com a hierarquia da umbanda, e foi a ele que o Pai Maneco, cumprindo a lei, dirigiu-se:
– Você também acha que a gira deve diminuir?
– Com todo respeito, meu pai, eu acho. Confirmou.
– Vamos ver, disse a entidade . Quem mais de vocês pensa assim? E foi passando de um por um, perguntando.
No total, oito médiuns achavam que havia muita gente e, além de diminuí-la, não deveria entrar mais ninguém. O Pai Maneco chamou os oito citados, no centro do terreiro, o que criou, pela situação, grande expectativa, não só da corrente mas de toda a assistência.
– Se esta é a vontade de vocês, não tenho como deixar de atendê-la. Talvez vocês tenham razão, parece mesmo estar muito grande a corrente para este espaço. Acho melhor diminuí-la. Disse a poderosa entidade angolana.
Todos ficaram aguardando, imaginando como se daria o desfecho da conversação.
– Está decidido. Hoje vou mandar sair do grupo oito médiuns. Cada um de vocês aqui no meio, referindo-se aos que reclamaram, vai me apontar um médium da corrente, e este eu mandarei embora, e no final teremos menos oito entre nós.
Ficaram todos em silêncio, embasbacados. Como ninguém falava, dirigiu-se ao Pai Luiz:
– Pela hierarquia, você será o primeiro a escolher aquele que vou mandar embora. Aponte-me um dos seus irmãos.
– Meu Pai, não posso fazer isso.
– Como? Você não pode, mas quer que eu faça? Ralhou a entidade.
Diante do olhar desenxabido do pai-de-santo, o Pai Maneco voltou à carga, perguntando a um por um dos oito, e todos negaram-se a apontar alguém.
– Se vocês não podem, então nunca mais reclamem do excesso de gente no meu terreiro, porque a porta está e vai continuar sempre aberta, para nela entrar quem o mereça – afirmou, pondo fim ao problema.
Numa ocasião, eu estava incorporado com o Pai Maneco, dando uma consulta a um amigo que queria saber sobre o pai dele. Na minha consciência, ele falava uma porção de fatos, todos relacionados com o atual estado de espírito do falecido pai do consulente. No meio da consulta eu perdi o contato com o Pai Maneco. Ele desincorporou, ficou ao meu lado, e disse:
– Só para você saber, o pai do moço não desencarnou.
Nunca me havia acontecido isso. Fique sem jeito. Reclamei imediatamente.
– Por que o senhor fez isso?
– Pelo que tenho observado ultimamente, você se diz um médium muito bom, gosta de se gabar e ser enaltecido. Se você é tão eficiente assim, resolva. Determinou.
Envergonhado, expliquei à pessoa ter perdido o contato com a entidade. Ele entendeu, deu um sorriso, e disse que depois falaria comigo. Na verdade, eu fiquei furioso. Se fosse mais corajoso teria dito um monte de desaforos para o Pai Maneco e só não o fiz por saber que seria eu quem perderia a discussão. Na verdade a sessão, para mim, acabou ali. Não fui embora por respeito aos meus irmãos. Fiquei quieto, no meu lugar, esperando o encerramento. Na saída, encontrei o amigo. Apressei-me nas explicações.
– Seu pai ainda não desencarnou, não é?
– Não. Graças a Deus ele está muito bem.
– Olha, desculpe a furada na consulta. Acho que me perdi. Justifiquei.
– O quê? A consulta foi excelente. Estou muito satisfeito. Era exatamente o que eu precisava saber. Disse, eufórico.
Continuou narrando as coisas faladas pela entidade. Fiquei sem entender nada, pois, o que ele dizia, era totalmente diferente do que, na minha consciência, entendi a entidade falar.
Até hoje, como o Pai Maneco conseguiu dizer uma coisa e eu entender outra, não sei. Mas a lição serviu.
Durante minha caminhada nos terreiros, tive vários cambonos. Não tive queixa de nenhum deles. Sempre foram respeitosos com as entidades, cuidavam do material de trabalho, interpretavam e transmitiam aos consulentes a palavra, às vezes, ininteligível dos espíritos. Um deles tornou-se um bom amigo. Conversávamos e, sempre que podíamos, trocávamos idéias da religião. Era um umbandista fervoroso. Trabalhava como caixa em um banco. Um dia telefonou-me, muito nervoso.
– Estou de férias, vou reassumir amanhã meu posto no banco e já sei que, por implicância do gerente, vou ser despedido. Explicou, quase em desespero.
– Calma. Hoje, no trabalho, você, como cambono do Pai Maneco, fale com ele. Explique a situação. Tenho certeza, ele vai dar um jeito. Tentei serenar o dedicado amigo.
Palheiro numa mão e o coitê com cerveja preta noutra, o Pai Maneco ouvia calmamente a queixa de seu cambono.
– Amanhã, meu filho, resolverei teu problema. Respondeu, calmo, no seu estilo.
Na saída do terreiro, ele confessou estar confiante na promessa do espírito. Ainda observou:
– Não sei como ele vai resolver, já que o aviso prévio está pronto.
No dia seguinte, atendi o telefone, era ele, todo alegre.
– Você não imagina o que aconteceu. A direção do banco resolveu fazer hoje as mudanças dos gerentes nas suas várias agências. Quando cheguei, contava eufórico, o novo gerente designou-me para ser o chefe dos caixas. Esse Pai Maneco é uma maravilha.
Deixei transparecer minha satisfação pelo feliz final. À tarde, outro telefonema:
– Fernando, você não vai acreditar. Um gerente de outra agência do banco, trocando idéias com seu colega daqui, contou que estava sem sub-gerente. Fui indicado para o cargo e já assumi. Contou, numa alegria irradiante.
– Quer dizer que de caixa despedido, em vinte quatro horas, você foi elevado para subgerente? Regozijei-me.
Passados alguns meses, ele deixou as funções de cambono para ser médium de incorporação, ficando em seu lugar, como minha cambone, a sua linda e simpática noiva. O amigo bancário sentou-se à frente do Pai Maneco, queixando-se:
– Pai Maneco, não sei o que está acontecendo comigo. Está dando tudo errado. Minha vida, tão certa como estava, começa a se tumultuar. Até parece que meus caminhos estão fechados.
– Estão sim, meu filho. Fui eu quem os fechou. Respondeu, fria e calmamente.
– O senhor fechou meus caminhos? Eu, o seu cambono? Respondeu, indignado.
Inclinando-se no toco, para aproximar seu rosto com o do jovem, olhou para ele, fixamente.
– Não é mais. Agora é ela. Asseverou, apontando para a sua meiga noiva. – E, cambono meu, tem minha proteção. Informou, peremptório e zangado. Enquanto você não mudar seu comportamento, que a deixa triste e não for agradar a gordinha dos doces, teus caminhos continuarão fechados. Você como umbandista não pode ser egoísta.
No final do trabalho, soube toda história. Gordinha era a mãe da moça. Fazia doces, e o Pai Maneco é protetor das doceiras, por achar que elas fazem a felicidade, dizendo que o doce torna os homens mais felizes. E ele tinha brigado com ela, não entrando mais em sua casa. A moça é quem ia na casa dele, triste e humilhada, por causa da briga do noivo com sua mãe. Preocupado, no dia seguinte procurei-o, com a intenção de dar alguns conselhos. Não precisou.
– Tudo acertado, Fernando. Hoje cedo fui levar um ramalhete de flores para minha sogra. Comunicou esbanjando humildade.
Este é o Pai Maneco! Esperto e intransigente e, como todo preto-velho, castiga de forma mansa, mas duramente.
Jamais devemos avaliar a importância dos pedidos feitos aos espíritos, porque nem sempre a razão deles é o real motivo que leva uma pessoa buscar um contato com as entidades.
Quando trabalhava na linha kardecista, atendendo uma moça, ela interrompeu o passe magnético que lhe aplicava, para fazer um pedido:
– Vim aqui pedir a ajuda dos espíritos para eles fazerem que seja concluído o inventário dos bens deixados por meu pai.
Fiquei preocupado, não com o pedido, mas com as advertências que receberia, caso meus companheiros ouvissem o que ela pediu. Gesticulando para que ficasse quieta, terminei a transmissão da energia que lhe dava. Tomando o máximo cuidado para ser ouvido só por ela, sussurrei:
– Você tem que continuar vindo aqui, até que o processo seja julgado.
Transcorridos uns seis meses, sem que tivesse faltado nenhuma das nossas sessões, ela me disse ter sido concluído o inventário do pai, agradeceu a atenção e informou não mais haver necessidade de voltar, despedindo-se, agradecida. Algum tempo depois, voltou pedindo nova consulta. Acedi à solicitação.
– Eu não sei se você tem condição de me dizer, mas preciso saber se o que estou fazendo está certo. Pediu, laconicamente, sem mais nada dizer.
Era importante para ela receber uma orientação, sem falar antes do assunto. Isso é comum entre as pessoas ainda em busca da fé. Felizmente, uma entidade, no meu ouvido, intuiu:
– Quando você veio aqui buscar socorro para terminar o inventário dos bens de seu pai, eu sabia não ser essa a grande razão da tua busca. É que, além da pendenga judicial, você não tinha outro problema. A verdadeira razão da tua vinda foi incentivar você a formar um grupo de trabalhos espíritas, como você está fazendo. Vá em frente! Respondi, torcendo que eu estivesse certo.
A moça caiu em convulsivo choro, e tomando minhas mãos, sob forte emoção, disse:
– Muito obrigado! De fato fiquei entusiasmada, e juntamente com alguns amigos, formamos um grupo de trabalho espírita. E saiu, empolgada com a notícia.
Felizmente não sou prisioneiro dos chavões ortodoxos do arcaico espiritismo, senão a moça receberia um sermão pelo estapafúrdio pedido, e o grupo de caridade jamais existiria, pondo por terra, talvez, um projeto espiritual dos Arquitetos do Espaço. É provável que essas convicções sejam influenciadas pelo Pai Maneco. Tenho razões para pensar assim. Em uma das nossas giras, ele incorporado, apontou ao seu cambono uma jovem de uns quatorze anos de idade, que mantinha de olhos fechados, demonstrando a sua compenetração naquele momento que recebia as cargas energéticas durante a vibração no meio do terreiro, e disse:
– Está vendo aquela menina ali na frente?
Diante da confirmação do cambono, completou:
– Estou com muita pena dela. Está fazendo um pedido que não posso atender: quer um namoradinho, que não vai dar certo.
O cambono riu. Fez uma observação qualquer com referência a singeleza da menina, demonstrando claramente achar o pedido impróprio à grandeza das entidades.
– Meu filho, o descaso que seu pequeno amado demonstra por ela provoca um sofrimento nessa menina, com a mesma intensidade daqueles que têm uma doença ou um grande problema. A dor não tem parâmetros.
Os espíritos não perdem as oportunidades para atender, quando podem, as solicitações que lhes são feitas. O Guilherme, um médium de nossa corrente, procurou o Pai Maneco e fez um pedido:
– Pai Maneco, não sei se é impróprio o que vou pedir, mas para mim, é de grande importância. Não sei se o senhor sabe, mas nós, aqui na terra, temos um esporte chamado futebol. E o time que torço está prestes a ser desclassificado, o que será um desastre para muita gente. Não quero que ele seja o vencedor do torneio, peço apenas para ele não ser rebaixado de onde está.
Calmamente a entidade perguntou:
– O que tenho que fazer, para evitar que isso aconteça?
– Meu pai, para sair do último lugar o time tem que ganhar as nove próximas partidas. – explicou:
O Pai Maneco não respondeu de imediato. Imaginei que estava tomando conhecimento do que era futebol e como poderia interferir para realizar o que todos consideravam um milagre. Retomando o dialogo, explicou:
– Toda vez que acontecer esses jogos, você pegue um coco, amarre uma fita vermelha com sete voltas, leve na porta de um cemitério, deixe lá, acompanhado de um charuto.
Eu também gosto de futebol. Torço para o mesmo time do Guilherme. Embora surpreendido com a consulta, fiquei torcendo para o sucesso do trabalho. E cada vez que ia acontecer o jogo, o Guilherme me telefonava.
– O passarinho entrou na gaiola! – era o código para confirmar que ele e o Gustavo já tinham levado o coco no cemitério.
O time ganhou as nove partidas prometidas pelo Pai Maneco, e surpreendendo a todos, quase chegou à classificação final. Se ganhasse o décimo jogo, estaria disputando as finais. O Guilherme já contava como certa a vitória e diante da inesperada derrota, desconsolado, me telefonou:
– Desta vez não adiantou o coco no cemitério. Falou, com tristeza.
Respondi prontamente:
– Você não sabe fazer pedido para espírito. Ele atendeu o que você solicitou.
Mesmo nas banalidades, os espíritos nos atendem. Só não resolvem as questões cármicas, que são assuntos de nossa inteira responsabilidade.
O marcador do tempo, o relógio, o grande vilão da nossa liberdade, é o símbolo da materialidade para o Pai Maneco. Ele sempre deixa fortes marcas de sua presença, através do relógio.
O Leonardo, hoje meu capitão-de-terreiro, ao se despedir do Pai Maneco em uma consulta, pediu-lhe:
– Gostaria que o senhor fosse me visitar. E deixe um sinal para eu saber. Completou alegre, mas respeitosamente.
Naquela noite, durante a madrugada, o relógio digital na cabeceira da cama do Leonardo explodiu, espalhando fogo em volta, tanto que queimou a cortina de seu quarto.
Explodir e fazer incendiar-se relógio digital só pode ser coisa dele. Suas histórias com o relógio são muitas. Costuma dizer que uma sessão espírita é como um relógio: os ponteiros são os que mais aparecem, mas são o de menor valor. Referia-se, claro, aos médiuns. Destaco um, entre os casos de maior expressão com o símbolo do relógio.
Já fazia um mês, um jovem havia sido seqüestrado e a família entrava em contato com os seqüestradores que exigiam uma alta soma para soltá-lo. Iniciaram-se os contatos e depois, pela demora do acerto, a polícia suspeitava de o jovem já ter sido assassinado. As manchetes dos jornais locais e nacionais davam destaque ao rumoroso caso. Os pais, como não podia ser diferente, estavam em pânico. Concentrações religiosas aconteciam em vários pontos para o resgate com vida do garoto. Nós, no terreiro, também fizemos orações por eles, principalmente pelo fato de um capitão-de-terreiro da nossa casa, fazer parte do seleto grupo policial anti-seqüestro , Grupo Tigre, da nossa Policia Civil, responsável pelo caso.
Como faço de costume, no dia do nosso trabalho, por volta das dezessete horas, estava pronto para sair, quando o telefone tocou. Atendi, era o nosso valoroso policial.
– Fernando, estou aqui na casa da família do menino e a mãe dele quer falar com você.
Ouvi uma voz triste do outro lado do telefone. Era amarga, mas demonstrava muita fé.
– Senhor Fernando, sei que o senhor tem hoje um trabalho. Faça, por favor, uma oração para meu filho estar vivo e voltar logo para nosso lar. Tenho muita fé em Deus e sinto dentro que ele está vivo. Falava, emocionada.
É estranho como as coisas acontecem. Ouvir aquele súplica de uma mãe que não sabia se seu filho estava morto ou vivo, deveria ter-me deixado triste e penalizado. Mas não foi o que me aconteceu. Ao contrário, fiquei alegre, porque imediatamente àquelas tristes palavras da mãe aflita, ouvi o Pai Maneco dizer:
– Diga a ela que o filho está vivo e amanhã ele voltará para casa.
Imediatamente repeti as suas palavras à triste mãe. Ela emocionada respondeu:
– Graças a Deus o pesadelo vai acabar.
Após as palavras de despedidas e ainda dizendo da minha convicção quanto ao desfecho do drama, desliguei o telefone. Minha mulher ralhou indignada:
– Você é louco, brincando com os sentimentos dessa mãe. Não está vendo que ela está buscando uma esperança? E você diz isso. E se ele estiver morto?
– Ele não está morto, e amanhã vai aparecer. Vou embora que tenho que ir ao trabalho, rezar com todos para que isso aconteça. Respondi e sai.
A polícia, pelos primeiros rastreamentos dos telefonemas, já sabia a região em que os seqüestradores estavam, e por outras diligências, já conheciam os suspeitos. Na localidade detectada policiais à paisana, corriam os postos de gasolina e os seus restaurantes. Num deles, dois policiais fizeram a patrulha. Quando iam saindo, o policial entrou no carro, e ao abrir a janela e pôr o braço para fora, seu relógio desmontou, caindo para fora toda sua minúscula e rica máquina. Abriu a porta, e enquanto recolhia as peças do relógio, um carro parou ao seu lado e o policial reconheceu os suspeitos. Imediatamente, a voz de prisão foi dada. Não fosse o relógio quebrado, o que atrasou a saída dos agentes da lei, haveria o desencontro.
Isso aconteceu no dia seguinte da conversa com a mãe do jovem que, para alívio de todos voltou, depois de um mês, para os braços de seus familiares. Os seqüestradores até hoje estão presos.
Eu trabalhava na linha kardecista usando como fonte de trabalho apenas a energia do espírito e, por isso, refutava a magia dentro do espiritismo tradicional. Costumava dizer que a magia era coisa dos bruxos.
Tudo que acontece tem uma explicação natural e lógica, completava. Eu não estava inteiramente errado, apenas tinha uma trava no olho, não sei se no direito ou no esquerdo ou nos dois. Na ocasião eu era jovem, prepotente e fanático. Embora com esses vícios em alguns momentos a minha mediunidade ficava adulta e eu podia vislumbrar situações que poderiam proporcionar momentos importantes e de grande repercussão espiritual interior. E foi assim num desses raros clarões que convidei o João Luiz para fazer parte na sessão de passes enérgicos no grupo espírita em que trabalhava.
O João Luiz devia ter uns trinta anos de idade, com grosso bigode, uma estatura grande, usava óculos de miopia, andava e falava com dificuldade. Sofria da síndrome de Down. Sua idade mental era infantil mas o amor que tinha pelo nosso grupo o credenciava a ter trânsito livre entre nós. Foi assim:
– João Luiz, você que vem aqui todas as semanas não quer ficar do meu lado me ajudando a dar passe nos outros? Expliquei pausadamente para que ele entendesse o convite.
Ele deixou sair uma gostosa risada, demonstrando ter entendido muito bem o convite formulado, como também ter ficado alegre e satisfeito.
O João, seu pai e acompanhante permanente, aquiesceu com o convite. Foi combinado o ingresso do João Luiz em nosso grupo. Esse trabalho era dividido em duas partes: a primeira era pública e só para dar os passes enérgicos e a segunda parte era fechado a assistentes, quando os espíritos incorporavam e deixavam suas mensagens de luz. O João Luiz ficava só na primeira parte. Ele ficava do meu lado, eu explicava a ele como deveria fazer, mandando levantar os braços e deixar as mãos sobre as pessoas. Quanta pureza! Era bom ter o João Luiz do meu lado. Nossas energias fluíam e os resultados eram ótimos. Assim foi durante um longo período até que o João me procurou. Falou solenemente:
– Quero agradecer a você e todo o grupo pela atenção que sempre dispensaram a mim e em especial ao meu filho. Não quero que você entenda errado o que vou dizer, mas não vou levar mais o João Luiz para dar passes.
Fiquei surpreso, pois não esperava que isso acontecesse, não só por ver meu companheiro de trabalho alegre no meu lado, mas pela decisão ainda não explicada. Perguntei preocupado:
– O que aconteceu? Houve algum problema no grupo? –
– Nada aconteceu. A decisão é necessária.
Tentei justificar a presença do João Luiz no grupo:
– Você não imagina quanto bem o João Luiz tem feito nos trabalhos. Por ser um homem sem pecados sua vibração é pura.
– Pode ser, mas está fazendo muito mal a ele. Nos dias dos trabalhos a sua excitação é tão grande que chega a ter até mais de duas convulsões seguidas.
Jamais poderia imaginar que isso acontecesse com o meu companheiro que aprendi a gostar e admirar. Seu velho corpo era dirigido por uma mente estagnada, pura e, acima de tudo, insondável. No seu mundo ninguém entrava, e quando dele queria sair, o seu corpo doente o machucava provocando ataques convulsivos. Era uma luta que eu não compreendia: o seu corpo envelhecia, mas o seu espírito não. Mas era impossível dividir isso com alguém. Com certeza ele era feliz longe dos perigos mundanos e das tentações da carne. O seu pensamento tinha um limite até onde não pudesse ser atingido pela maldade. Eu tinha a capacidade de imaginar as reações de uma criança, de um adolescente ou mesmo de um homem velho. Mas pessoas como o João Luiz para mim eram indecifráveis. Seu mundo podia ser pequeno ou grande. Quem sabe a desnecessidade de saber as horas e os dias, o tornasse mais felizes do que nós, escravos submissos dos horários, compromissos, sistemas, conceitos e regras sociais. O João Luiz durante os passes transbordava uma alegria incomum, muito embora não conseguisse avaliar a importância do ato. E por que era vitima das convulsões? Acho que quando estava saindo de seu mundo mágico, lia na porta um aviso: não saia, perigo! Infestado de pecadores!
Quando o João me comunicou a decisão o João Luiz estava junto. Ele se limitava a me olhar e sorrir. Dei-lhe um abraço, enquanto pensava:
– Volte ao teu mundo feliz. Quem sabe um dia eu possa entender pessoas como você.
Os anos se passaram e eu larguei a roupa comum do espiritismo kardecista para usar a roupa branca dos umbandistas. E nessa religião eu encontrei o caminho para compreender o meu antigo amigo João Luiz: a linha mágica das crianças – os erês e ibejis, ou simplesmente, Cosme e Damião, uma mistura da infantilidade com a maturidade.
A linha de Cosme e Damião reúne os espíritos erês, as crianças que desencarnaram antes dos oito anos.
Trabalham nos terreiros sempre brincando e fazendo uma algazarra enorme, gostam de balas, refrigerantes, chupetas, bolinhas, gorros, carrinhos, bonecos e bonecas, enfim, tudo que as crianças da terra realmente gostam. Seus jeitos graciosos, encantam a todos nos terreiros, mas têm que ser controlados pelos dirigentes com muita determinação, porque normalmente procuram fugir das ordens da hierarquia, mais para brincar do que por desrespeito. Alguém perguntou ao Caboclo Akuan a razão das crianças ficarem sentadas nos terreiros,:
– Porque senão vocês não conseguem dominá-los. Respondeu de forma simples e objetiva.
Se hoje, com a experiência que adquirimos na vida, pudéssemos voltar à infância, com certeza seríamos meninos prodígios. Imaginem então uma criança com sete anos, com a experiência de várias reencarnações. E assim são as crianças na umbanda.
Recebi um telefonema de um senhor do interior do Estado, dizendo ter sido vítima de um trabalho espiritual e seu gado estar morrendo. Convidei-o para vir ao terreiro fazer uma consulta. Ele veio, fez a consulta com um preto-velho. Após a linha africana, chamamos as crianças. O homem, sem arredar o pé do terreiro, talvez pelo interesse de assistir os trabalhos até o seu final, ficou assistindo a chegada das crianças. O Tião, nome da entidade, incorporada na Rita, parou na sua frente. Sentada, perguntou se podia fazer um desenho com a pemba, para ele. Riscou no chão do terreiro um mapa, como se fosse feito em vários pedaços, e dentro desenhou três corações.
– Tio, esses corações são seus três filhos.
O homem confirmou ter três filhos, demonstrando surpresa, pois ali ninguém o conhecia.
– Este desenho é tua terra, feita por vários pedaços.
Mais uma vez o fazendeiro confirmou que sua fazenda foi formada, com a aquisição de várias propriedades menores e vizinhas.
O Tião riscou, no meio do mapa, fazendo curvas, um risco como se identificasse um rio. Marcou nele um trecho com a pemba, e disse:
– Tio, teus bichinhos estão morrendo porque aqui a água está ruim por causa daquele veneno feio que você joga nas plantas. Finalizou, largando a pemba, e foi puxar o cabelo de uma outra criança que passava perto.
Outra ocasião, eu me dirigia ao congá para encerrar a gira, quando uma médium chamou minha atenção, afirmando estar sentindo a presença de um espírito querendo incorporar. Sou exigente, tudo tem seu momento, e aquele, com certeza, não era oportuno a qualquer tipo de incorporação.
– Segure a entidade, que agora não pode haver outras incorporações. Adverti, austeramente.
– Mas está muito forte, não sei se vou conseguir.
Dirigente tem que estar atento para todos os sinais. Como a médium era experiente, em condições de dominar, quando quisesse, as suas incorporações, fiquei em dúvida, se permitia ou não. O bom senso me fez mudar de idéia.
– Está certo, pode incorporar. E mais ninguém. Recomendei à corrente.
Imediatamente ela jogou-se no chão, rindo, batendo palmas, veio cumprimentar a hierarquia. Correu para o centro do terreiro, e sob o olhar de toda a corrente, olhou para mim e pediu:
– Vô, quero um dólar.
– O quê? Você quer um dólar? Para que você quer um dólar? Perguntei, sob o riso geral.
– Eu quero um dólar, senão não vou embora. Ameaçou.
Dirigindo-me à assistência, perguntei se alguém tinha um dólar para dar à criança. Alguém disse ter uma nota de dez dólares.
– Não, eu quero só um dólar. Reclamou a criança.
Uma moça, nos fundos da assistência, acusou:
– Eu achei na minha carteira uma nota de um dólar. Informou, já com a nota americana na mão. Convidei-a para entrar no terreiro e fazer a entrega da nota à entidade.
Junto comigo estava um pai-de-santo que veio nos visitar. Cochichando expliquei para ele:
– Esta moça, dona da nota, tem câncer na garganta.
Ela sentou na frente da criança e fez a entrega da nota. O espírito, fazendo muita festa com o presente ganho, bateu palmas, o pôs de lado e iniciou uma massagem na garganta da moça, exatamente no lugar da doença. Por sinal, hoje está completamente curada, claro não pela criança, mas não tenho dúvida que ela teve uma participação muita grande nesta graça.
Até hoje o pai-de-santo visitante ainda comenta o caso do dólar na linha das crianças e a forma esperta que teve de trazer a moça ao meio do terreiro para jogar sua vibração em sua doença.
Aceitei o convite de uma turma universitária de teologia para fazer uma palestra sobre a umbanda, especificamente a quimbanda. Eram uns trinta alunos, fazendo anotações e gravando toda conversação.
Eu dizia que a quimbanda está subordinada à umbanda. É ela quem executa os grandes e perigosos trabalhos de magia para combater o mal. Um dos alunos fez uma pergunta:
– E o exu, segundo dizem, é ou não é o agente do mal? Pode esclarecer?
– Ele é a entidade mais polêmica, misteriosa e distorcida dentro da umbanda. Sua imagem, na crença popular, é uma figura demoníaca, moldada em gesso de cor vermelha, algumas ainda possuindo chifres e pés de animal. Absurdamente, é assim que ele é cultuado, inclusive, confesso, por mim, muito embora eu saiba estar fazendo parte desta massa ignorante.
– O senhor diz “na crença popular”. Como pode saber se não são realmente assim? Insistiu a moça.
– Eu conheço alguns espíritos de exus, através da vidência,. São maravilhosos e não são retratados com fidelidade nas imagens materiais.
– Mas, se não são assim, por que são cultuados dessa forma? Voltou a insistir a esperta universitária.
– É estranha esta força da imagem em gesso do exu. O que estará escondido por trás dessas figuras mal feitas e de péssimo gosto artístico? Não será um proposital engodo espiritual? Quem sabe para esconder suas verdadeiras identidades?
– Verdadeiras identidades? Mas quem são eles?
– A umbanda é brasileira, baseada em fatos e personagens na época do descobrimento, tendo nos caboclos, nossos ameríndios, a figura mandante. Mais do que justo, por ser o índio a entidade autenticamente brasileira. Ainda não tenho opinião formada sobre a linha do preto-velho. Fico em dúvida se quando os arquitetos do espaço criaram a umbanda não foram buscar esta maravilhosa linha espiritual na África ou, indiretamente, na linha da capoeira, esporte também brasileiro e com ritual muito semelhante ao da umbanda, praticado pelos escravos ou descendentes africanos. As crianças são espíritos de qualquer nacionalidade, que tenham desencarnado na idade da inocência, inclusive as crianças índias, os curumins. Fecha-se o triângulo da Umbanda: caboclos, pretos e crianças. Sabendo serem essas as entidades que compõem a umbanda, não resta para a quimbanda, outro tipo de espírito senão os originários da Europa. Tentei explicar, da maneira mais simples, o difícil tema.
– Parece-me lógica a explicação, mas está faltando mais consistência no tema, ou, melhor perguntando, como o senhor chegou a esta conclusão? Argumentou, lá atrás, um rapaz.
– Na minha opinião, os nobres, príncipes, lordes, almirantes, eclesiásticos, figuras letradas e culturalmente avançados, hoje estão relegados ao limite da esfera da Quimbanda, plano reconhecidamente mais grosseiro que a Aruanda de nossos orixás.
– Mas, pode isso acontecer?
– Pode sim! É só aceitarmos a evolução do espírito através da reencarnação. Se os europeus invadiram nosso país, mataram nossos índios, escravizaram os africanos e cometeram toda espécie de mal, dentro de seus resgates cármicos podem, espontaneamente, ter aceitado a situação de serviçais àqueles que, em vidas anteriores, foram seus carrascos.
– Mas, qual o motivo? Não seria mais lógico se apresentarem como foram em suas vidas anteriores, conforme o senhor acredita?
– Seria estranho e de difícil aceitação um príncipe apresentar-se em um terreiro de umbanda, carregando um tridente, afirmar estar morando no cemitério, aceitar farofa, azeite de dendê, charuto e cachaça como oferenda, e ainda receber ordens de um índio ou de um escravo. O melhor é se esconder atrás de um comportamento atípico às suas nobres origens. – argumentei.
Gosto de falar aos outros as coisas que me acontecem. Pode parecer absurdo, mas é a minha verdade. Dela não abro mão e, aos invés de escondê-la, prefiro dividi-la com os outros. Achei oportuno contar, naquele momento, a história de um exu, conhecida através da vidência.
Em um castelo, inteiramente de pedra, mal cuidado e isolado no meio de uma floresta, típico daqueles pertencentes ao feudo europeu, vivia um homem branco e corpulento, trajando uma surrada roupa, provavelmente antes pertencente a um guarda-roupa fino. Percebia-se o desgaste causado pelo passar do tempo, pois ainda carregava uma grossa e rica corrente de ouro de bom quilate, com um enorme crucifixo do mesmo cobiçado material. Parecia viver na solidão, muito embora no castelo vivessem vários serviçais. Na torre do castelo, as janelas foram fechadas com pedra, e só pequenas frestas foram feitas no alto das paredes. A luz não podia entrar. A torre não tinha paredes internas, formando uma enorme sala, com pesada mesa de madeira tosca, tendo como iluminação dois castiçais de um só vela cada. Ao lado da tênue luz das velas, livros se espalhavam sobre a mesa, mostrando ser aquele homem um estudioso e que algo buscava na literatura. De braços abertos, com um capuz preto cobrindo sua cabeça, emitia estranhos e finos sons, tentando descobrir o segredo da levitação. Pelas frestas da torre, entravam e saiam voando vários morcegos com os quais ele procurava inspiração e força para atingir sua conquista. Por quê? Não sei. A idéia e as razões eram da estranha figura. Parecia um homem de fino trato, transfigurado na fixação de atingir um poder que não lhe pertencia. Seu nome? Também não sei. Só o conheço incorporado nos terreiros como o querido mas temido Exu Morcego.
– Tenho alguma noção da umbanda, e esta colocação do exu é interessante. Observou outro universitário. Sabe de mais algum caso?
Conheço mais algumas revelações, e são interessantes, por serem os nomes escolhidos, desde o motivo da simpatia, até o local de trabalho. Do Exu Tata Caveira, existem várias histórias. A mim, ele disse ter sido coveiro.
O Exu 7 da Lira, segundo a unanimidade dos terreiros afirma, foi o grande cantor brasileiro, Francisco Alves. De certa forma, foi sinalizada alguma coisa em nosso terreiro, pelo ponto que ele mesmo ditou:
Sou exu, trabalho no canto
Quando canto desmancho quebranto
Sete cordas tem minha viola
Vou na gira de elenco e cartola
Viola é o tridente
Cigarro é o charuto
Bebida é o marafo
Sou Sete da Lira
Derrubo inimigo
Ponteiro de aço
O Exu Pantera é uma surpresa. Seu nome dá a entender ser um espirito violento, bravo, mas, bem ao contrário, apresenta-se com muita elegância, com charme e um bom palavreado. Ele contou sua história: afirmou ser europeu, e grande admirador da pantera, para ele, um animal esperto, ágil, e o mais elegante de todos. Veio ao Brasil para resgatar seu carma, agrupando-se à umbanda, especificamente à quimbanda e como tem uma relação direta com o Caboclo da Pantera, não teve nenhuma dúvida em usar o nome do lindo felino. Daí seu nome: Exu Pantera.
O Exu do Fogo contou uma história interessante. Disse que através do fogo executa seus trabalhos de caridade, por ter ele, no tempo da Inquisição, condenado várias pessoas para serem queimadas em fogueiras com a pecha de bruxos. Hoje ele se considera um bruxo e através do elemento fogo, tenta resgatar os males que carrega em seu carma. E vale a pena ver a habilidade deste exu manipulando o fogo.
O Exu João Caveira contou uma vida passada. Disse que na Idade Média, foi um fiel conselheiro de um senhor feudal. Criada uma situação no feudo de difícil solução, foi solicitada sua opinião para decidir a questão. Se decidisse de uma forma, agradaria todos os senhores, e de outra, faria justiça a todos os moradores desafortunados do lugar. Para ganhar a simpatia do lado forte, decidiu pela primeira hipótese, mesmo contrariando a sua vontade, que em nenhum momento expressou. Por causa disso, ganhou um carma enorme, que está resgatando nos terreiros da umbanda.
Olhando para a turma, percebi, pelo silêncio, ter atraído a atenção de todos para essa revelação. Era o momento certo, para encerrar a palestra. Agradeci a todos, pelo respeito e atenção que tiveram para comigo, e me preparava para sair, quando um outro universitário, um dos pouco que nenhuma pergunta fez, bateu em meu ombro e disse:
– Não agradeça o respeito e atenção para sua pessoa, foi ao tema…
Como eu imaginava, porque sempre acontece, a distorção da figura do exu seria o tema preferido dos universitários e por isso levei umas cópias de um texto feito pelo Andir de Souza, onde retrata muito bem a folclórica figura dos exus. O texto fala assim:
“Falar de exu não é uma fácil tarefa, porém, inquirir, pesquisar, procurar sua origem e sua finalidade é o direito de quem quer aprender.
Há uma nuvem cobrindo a distância do seu princípio até nossos dias.
Nesta caminhada lenta da humanidade ganhastes muitas formas e fostes batizados com inúmeros nomes: no Jardim do Éden, eras uma serpente que introduziu o primeiro pecado no seio da humanidade; eras o agente mas não o mal, pois o livre arbítrio nos dá o direito de optar.
De Adão e Eva proliferou a humanidade e, com ela, os seus deuses, seu medo e sua curiosidade.
Ah! meu irmão de longa caminhada…
Para Moysés você foi a bengala que apoiava o corpo nas fatídicas andanças mas, se necessário, você seria também a assustadora serpente. Para os fenícios, você foi Molock, espírito tenebroso, cujo interior era uma fornalha ardente onde os seus seguidores depositavam suas oferendas; para a Pérsia de Zoroastro, atendias pelo nome de Arimânio, espírito angustiado e vingador!…para o egípcio, você era Duet, uma guardião que castigava, que punia para, depois de punido, ser entregue para o Deus da Luz e Serenidade; você era a ligação entre o homem e a mente, a morada de Osíris que é o Deus do amor e da criação.
No Egito, você também era Tifon ou Aprites; a China milenar te deu o nome de Digin; Ravana para o hindu; os escandinavos de chamavam Azalock. Em cada povo uma personalidade e uma vibração diferente.
Para o nosso índio brasileiro, você atendia por vários nomes e várias atuações: Cairé é um fantasma que aparece na lua cheia para punir os maus; Catiti é outro, só visível na lua nova e atrapalha a pesca. Jurupari é o mau espírito que traz pesadelo; Curuganga oficia como assombração.
Até então, você com múltiplas funções e personalidades, não era mais que uma energia, uma força.
Até 1984 anos atrás, você era visto e sincretizado como guerreiro, como um homem.
Para o mau artista, uma grotesca obra.
O hebreu te deu novas formas e, na pia batismal, recebestes os nomes: diabo, demônio, Lúcifer.
Pelo pincel do pintor ou o formão do escultor, na metamorfose dos interesses de uma religião que amedronta e não esclarece, te fizeram um monstro… Como monstro, você defendia com maior eficácia os interesses econômicos de seu criador.
Causa-nos revolta vê-lo assim desfigurado!
A infâmia e o mau gosto do artista que te fez um agregado de homem e animal, com longos cornos e pés caprinos, é uma afronta ao próprio Criador!
Ah! meu amigo… A tua imagem hoje, nada mais é que o reflexo, a exteriorização de consciências mal forjadas.
São dois mil anos que o padre vem te projetando, programando o subconsciente da pobre humanidade. Ele afirmou que exu era o diabo e assim se propagou, assim ficou…
Nós só conhecíamos o catolicismo como religião dominante. O padre era sábio, o doutor, o mentor enfim… e ficaria assim se ao lado da religião não existisse a história.
O diabo é um rival de Deus, um anjo rebelde, Satanás e falsário que tentou Eva e perdeu Adão. Tentou Caim e promoveu o assassinato de Abel; tentou Jesus, no monte e levou Judas à traição, Jesus não cedeu à sua tentação, prova eloqüente do direito de optar; respeito sagrado ao livre arbítrio do homem.
Forçam-nos a pensar que você é o executor porém, não é a causa nem efeito; é sim um elemento, uma vibração, que serve de acordo com a vontade do pedinte ou a licença do patrão. Será isso ou não?…
Sabemos que o índio e o negro não conheciam um rival de Deus. Não há um concorrente das Leis Divinas!… um diabo, um Satanás… há sim, uma corte de seres inferiores que, por isso mesmo, estão a serviço de seres superiores, aos quais obedecem e servem sem contestar.
Na magia do negro, Exu é um Deva, um Orixá… é um mensageiro, o guarda, o policial, o moço de recado que vive na rua, orientando, servindo de intermediário entre o Orixá e o homem.
Entendemos que o diabo nos ludibriou!…
O negro não sabia que era o diabo, sabê-lo-ia o bugre dispondo de uma mitologia inferior?… Não tinham uma noção semelhante.
O bugre conhecia o Caissoré, Curupira, Curuganga, Anhangá, entidades que se tornam pesadelos, que dão maus sonhos e que estorvam a pesca e a caça, contudo, o homem pode amansá-los, dando-lhes pequenas oferendas.
Quem ameaçaria o diabo?… Este pretenso rei será tão porco, tão mesquinho que se venda por alguns bicos de vela? Será isso um rival de Deus?… Um diabo, um Satanás?…
O bugre e o negro não conheciam esta figura hebraica, pregada e propagada aos quatro cantos do mundo pelos padres e seus discípulos.
O negro não servia a interesses financeiros; perante Deus não existe rival. ELE é a Criação, o Princípio e o Fim!
Para cada elemento ELE criou uma força dominante, um encarregado, um guardião, um Orixá que rege o plano Cósmico mas, criou também, o intermediário, o EXU, o Deva, o Orixá Menor, que atua em harmonia com seu gerente ou seja, o Orixá.
Lá no alto está a Energia Cósmica, Oxalá, Iemanjá, Ogum, Oxóssi e outros; no plano intermediário, Exu-Tameta, Exu da Rua, Exu-Odé, da encruzilhada, Exu-Adé, do chão, Exu-Ibanan, dos montes, Exu-Itatá, das pedras, Exu-Ibê, do terreiro, Exu-Gelu, das estradas longas, Exu-Baru, do escuro, Exu-Bara, este, puramente africano.
Senhores, a minha dissertação talvez não seja erudita… tão inteligente… porém, é honesta e eu afirmo: aquele grupo de demônios avermelhados, guampudos, com pés caprinos e barbas em pontas, olhos saltados, dentre agressivos… não é EXÚ!
Aquilo é uma concepção primária, falsa, mórbida, velhaca, indecente, ridícula!… É uma agressão à nossa inteligência; uma infâmia, um disparate, uma ofensa ao Divino Criador!
Não podemos aceitar essa assimilação!
Este demônio hebreu não é o Plutão do grego, não é o Tifon do egípcio, não é o Arimam do babilônio, não o Digin do chinês, não é o Ravana do hindu, não é o Bará do negro, não é o Caissoré do bugre.
Este demônio bestificado não faz parte deste Panteon!
Por Deus, não é nada disso!… só pode ser fruto do interesse econômico de escritores mal informados, sem decência ou respeito pelo belo.
Aqui dou meus aplausos àqueles escritores que tiveram a honradez de procurar um novo sincretismo, tentando introduzir uma imagem condizente com o altruístico trabalho desses incansáveis irmãos EXÚS.
O Exu Tranca Ruas das Almas, estava andando no terreiro, carregando entre os dedos uma cigarrilha, com seu cambone ao lado.
Parou na frente de um homem, e perguntou:
– Sabe por que o meu nome é Tranca Ruas?
– Estava, neste momento, pensando em lhe fazer esta pergunta. Respondeu o homem, demonstrando assombro. Acho um nome estranho. Completou.
– Na rua vive o homem sem lar; na rua vive o bêbado; a rua é o escritório do ladrão; na rua existe a droga e o vício; na rua está o desamparado; na rua vive a meretriz; na rua anda o desesperado; a rua é habitada por todo tipo de marginal. Eu tranco toda essa infelicidade. Esclareceu e, sem esperar resposta, continuou patrulhando o terreiro.
O lado folclórico da umbanda, faz do exu uma entidade violenta, praticando tanto o bem como mal, todo espalhafatoso, mal-humorado, proibido de vir na umbanda, e, dizem ainda, que a luz das velas do congá lhe faz mal e por isso, o altar sagrado deve ser apagado e fechado. Não posso concordar com isso. Não é o que vejo e, muito menos, o que eles fazem. Alguém perguntou ao Exu Tranca Ruas se ele também faz o mal.
– Meu filho, faz quinhentos anos que desencarnei e ainda venho nos terreiros agüentar vocês para ganhar minha evolução espiritual. Você acha que sou burro?
– Mas dizem que, em outros terreiros, o senhor não é assim. Voltou à carga o insolente.
– Se usam meu nome e o aceitam, o problema não é meu.
O Pai Maneco, quando questionado com pergunta semelhante, disse:
– A linda borboleta já foi antes da clausura, uma feia lagarta. O exu já foi lagarta, a quimbanda hoje é seu casulo, e logo poderá voar e a todos encantar.
– Por que dizem negativo e positivo? Se a quimbanda é negativa, como pode ajudar?
– Vocês perguntam muito e pouco sabem. Olhe aquela lâmpada, iluminando este lugar e a todos nós. É o encontro perfeito do negativo e do positivo. Se você tirar o negativo, ela se apaga. Finalizou, encerrando a questão.
No automóvel, indo apressadamente para casa, fui surpreendido com um pedido da Yedda:
– Estou com vontade de ir visitar o cemitério. – expressou.
Esses são os sinais que devem ser observados. O histórico de nunca ter demonstrado desejo de ir visitar o cemitério, nem levar flores para nenhum morto, me fazer um pedido desses, num dia comum da semana, em horário de almoço, sabendo que o trabalho profissional nos aguardava, não me fez hesitar: dei meia volta, rumando ao santuário dos mortos. Descemos, ela comprou umas flores e estávamos entrando pelo portão principal, quando adverti:
– Você, na entrada, deve, com a ponta do dedo médio bater no chão três vezes e pedir licença para o Exu Caveira; dar três passos, cumprimentar seu Omulum; mais três passos, fazer a saudação ao Exu Tranca Ruas das Almas e a todo povo do cemitério. Ensinei, pacientemente, por ter entendido ter sido seu pedido mais uma inspiração do que uma vontade.
Ela, sem se importar com que ensinei, continuou andando, e retrucou:
– Faça isso você, por nós dois.
Às vezes faço coisas estranhas. Atendi seu pedido, sem nenhuma surpresa pela reação. Ela foi, igual borboleta nas flores, parando em várias sepulturas, toda amorosa, até que, no jazigo da família dela, depositou o ramalhete de flores e começou a ajeitar os demais enfeites, deixados por outros familiares. Foi quando senti a presença forte do Exu Tranca Ruas das Almas, para variar, reclamando:
– Tenho que puxar tua mulher para cá, só para falar com você. Aquela pessoa doente está com um encosto: é o espírito da mulher que morreu na cama que ela dorme.
De fato, uma familiar nossa, estava passando momentos difíceis, pelo inesperado surgimento de incomoda depressão, sem ter tido sucesso na medicina tradicional. Estava mal, preocupando a todos, diante de estar definhando a olhos vistos, além de não poder, pela doença, dispensar toda atenção à sua jovem família. E isso nos preocupava.
Foi quando me lembrei que sua cama pertencia à uma das tias que estava enterrada no túmulo que a Yedda estava cuidando, e era uma pessoa extremamente apegada às suas coisas.
– E por que o senhor não a tirou de lá? Resmunguei, em forma de cobrança.
– Seu burro! Esse tipo de espírito, um familiar apenas desorientado, não deve jamais ser levado por exu. É trabalho para uma linha mais suave, talvez a dos pretos.
Espírito que faz isso, de forma delicada, inteligente e cuidadosa, pode fazer o mal? Não acredito! E ele tem outras histórias, cheias de moral.
A gira estava se desenvolvendo num clima tranqüilo. Tanto os exus, como as pombas-giras, estavam dando suas consultas, inclusive o Exu Tranca Ruas das Almas, quando ele foi interrompido por um capitão-de-terreiro.
– Exu Tranca Ruas, uma pomba-gira está com um problema numa consulta. Está solicitando sua presença.
Ele levantou-se, foi ao lugar indicado, e perguntou:
– O que está acontecendo?
– Tranca, esta mulher está me fazendo um pedido que não gosto, e sei que você também não. Mas achei melhor pedir tua presença.
O exu olhando para a consulente, uma mulher já madura, perguntou:
– O que você quer?
– É que estou apaixonada por um homem casado, tendo um caso amoroso com ele. Quero que vocês façam ele largar a esposa para ficar só comigo.
O exu chamou um capitão do terreiro, e não hesitou:
– Ponham essa mulher para fora do meu terreiro. Gritou, apontando a porta da saída.
O Exu Tiriri, incorporado em um médium, estava atendendo uma pessoa. Ela pediu:
– Exu, eu tenho uma casa alugada por preço muito barato. Será que o senhor pode tirar de lá aquela família, para eu poder alugar por um preço melhor?
O Exu Tiriri, uma entidade de elevada hierarquia no plano espiritual, ficou olhando fixamente para a mulher:
– Posso sim. Mas antes tenho que achar uma casa melhor e mais barata para a família que está morando em tua casa. Depois disso, ela vai ficar livre. Sentenciou.
São pequenas amostras das consultas dos exus. Não são maravilhosos?
Meu pai-de-santo Luiz Golini trabalhava comigo no terreiro, com quem eu divida as incorporações do Exu Tranca Ruas das Almas. Em uma gira eu incorporava, e na outra ele.
Em uma dessas giras, eu estava comandando e ele estava incorporado com o exu, nossa entidade comum, fazendo um trabalho no meio do terreiro. Ele era grande, pelo que se via: alguidar com farofa e azeite de dendê, marafo, fitas, charutos e mais alguns elementos. As velas vermelhas, brancas e pretas, acesas no ponto riscado, iluminavam o terreiro. Outros exus e muitas pombas-gira, trabalhavam em cima do trabalho. Era para ajudar uma pessoa que estava passando muito mal e, segundo informações, havia sido vítima de um trabalho de magia mal intencionado. A certa altura, o poderoso exu me chamou:
– Meu filho, hoje quero ir para a calunga.
. Nunca reclamei por excesso de trabalho, principalmente o espiritual, mas ir para a calunga me cansava. Já não tinha mais idade para isso. Em épocas anteriores, quando era necessário, íamos em um cemitério perto do terreiro. O guardião ficou nosso amigo, e fingia não nos ver. Todos de branco, acendíamos velas nas sepulturas e fazíamos entregas, durante a madrugada. Se não fosse a hora avançada que terminava, talvez até gostasse. E foi nisso que estava pensando, mas, por respeito, jamais ia dizer isso para o exu. Pedi sua autorização para comunicar à corrente a sua decisão de ir ao cemitério.
– Atenção, a corrente! O exu Tranca Ruas das Almas avisou que hoje um grupo nosso deverá fazer a entrega do trabalho dentro do cemitério. Preveni.
A gira continuou forte e em alguns momentos exigindo muita atenção minha para que não se desorganizasse. Meia hora depois do aviso da decisão do exu, ele chegou perto de mim e falou:
– Não vou mais ao cemitério, mas vou ficar incorporado até o sol nascer.
Fiquei feliz com a notícia. Esperar o sol nascer dentro do terreiro era bem melhor que ir no cemitério, pois, com certeza, iríamos ver o sol nascer de qualquer jeito . Chamei a atenção da corrente, mais uma vez:
– O Exu Tranca Ruas avisou que ele não vai mais ao cemitério, mas ficaremos aqui até o sol nascer. Aqueles que amanhã precisarem trabalhar cedo estão dispensados.
Meia hora depois, o exu, mais uma vez, chegou perto e, para minha felicidade, avisou:
– Vou subir, depois você pode encerrar o trabalho e pode descarregar o ponto.
Pensei que o exu estivesse nos testando, ou brincando, se bem que nunca tinha visto esse fazer isso.
Um pai-de-santo amigo meu estava participando da gira, incorporado com o Exu Gira Mundo. Com o charuto em uma mão e o copo de bebida na outra, o famoso exu disse:
– Meu filho, o terreiro de vocês está de parabéns! O povo do cemitério veio buscar o trabalho aqui no terreiro. Isso dificilmente acontece.
A explicação do Exu Gira Mundo deu sentido a tudo: o ponto era para chamar o povo do cemitério para assumir o trabalho. Nesse caso, a entrega deveria ser feita no cemitério, local da vibração dessa falange espiritual. No instante que fui comunicado ter que ir ao cemitério, com certeza o Exu Tranca Ruas foi comunicado que eles viriam buscá-la no próprio terreiro, não precisando ser no cemitério. Se eles vinham no terreiro, o Exu Tranca Ruas das Almas teria que esperar a vinda da poderosa falange, nem que fosse até o sol nascer. Eles vieram antes, aceitaram e assumiram o trabalho, não havendo mais razão da sua presença no terreiro, nem da continuidade da gira, podendo ser ela encerrada.
Seria uma grande surpresa se tudo tivesse sido apenas uma brincadeira. Pode parecer, às vezes, que o espírito está brincando, mas no fundo sempre existe uma razão. Nós é que não alcançamos, às vezes, a inteligência das entidades.
Como sempre faço, antes de dar a abertura na gira, passo os olhos pela assistência para ver se está tudo em ordem. No meio dela, destacava-se o corpanzil do Fonseca.
Homem alto, bem apessoado, falante e inteligente, daqueles que faz uma pergunta levantando meia sobrancelha moldurando um olhar firme e penetrante, deixando um sorriso maroto de canto da boca como se fosse o deleite do guerreiro vitorioso. Apesar disso, ele é uma pessoa bastante inteligente e agradável. Como sou daqueles que prefere correr o risco de perder um amigo em troca de uma boa piada, quis deixá-lo constrangido, como lição à sua petulância e a boba satisfação. Parando à sua frente diante de toda a corrente e das prováveis trezentas pessoas da assistência, o saudei:
– Temos o prazer de hoje ter entre nós um grande espiritualista, entendido da linguagem esotérica e dos segredos da magia.
Apontando para sua saliente figura, indiquei a todos:
– O Fonseca!
Ele não tinha jeito. Ao invés de demonstrar constrangimento, soltou um largo sorriso, levantou-se e saudou a todos os presentes, a ponto de arrancar aplausos da corrente. Voltei-me para o congá decepcionado com a minha fracassada tentativa e dei início aos trabalhos da noite, uma engira de quimbanda.
Chamei a entidade chefe o poderoso Exu Tranca Ruas das Almas, que incorporou no Pai Luiz de Ogum, o pai-de-santo que me preparou dentro da lei da umbanda para exercer esse honroso grau dentro da nossa religião.
Aproveitando-se de um momento que o Exu Tranca Ruas das Almas levantou de seu toco aproximou-se dele o José Maria, um médium de nossa corrente que pesava cento e quarenta quilos e, mesmo dono desse corpanzil, ficava por mais de quatro horas dançando e cantando, além de incorporar os espíritos. Talvez por isso sua dor na coluna se agravava. Queixou-se:
– Exu Tranca Ruas, será que o senhor poderia dar um jeito em minha coluna? Ela dói muito.
O Luiz é um homem magro, cabeludo e vasto bigode. Deveria pesar naquela época uns sessenta quilos. Com os olhos fixos no José Maria, com os braços cruzados e uma cigarrilha entre os dedos, ficou por uns instantes olhando-o fixamente deixando sem jeito o médium. Puxou-o para perto de si, deu-lhe as costas e, entrelaçando os magros braços com o gordo José Maria, inclinou-se, levantou-o, costas com costas, e saiu com ele andando pelo terreiro.
Eu imagino que se o Pai Luiz ficar na mesma posição, e algum guindaste depositar sobre suas costas um peso igual ao do José Maria, ele será esmagado. É teoricamente impossível o que víamos no terreiro. Em todo caso eu, já acostumado com esses fenômenos, não dei muita importância ao fato, mas fiquei feliz porque passou a dor da coluna do José Maria.
Curioso, procurei ver se o Fonseca estava assistindo a cena. Ele estava. Convidei-o para ir conversar com o Exu Tranca Ruas das Almas.
– Meu Pai, este é um amigo meu, que vem só para buscar um axé do senhor.
O Pai Luiz e eu trabalhávamos – e ainda trabalhamos, com a mesma entidade, o fortíssimo Exu Tranca Ruas das Almas. Pela formação da terceira energia essa entidade modifica-se sem perder sua essência, quando incorporado em mim ou nele. Em mim ele torna-se mais cerimonioso e com o Pai Luiz mais exibido.
– Meu filho, me dê uma vela. Pediu o Exu.
Entreguei-lhe uma vela branca, ele acendeu-a e, encostando-a acesa na parede, deixou-a como se estivesse pregada. O fato da vela, com uma simples pressão ter grudado na parede, como já falei, não me impressionou. Mas fiquei preocupado, afinal a parede era de madeira.
De forma mansa e delicada para não contrariar o Exu, falei:
– Meu Pai, o senhor vai queimar o terreiro.
– Você acha que vou fazer isso?
Enquanto ele falava, o Fonseca ficava só olhando assustado para a vela grudada na parede. Eu também não tirava os olhos da chama da vela para ver se não queimava a madeira. Enfim, a vela não caiu e o fogo nem chamuscou a parede. Pedimos licença e saímos. Naquela noite não incorporei nenhum espírito só para, de minuto a minuto, cuidar da vela.
No dia seguinte o Fonseca foi me visitar, o que eu já esperava. E ele queria trocar idéias sobre a gira e o que viu.
Tomando a iniciativa da conversa, falou:
– Realmente, ontem à noite, vi coisas incríveis.
– Isso quer dizer que você gostou da gira.
– Gostei. E o Exu quando incorpora em você, também faz essas coisas?
– Que coisas? Falei, fazendo-me de desentendido.
– Aqueles fatos diferentes. Tentou explicar, para esconder seu assombro.
Contei algumas passagens do Exu Tranca Ruas das Almas, incorporado comigo, principalmente uma que achei muita graça.
– O Exu estava incorporado em mim, e tinha ganho de um consulente uma cigarrilha. Ele chamando seu cambono, entregou-lhe a cigarrilha e ordenou:
– Acenda.
O cambono naquele momento estava distraído, e entendeu que ele tinha pedido uma pemba. Cuidadosamente entregou a ele uma pemba vermelha. O exu pegou a pemba, encostou na ponta da cigarrilha apagada e devolveu-a para o cambono depois de ter acendido a cigarrilha no colorido pedaço de giz e já estar dando boas baforadas.
O Fonseca estava diferente. Fugindo do seu estilo, não discutia e muito menos tentava impor os seus conhecimentos.
– Como é possível um médium franzino como o Pai Luiz pôr nas costas um homem daquele peso e ainda sair andando um bom tempo pelo terreiro? É por essas coisas que a Umbanda é considerada cheia de magia?
– Ele deve ter usado a energia dos médiuns para deixar seu cavalo mais forte, ou deixar o José Maria mais leve. Nos trabalhos de efeitos físicos, a levitação funciona assim. Expliquei.
– Tem lógica. Você sabe como ele fez para grudar a vela na parede e acender uma cigarrilha com uma pemba?
– Não sei qual foi o processo e nem tenho necessidade de sabê-lo. Deixo essa parte por conta deles. As entidades não costumam brincar e o fato dele ter criado essa situação deve ser por alguma razão que foge ao nosso entendimento. Não vejo isso como magia. Apenas não sei. Falei categoricamente. A grande magia você não reparou. Foi quando ele estava no meio do terreiro manipulando os elementos da terra para criar um campo de força para eliminar uma energia negativa que estava prejudicando aquela família sentada na sua frente. Esclareci, recriminando sua falta de observação.
– Gostei da umbanda. Vou voltar outras vezes. Afirmou o Fonseca, despedindo-se.
Em minha casa ouvia pacientemente um jovem extravasar todos os seus recalques. Na sua opinião o seu pai era o culpado pela sua vida desastrada.
Reclamava deixando transbordar revolta.
– Não gosto dele. Somos diferentes, e ele não me entende.
Eu observava o jovem. Seu nome era Lucas, o mesmo do apóstolo. Era corpulento, a sua tez morena e os seus cabelos eram longos e caídos sobre os ombros. Uma camiseta justa e sem mangas deixavam à mostra seus braços fortes onde se via uma enorme tatuagem de um dragão. Nariz bem feito, com uma enorme boca e dentes corretos. As orelhas estavam cobertas pelos cabelos, mas quando os alisava, dava para ver dois brincos prateados. Usava uma calça jeans e uma bota marrom. Ele estava destoando da minha fina poltrona clássica. Sua expressão irradiava ódio, mantendo sempre as sobrancelhas cerradas.
Estava procurando argumentos para sensibilizá-lo. Lembrei que fiquei órfão, com onze anos.
– Você não pode imaginar o que é ser criado sem um pai. O meu morreu quando era criança, e até hoje amargo não ter tido um. Bom ou ruim, ele está ao teu lado. Aproveite essa benção, Lucas.
– Não quero que ele morra, mas se isso acontecer não vai me fazer nenhuma falta. Protestou.
Como os filhos são injustos. Ao pai cabe todas as tarefas difíceis. É ele quem educa o filho, o protege e provém, além mil e tantas outras tarefas de sua responsabilidade. Continuei paciente. Perguntei:
– Quantos anos você tem?
– Vinte e três. Respondeu secamente.
Menino ele não era mais. Com essa idade, eu já tinha dois filhos e mantinha a família à custa de meu trabalho.
– Você trabalha?
– Não, só estudo.
– Quem paga os teus estudos?
– Meu pai.
– Você já repetiu ano da escola?
– Duas vezes. Mas por que você pergunta?
Não dei oportunidade para ele refletir. Engatei outra pergunta:
– Você mora sozinho?
– Não, moro com meus pais.
– Eu não conheço teu pai. Como ele é? Perguntei para descontrair.
– Toma o café da manha de gravata, não gosta de musica e briga comigo sempre que pode. Respondeu com a revolta inicial.
Sempre gostei de conversar com os jovens mostrando a máxima sinceridade.
– Na verdade, não sei o que você quer de mim. Como posso ajudar você?
– Eu acho que meu pai está perturbado, por isso estou aqui. Estou pedindo para você falar com os espíritos para ver se eles podem resolver esse problema.
Não sei até que ponto entendo os jovens. O Lucas me confundiu. Não gostava do pai, era um péssimo estudante e jogava fora o dinheiro dele , vivia da mesada, comia e dormia na casa dele. E ainda reclamava? Do que? Ele era um néscio desajustado e ingrato. Tem momentos que corremos o risco de sermos injustos, mas eu já estava do lado do injustiçado pai. Refreei esse sentimento por ter sido procurado pelo Lucas como pai-de-santo. E uma das tarefas do dirigente espiritual é ajudar os outros sem julgamentos. Agi dessa forma. Falei delicada e paternalmente:
– Eu espero que Xangô te faça mais justo. Você quer que teu pai te aceite do jeito que você se veste e pensa, mas ao mesmo tempo não o aceita como ele é. Vocês são gerações diferentes, cada um vivendo o seu mundo, e o respeito mútuo deveria prevalecer. Se é ajuda espiritual que você está buscando preciso que você vá no terreiro falar com a entidade.
Minhas palavras surtirem efeito. O Lucas ficou calado e por alguns momentos pensativo, o que me deixou satisfeito. Ajeitei para ele uma consulta com o Exu Tranca Ruas das Almas. Orientei bem como ele deveria falar com a entidade. Já sentado diante do poderoso exu ele começou a explicar:
– Exu, eu tenho um problema…
O espírito interrompeu. Falou no seu estilo:
– Conte-me as besteiras que você fez.
alar com o Exu Tranca Ruas das Almas não é fácil. Sua marcante presença faz dos consulentes presas fáceis.
– Não entendi. Balbuciou o Lucas.
– Você pode enganar os teus pais, meu cavalo e teus amigos, mas a mim não. Você é um idiota que fuma maconha, come cogumelo feito um animal e se droga com freqüência. Essa porcaria da tua cabeça já esta quase destruída. Você não gosta do teu pai porque ele sabe disso e não te dá dinheiro para você se corromper.
O Lucas arregalou os olhos. Foi descoberto. Sem nada dizer, ficou ouvindo o exu falar. Ouviu uma ameaça assustadora:
– Se não interromper esse vicio imediatamente quando você desencarnar poderá ser atraído para o monte dos drogados.
O Lucas ficou sensibilizado. Em prantos concordava com todas as revelações do exu. Seu estado geral exigia socorro. O exu determinou:
– Vá para o meio do terreiro que vou fazer uma série de trabalhos, começando hoje.
O Lucas já estava sentado diante de várias velas, das bebidas, do ponto riscado e de outros elementos como ponteiro, imã e fio de cobre. Algumas entidades incorporadas em seus médiuns trabalhavam com o Lucas, enquanto o exu Tranca Ruas das Almas, sentado em seu toco, explicava aos cambones o que era o monte dos drogados:
– A droga e o álcool, provocam lesões cerebrais que se espalham pelo perispírito, criando larvas circulantes dentro da aura do viciado. Quando desencarnam, obedecendo um processo natural, todas essas máculas retornam ao lugar de onde saíram, ou seja, no cérebro da pessoa. Obedecendo o princípio que não existe retrocesso espiritual, vocês imaginam que o espírito do desencarnado permanece igual ao estado que mantinha quando ainda encarnado. Puro engano, pois quando se concentram elas aumentam a lesão cerebral, fazendo o espírito perder seu livre arbítrio, e muitos deles ficam inertes, amontoados em um tipo de vala. Apesar da assistência e cuidados dos espíritos obreiros preparados para atenderem esse tipo de doença podem ficar animalizados durante um estagio que na medição do tempo da terra pode durar centenas de anos. O lugar é escuro e, mesmo eu, não gosto de ir lá. Explicou pacientemente o exu.
Depois de encerrado o trabalho eu relatava às pessoas que ouviram a explicação do exu sobre as visões que eu como médium gravei sobre o que o exu chamou de o monte dos drogados.
– Vocês devem ter a lembrança daquelas fotografias divulgadas após a guerra dos campo de concentração dos nazistas. Os corpos eram jogados em valas, amontoando-se uns sobre os outros, formando um quadro inesquecível da maldade humana. O que eu vi, enquanto o exu falava, era parecido com isso com algumas diferenças. Os corpos estavam deformados, esqueléticos e se moviam como vermes Suas mãos estavam sempre buscando algo como se fosse um socorro para sair daquele dantesco inferno e, tudo isso, sob uma tênue luz avermelhada.
O Lucas melhorou, mas não sarou. Sua incapacidade mental o obrigou a abandonar os estudos, e sua idiotice o tornou incapaz para o trabalho. A dependência das drogas foi mais forte que sua vontade. Hoje se droga para suavizar a necessidade. O relacionamento com seu pai foi normalizado, principalmente porque ele é hoje, como foi outrora, o seu sustentáculo, quer provendo suas necessidades, quer dando – como todo pai faz, o seu amor. E tudo isso com terno, gravata e trabalho.
Quando tenho oportunidade aconselho os jovens:
– Procurem saber o que é e porque existe no espaço o monte dos drogados. Quem pode ensiná-los? Ora, falem com o melhor amigo de vocês: seus pais.
O Waldomiro é um espiritualista, curioso e muito interessado em conhecer a umbanda. Crê em Deus e para ele todas as religiões são boas, mas a nenhuma é filiado ou adepto.
Talvez por isso, buscando ansiosamente a essência de todas as religiões, é uma pessoa muito interessante. esbanjando cultura religiosa, analisando inteligentemente todas elas. Procurou-me, pedindo:
– Fernando, gostaria muito, se você permitir, de conhecer o terreiro, mas não no dia de gira. Queria ter a liberdade para pedir explicações.
– Claro, terei imenso prazer em mostrar tudo.
– Pode ficar certo que respeitarei teus segredos.
– Não tenho segredos. Pai-de-santo quando afirma não poder revelar alguma coisa é porque não sabe responder. Se eu não souber, digo, apenas, que não conto, porque não sei. Tranqüilizei o simpático amigo.
No dia e hora combinada, entramos no terreiro.
– A primeira pergunta vai ser sobre aquela casinha pequena, lá na entrada… Disse, rindo.
Voltamos para a casinha que despertou tanta curiosidade.
– Aqui fica a segurança externa do terreiro, também chamada tronqueira, cuidada pelo exu guardião, no caso um falangeiro do Exu Tranca Ruas. Abri a porta, mostrando o que tinha dentro. Em cima de um toco de madeira, estava a imagem do Exu Tranca Ruas e ao seu lado, a da Pomba-gira Maria Padilha. E saí de lado, para ele olhar melhor.
Ele ficou observando e acho que sentiu alguma coisa, porque ficou muito calado, parecendo impressionado. Apontando para o chão, observei:
– Embaixo desta laje tem um buraco, onde está fincada a segurança feita pelo Exu Tranca Ruas das Almas, chefe da quimbanda em nosso terreiro. Expliquei.
E o que é essa segurança?
– Ele pôs vários elementos, como ponteiro, ferro, cobre e mais uma porção de metais, sal, carvão, ervas, bebidas e algumas coisas mais. É um campo de força e ainda, um ponto riscado, feito por ele.
– E as velas acesas. Ficam sempre aí?
– Toda semana, acendo para o exu uma vela branca, uma vermelhas e outra preta, e para a pomba-gira, uma vermelha, além de encher os copos de suas respectivas bebidas.
– É verdade que as pombas-gira são os espíritos das prostitutas?
– A pomba-gira é o exu feminino. Ao contrário do que muitos pensam, ela não é prostituta. É um orixá trabalhador, buscando sua evolução. Pode ser que algumas delas, em vida, tenham sido mundanas, mas hoje são espíritos evoluídos, ajudando os homens nos terreiros para, como o exu, ganhar sua evolução espiritual.
– Assisti uma gira de quimbanda e elas me pareceram escandalosas. Afirmou.
– Elas exploram esse lado do folclore, fazendo seus cavalos usarem roupas extravagantes, se pintando com exagero. Fumam cigarros sofisticados, algumas até com longas piteiras e não dispensam os perfumes e flores.
– Onde elas se encaixam com os exus?
– Todo exu tem a sua pomba-gira. Elas são auxiliares diretas dos exus. Em casos de amor, desespero e consertos familiares, os exus mandam elas trabalharem. A prova da submissão das pombas-giras aos exus é que elas não riscam ponto para trabalho. Quem risca o ponto para a pomba-gira é o exu. Fique certo, que elas são entidades maravilhosas e doces, embora, às vezes, fiquem embrabecidas. Sua força é indiscutível.
Parecendo satisfeito, entramos no terreiro. Ele curioso, olhava os atabaques, os quadros representando as entidades, espadas, machadinhas, arcos e flechas, que ornamentam as paredes. Dirigi-me ao meio do terreiro e, ajoelhado, bati o dedo três vezes onde tem uma estrela em granito, e saudei, curvando-me e batendo três palmas, claro, suavemente.
– Salve todos os Orixás da umbanda.
– Por quer você faz o cumprimento nessa estrela?
– É a segurança do terreiro. Como expliquei lá na Tronqueira, aqui estão enterradas as armas do Caboclo Akuan, o Orixá chefe espiritual da casa.
– E por que ele? Não podia ser outro?. Bombardeou.
Pelas minúcias das perguntas, imaginei uma longa tarde. Lembrei da Cris Mendes, uma médium do terreiro, filha de Ogum e que trabalha com o Caboclo Rompe Mato. Sentou-se à frente do Caboclo Akuan e explicou:
– Seo Akuan, meu filho, o Paulinho, é um admirador do Caboclo Rompe Mato. Ele perguntou, na sua inocência, quem mandava no Caboclo Rompe Mato. Respondi que era o senhor, o Caboclo Akuan. Ele perguntou-me, quem mandava no Caboclo Akuan. Eu não soube responder.
– Diga para ele que quem manda no Caboclo Akuan é o Rompe Mato, na casa dele. Respondeu, deixando uma belo ensinamento.
Voltei ao meu interlocutor.
– Por eu ser o dirigente material da casa, meu orixá, Ogum, é quem manda, no plano espiritual, através de meu pai e filho dele o Caboclo Akuan, por isso que tem seu assentamento embaixo desta estrela. Cada terreiro tem o orixá mandante, de acordo com seus assentamentos. Mesmo que eu saia do terreiro, a casa sempre será de Ogum, exceto se levantarem as armas do caboclo e forem substituídas por outras. É como na vida material: eu mando na minha casa, e você na sua.
– É por isso que nas giras, você chama primeiro a linha de Ogum?
– Sim, exatamente por isso. A linha de Ogum, vem firmar o terreiro para o trabalho subseqüente. Faz parte do ritual.
Pareceu satisfeito com a explicação. Parou em frente ao congá e ficou olhando todas as imagens.
– Quem cuida do congá? Qualquer um pode por uma imagem no altar?
– No congá, só o pai-de-santo pode por alguma coisa. Vejo às vezes velas, tocos de charuto e papeis com pedidos, depositados no congá. Está errado. Aqui só as coisas sagradas do terreiro é que podem ficar depositadas.
– Você disse ser filho de Ogum. E eu, como vou saber de quem sou filho? Perguntou, curioso.
– Existe um ritual para isso. No candomblé, jogam-se os búzios, na umbanda jogamos o obi ou acendemos velas. Pode também ser feito com uma cebola cortada em quatro pedaços. Venha uma noite de trabalho e jogarei para você, muito embora todo teu jeito seja de Xangô. Falei, querendo adivinhar.
Não devia ter falado. Despertei sua curiosidade.
– Como jeito, são diferentes? Conte-me.
– Cada um tem uma influência muito grande de seu orixá. Os orixás agem diretamente na essência e comportamento de cada um. Até na escolha das tarefas, eles recebem influência. Nosso secretário é filho de Oxalá e o Tesoureiro de Xangô. Expliquei, sorrindo.
– Como assim?.
– Se você soubesse os característicos de cada um, ia entender. Respondi, laconicamente.
– Explique tudo, você prometeu. Cobrou.
– Está certo, vou falar, pegue este caderno e tome nota. Vou dizer, um por um, depois não se queixe.
– Venha, sente aqui e fale. Estou gravando desde o começo. Disse, mostrando um pequeno gravador.
Achei graça, sentei-me e comecei a falar:
– O filho de Oxalá é uma pessoa normalmente tranqüila, de andar sereno, sem afobação, com tendência ao sofrimento, quando o busca. Gosta de transmitir seu gênio calmo, quer as coisas sem demonstrar, atingindo seus objetivos de forma bem natural. É teimoso. Na teimosia não gosta de impor suas idéias, mas não cede em seu ponto de vista. De todos os Orixás, o filho de Oxalá talvez seja o mais organizado, no dia-a-dia, nos escritórios e na lida com papéis.
– Agora entendo a história do secretário. Interrompeu.
Retomando a palavra continuei:
– Não é líder, mas não se submete facilmente à liderança de outro, ou seja, não manda e não gosta de ser mandado. Não é agressivo e quando agredido prefere demostrar superioridade. Tem um tendência muito forte para a solidão, buscando, pelo isolamento, um encontro com a harmonia universal.
Para que o filho de Oxalá tenha uma vida melhor, deve procurar despertar em seu interior a alegria pelas coisas que o cerca e tentar deter a sua natural teimosia.
Oxalá é o Orixá maior e por isso mesmo não atua diretamente em elementos do planeta, fazendo isso por intermédio dos outros Orixás.
– Explique melhor.
– Ogum atua no ferro, Oxóssi na mata, Xangô na pedreira, Iemanjá no mar, Oxum nas águas doce e cachoeiras, e Iansã no raio. Oxalá atua em todos, através dos seis orixás. – expliquei.
O Waldomiro ficou em silêncio, demonstrando muito interesse nas explicações. Continuei:
Ogum é o Orixá da guerra, da demanda e da luta. Seu filho carrega em seu gênio esses característicos. É uma pessoa de tipo esguio e procura sempre se manter bem fisicamente. Adora o esporte e está sempre agitado, em movimento. A sua impaciência é tão marcante que não gosta de esperar.
– Então, é por isso que ouvi falar que os oguns não ficam parados no terreiro. Comentou.
Continuei:
– Sim, é verdade. Ele é afoito. Tem decisões precipitadas. Inicia tudo sem se preocupar como vai terminar e nem quando. Está sempre em busca do que é considerado impossível. Ama o desafio. Não recusa a luta e quanto maior o obstáculo mais desperta a garra para ultrapassá-lo. Como os soldados que conquistavam cidades e depois a largavam para seguir em novas conquistas, os filhos de Ogum perseguem tenazmente um objetivo: quando o atingem, imediatamente o largam e partem em procura de outro. É insaciável em suas próprias conquistas.
Uma marca muito forte de seu Orixá, é tornar-se violento repentinamente. Seu gênio é muito forte. Não admite a injustiça e costuma proteger os mais fracos, assumindo integralmente a situação daquele que quer proteger. Leal e correto, é um líder. Sabe mandar sem nenhum constrangimento e ao mesmo tempo sabe ser mandado, desde que não seja desrespeitado. Normalmente o filho de Ogum é relaxado com seu cuidado pessoal. Adapta-se facilmente em qualquer lugar. Come para viver, não fazendo questão da qualidade ou paladar da comida. Por ser Ogum o Orixá do Ferro e do Fogo seu filho gosta muito de armas, facas, espadas e das coisas feitas em ferro ou latão. É franco, muitas vezes até com assustadora agressividade. Não faz rodeio para dizer as coisas. Não admite a fraqueza, falsidade e a falta de garra. O “difícil” é a sua maior tentação.
Nenhum filho de Ogum nasce equilibrado. Seu temperamento difícil e rebelde o torna, desde a infância, quase um desajustado.
– Espere aí. Explique melhor essa parte. Me parece muito forte. Observou.
– Isso é um aviso aos pais. Muitas crianças às vezes são levadas aos psicanalistas por mostrarem um gênio difícil de lidar. Brigam e enfrentam os pais sem nenhum medo. Se for um filho de Ogum, os pais devem ter paciência, pois quanto mais provocados, mais eles teimam. Esta frase é para chocar mesmo. Falei, lembrando das minhas indignações na infância.
– Pela tua explicação, muitos problemas seriam evitados com os jovens, se houvesse essa conscientização. Observou.
– É verdade. Como os filhos de Ogum não dependem de ninguém para vencer suas dificuldades, com o crescimento vão se libertando e se acomodando às suas necessidades. Quando eles conseguem equilibrar seu gênio impulsivo, a vida lhes fica bem mais fácil. Se conseguissem esperar ao menos vinte quatro horas para tomar qualquer decisão, evitariam muitos revezes, muito embora, por mais incrível que pareça, sejam calculistas e estrategistas.
Contar até dez, antes de deixarem explodir sua zanga, também lhes evitaria muitos remorsos. Seu maior defeito é o gênio impulsivo e sua maior qualidade é que tem tudo para ser um vencedor.
Oxóssi age na Natureza, especificamente nas matas e no reino animal. É o conhecedor das ervas e o grande curador. É a essência da nossa vida.
Seu filho tem um tipo calmo, amoroso, encantador, preocupado com todos os problemas. Um grande conselheiro pelo seu gênio alegre, muito embora com forte tendência à solidão. Incapaz de negar qualquer ajuda a alguém, sabe, como poucos, organizar o caminho para as soluções complicadas. Com respeito à sua própria organização familiar, é muito apegado às suas coisas e à sua família, à qual dedica atenção total no sentido de provê-la e encaminhá-la. Diante das dificuldades próprias é muito hesitante, mas acaba vencendo, sustentado pelo seu espírito alegre e otimista. É carente. Não assume os problemas dos outros, mas fica lado a lado ajudando-os. Ama a Liberdade e a Natureza. O mato, as águas, os bichos , as estrelas, o sol e a lua, são a bússola de sua vida. Não discute a fé. Acredita e é fiel seguidor da religião que escolheu. Não é ciumento e muito menos rancoroso. Quando atacado custa revidar. Quando o faz se torna perigoso. É, neste particular, ladino como os índios. Pisa macio, mas é certeiro. Tem um gosto refinado. Gosta das coisas boas, veste-se bem e cuidadosamente.
O filho de Oxóssi é talvez o mais equilibrado. Para que sua vida melhore, deve despertar aquele gigante que habita sua essência, o que o tornaria mais disposto a encarar as suas próprias dificuldades.
Xangô, o Deus da Justiça, Senhor das pedreiras, exerce uma influência muito forte em seu filho. Todos os Orixás, evidentemente, são justos, e transmitem esta característica aos seus filhos. Entretanto, em Xangô, a Justiça deixa de ser uma virtude, para passar a ser uma obsessão, o que faz de seu filho um sofredor, principalmente porque o parâmetro da Justiça é o seu julgamento e não o da Justiça Divina, quase sempre diferente do nosso, muito terra. Esta análise é muito importante.
– Explique melhor.
Contei o caso de uma moça que, num acidente, atropelou um homem, totalmente embriagado, tirando-lhe a vida. Apesar da vítima ter sido a única culpada, sua família entrou na justiça com uma ação de indenização, provocando uma crise emocional na moça. Ela não admitia, pelo senso da justiça, que sua inocência fosse questionada. Procurada pelo advogado da família da vítima para um acordo, recusou-se a sequer conversar.
– Sou inocente e a justiça vai provar. Dizia, confiante.
O seu marido queria fazer o acordo, para tranqüilizar sua esposa, no que ela não concordou. Queria, independente do valor da causa, provar sua inocência. Ela foi ganhadora na pendenga judicial. Feliz, contou-me a novidade, no que lhe respondi:
– Que bom ver você outra vez feliz. Mas correu um risco enorme.
– Como assim?
– Você trocou a justiça de teu pai Xangô, pela do homem. No julgamento você não estava sendo julgada por ele, e sim por um juiz da terra, passível de erros. E se ele errasse? Você iria culpar Xangô?
O filho de Xangô apresenta um tipo firme, enérgico, seguro e absolutamente austero. Sua fisionomia, mesmo a jovem, apresenta uma velhice precoce, sem lhe tirar, em absoluto, a beleza ou a alegria. Tem comportamento medido. É incapaz de dar um passo maior que a perna e todas as suas atitudes e resoluções baseiam-se na segurança e chão firme que gosta de pisar. É tímido no contato mas assume facilmente o poder do mando. É eterno conselheiro, e não gosta de ser contrariado, podendo facilmente sair da serenidade para a violência, mas tudo medido, calculado e esquematizado. Acalma-se com a mesma facilidade quando sua opinião é aceita. Não guarda rancor. A discrição faz de seus vestuários um modelo tradicional.
Quando o filho de Xangô consegue equilibrar o seu senso de Justiça, transferindo o seu próprio julgamento para o Julgamento Divino, cuja sentença não nos é permitido conhecer, torna-se uma pessoa admirável. O medo de cometer injustiças muitas vezes retarda suas decisões, o que, ao contrário de prejudicá-lo, só lhe traz benefícios. O grande defeito dele é julgar os outros. Se aprender a dominar esta característica, torna-se um legítimo representante do Homem Velho, Senhor da Justiça, Rei da Pedreira. Por falar em pedreira, adora colecionar pedras.
Iemanjá, a Senhora do Mar, tem grande força, com indiscutível domínio no gênio e personalidade de seu filho. Pelo fato de Iemanjá representar a Criação, sua filha normalmente tem um tipo muito maternal. Aquela que transmite a todos a bondade, confiança, grande conselheira. É mãe. Sempre tem os braços abertos para acolher junto de si todos aqueles que a procuram. A porta de sua casa sempre está aberta para todos, e gosta de tutelar pessoas. Tipo a grande mãe. Aquela mulher amorosa que sempre junta os filhos dos outros com os seus. O homem filho de Iemanjá carrega o mesmo temperamento: é o protetor. Cuida de seus tutelados com muito amor. Geralmente é calmo e tranqüilo, exceto quando se sente ameaçado na perda de seus filhos, porque não divide isto com ninguém. É sempre discreto e de muito bom gosto. Veste-se com capricho. É franco e não admite a mentira. Normalmente fica zangado quando ofendido e o que tem como ajuntó (o segundo santo masculino) o orixá Ogum, torna-se muito agressivo e radical. Diferente é quando o ajuntó é Oxóssi. Aí sim, é pessoa calma, tranqüila, e sempre reage com muita tolerância. O maior defeito do filho de Iemanjá é o ciúme. É extremamente ciumento com tudo que é seu, principalmente das coisas que estão sob sua guarda.
– O que é ajuntó?
A força de Iemanjá, nas incorporações, são as ondinas. Daí não ter um pai-de-cabeça, que, no caso, pertence a linha seguinte que influencia sua personalidade. Geralmente, um caboclo de Ogum ou de Oxóssi, dado que Xangô tem ligação íntima com a linha da Iansã. Expliquei, detalhadamente.
O filho ou filha de Oxum, a Rainha da Água doce, dona dos rios e das cachoeiras, carrega todo o tipo de Iemanjá. A maternidade é sua grande força, tanto que quando uma mulher tem dificuldade para engravidar, é à Oxum que se pede ajuda (pelo Amalá). A diferença entre Iemanjá e Oxum é a vaidade. Filho de Oxum ama espelhos (a figura de Oxum carrega um espelho na mão), jóias caras, ouro, é impecável no trajar e não se exibe publicamente sem primeiro cuidar da vestimenta. A mulher trata com zelo o seu cabelo e não descuida da pintura. Normalmente tem uma facilidade muito grande para o choro. É muito sensível a qualquer emoção. Talvez ninguém tenha sido tão feliz para definir a filha de Oxum como o pesquisador da religião africana, o francês Pierre Verger, que escreveu: ”o arquétipo de Oxum é das mulheres graciosas e elegantes, com paixão pelas jóias, perfumes e vestimentas caras. Das mulheres que são símbolo do charme e da beleza. Voluptuosas e sensuais, porém mais reservadas que as de Iansã. Elas evitam chocar a opinião pública, à qual dão muita importância. Sob sua aparência graciosa e sedutora, escondem uma vontade muito forte e um grande desejo de ascensão social.” Seu maior defeito é o ciúme.
Iansã, a Senhora dos Ventos e das Tempestades, a Deusa Guerreira. Seu filho é conhecido por seu temperamento explosivo. Está sempre chamando a atenção por ser inquieto e extrovertido. Sempre a sua palavra é que vale e gosta de impor aos outros a sua vontade. Não admite ser contrariado, pouco importando se tem ou não razão, pois não gosta de dialogar. Em estado normal é muito alegre e decidido. Questionado torna-se violento, partindo para a agressão, com berros, gritos e choro. Tem um prazer enorme em contrariar todo tipo de preconceito. Passa por cima de tudo que está fazendo na vida, quando fica tentado por uma aventura. Em seus gestos demonstra o momento que está passando, não conseguindo disfarçar a alegria ou a tristeza. Não tem medo de nada. Enfrenta qualquer situação de peito aberto. Ciumento, demonstra um certo egoísmo porque não se importa com que os outros sofram pelo seu gênio reconhecidamente mal-humorado. É leal e objetivo. Sua grande qualidade, a garra, e seu grande defeito, a impensada franqueza, o que lhe prejudica o convívio social. Por ser tão marcante seu gênio, se este fosse controlado, o que não é difícil, seria pessoa muito mais feliz e querida.
Encerrando as explicações, perguntei:
– Cansou-se de ouvir?
– Não, claro que não. Gostei muito, vou passar a observar as pessoas para conferir. Achei interessante a descrição das filhas de Oxum. São assim mesmo?
– Vou te contar uma história. Estávamos reunidos num grupo, e tentei dar as diferenças dos orixás. Exemplifiquei duas pessoas brigando. Se passar um filho de Oxalá, ele vai orar, pedindo a Deus que acabe aquela briga. Um filho de Xangô vai ficar indignado, querendo saber qual dos dois está com a razão, e por ele vai torcer para que seja o vencedor. Um filho de Ogum, ou passa direto e não olha ou entra na briga, do lado do baixinho que está apanhando. Um filho de Oxossi, vai parar, senta, fica assistindo a briga, achando graça. E parei, quando fui interpelado por uma senhora, por coincidência, uma filha de Oxum.
– E o povo das águas. Como iriam se comportar?
Meio sem jeito, falei:
– Não sei. Não pensei.
O Fernando Cecchetti, fazendo parte da roda, pediu licença para terminar a história, no que concordei. Tomando a palavra, continuou:
– Se for uma filha de Iemanjá, vai chamar os dois, encostar a cabeça em seu peito, vai alisá-los, acalmá-los, como uma mãe, e eles acabam fazendo as pazes. Se for uma filha de Iansã, vai brigar com os dois. E parou, como se tivesse terminado, no que foi interpelado:
– E se for filha de Oxum. O que faria?
– Nada. Eles estavam brigando por causa dela. Encerrou com muita graça, arrancando gostosas risadas do grupo.
O Waldomiro também achou graça, mas perguntou:
– Mas por que você disse eu pareço filho de Xangô?
– Os filhos de Xangô são detalhistas, o que você parece ser.
– É. Sou mesmo. Concordou.
– Vou te mostrar a Casa dos Exus e o Roncó.
– Casa dos Exus e Roncó. Pode explicar? .
– Sim, venha comigo. Aqui fica a Casa dos Exus. É o lugar que cultuamos as imagens dos exus e pombas-gira, onde deixamos os pontos firmados, quando eles pedem, e alimentamos a segurança para os dia de trabalho. Quando entrarmos, bata três vezes, como fiz lá na estrela.
Entramos e ele ficou olhando. Não se conteve e falou:
– As imagens são feias, mas a vibração é muito boa.
– É. Faz parte do folclore. Estamos habituados dessa forma. Qualquer modificação, iria tirar nosso referencial.
– Quando sair, venha de costas. É um gesto de respeito.
Entramos no Roncó. Ele ficou maravilhado, tanto que exclamou:
– Não estou entendo nada, mas que lugar de energia forte.
Nosso roncó tem muitos alguidares, pela quantidade de médiuns. Mais de trezentos. Eles são colocados em prateleiras, com o nome dos médiuns escrito na frente, com uma vela de sete dias, água, bebida e ervas do orixá dentro do alguidar. Fica iluminado, tornando-o muito bonito.
– Aqui é o nosso lugar sagrado. Só eu e a hierarquia podemos entrar, exceto os convidados. Minhas coisas ficam aqui. Quando preciso de axé, venho aqui. Semanalmente alimento o meu alguidar e as ervas que usamos nos trabalhos. Cada alguidar de barro pertence a um médium da corrente. Ele é alimentado, criando um campo de força, que é usado pela entidade protetora de cada um, em benefício do próprio médium.
– Mas como você faz para que eles recebam os alguidares? Todos têm?
– Só os que já fizeram o Amaci.
– O que é o Amaci?
– Amaci é a lavagem do chacra coronário de cada um. É a abertura de sua espiritualidade e a entrada dele na umbanda. É feito durante o ritual do Amaci. O médium traz um alguidar, vela e a bebida do orixá. O Caboclo Akuan lava a cabeça dele, primeiro com as ervas por mim preparadas, e depois com a bebida do orixá. Sua cabeça é coberta com um pano, que chamamos pano de cabeça, e é levado para o roncó, conforme você está vendo.
– Existem outros rituais, na umbanda?.
– Claro. Entre outros tem o batizado e o casamento.
– A umbanda faz casamento?
– Faz e é muito bonito. São parecidos, tanto batizado como casamento, com os da igreja católica.
– Gostaria de fazer uma pergunta que sempre me intrigou, e não têm nada a ver com este momento. Mas creio ser uma boa oportunidade. É sobre as benzedeiras. Solicitou, na expectativa de minha reação.
O que você quer saber?
– Vale a pena consultá-las?
– Tenho o maior respeito pelas benzedeiras. São médiuns de extraordinária potencialidade, mas não seguiram uma linha de trabalho em grupo. Eu mesmo posso testemunhar.
Quando minha filha era bebê, costumava jogá-la para cima, à guisa de brincadeira e, também, para ver o susto que sempre levava. Coisa de pai novo, sem medir as conseqüências de seus atos. Surgiu um vermelhão em seu rosto, principalmente atrás das orelhas, que estava infeccionando. Os médicos não conseguiam resolver. Levamos, minha mulher e eu, à uma benzedeira. Ela, enquanto rezava, derrubava cera de uma vela acesa dentro da água num copo. Ficou concentrada e perguntou:
– Quem está jogando a menina para o ar?
Envergonhado, confessei fazer isso.
– Esta é a causa. Falou, secamente.
Apagou a vela e encerrou. Em três dias, ela ficou completamente curada.
– Quando eu torcia o tornozelo, era uma benzedeira que me curava. Continuei. E existe um caso muito interessante. Uma criança estava doente, pálida, e não se desenvolvia. A mãe consultou uma benzedeira. Ela fez suas rezas e diagnosticou:
– A menina está com uma cobra dentro de seu corpo. Dê chá de semente de abóbora, durante sete dias.
– O que significava? Indagou o curioso amigo.
– A semente de abóbora é vermífugo. E a cobra devia ser uma lombriga.
O Waldomiro ficou pensativo e não fez mais perguntas.
– Porque os santos da igreja católica são cultuados na umbanda?
– Era proibido aos escravos africanos o culto à sua religião, o candomblé, sendo-lhes permitido, apenas, a prática do catolicismo. Eles, de forma esperta, construíam os altares, pondo em cima as imagens da Igreja, e embaixo, escondido atrás dos panos, as comidas, ou Amalás, aos seus Orixás. Para Oxalá, escolheram Jesus Cristo; para Ogum, São Jorge; Iemanjá, tinha a imagem de Nossa Senhora; Oxossi, S. Sebastião; Xangô, S. Jerônimo; Oxum, representada por N.S. da Conceição, e Iansã, por Santa Barbara. Foi assim que houve o sincretismo das religiões católica e afro-brasileira.
– Então, umbanda e candomblé são iguais?
– Candomblé é uma religião, e umbanda é outra. Alguma coisa a umbanda trouxe do candomblé, principalmente os Orixás, e mesmo assim, os sete cultuados e mais Omulum. No candomblé os orixás são mais numerosos. Mas não entendo de candomblé, por isso não sei explicar. Candomblé é uma religião africana e a umbanda é autenticamente brasileira. Completei.
O Waldomiro se deu por satisfeito com o passeio pelo terreiro e com as explicações.
Minha história acabou. Tenho que encerrar este livro, e não sei como fazê-lo.
Sinto-me como o eloqüente orador que não sabe como e quando deve encerrar seu discurso, muito embora esteja ciente dos ouvintes já estarem cansados e aborrecidos.
Aqueles que, pacientemente, chegaram até aqui, estão convidados para uma reflexão: a morte!
A morte é a libertação do espírito! Estou convencido disso pelas minhas convicções religiosas. Mas se ela é assim, por que nos causa tanto medo e qual a razão do nosso sofrimento, quando um ente querido desencarna? Por temer o desconhecido? Não acredito! Acho que é por amor à vida. Mas existem pessoas, onde eu me incluo, que amam a vida e não têm medo de morrer: são os que têm fé!
Tenho um estilo: enquanto penso, vou escrevendo, para corrigir depois. Vou desligar o computador e dormir. Quem sabe, amanhã, quando acordar, tenha uma inspiração .
Fiz bem em ter ido dormir. Tive um sonho lindo! Envolvido que estava até o parágrafo anterior, sonhei que tinha morrido. Foi assim:
Caminhava com alguém ao meu lado, numa estrada de chão de terra. Estava num lugarejo com casas humildes, mas lindas. Todas tinham uma área em frente, e à medida que íamos passando, as pessoas nos saudavam, alegres e sorridentes. Foi quando consegui ver meu acompanhante.
Era um homem alto, corpo forte, rosto comprido e queimado pelo sol, com vasto bigode preto, carregando ao seu lado um fogoso cavalo branco. Vestia bombachas, exibia um facão na cinta, tinha uma capa preta, levada lateralmente no ombro, e empunhava um laço de couro. Seu chapéu era preto, e tinha um lenço vermelho no pescoço. Ao perceber que eu o enxergava, mostrando um largo sorriso, explicou:
– Estamos na aruanda, na vila dos pretos-velhos.
Minha visão ficou mais clara. Um sol vermelho, atravessando os galhos das árvores, trazia uma luz repousante, e um úmido ar nos abençoava com uma brisa perfumada. Fiquei extasiado!
– João Boiadeiro. É você? Exclamei, eufórico.
– Vim cumprir o prometido. Trazer a liberdade que você sempre reclama não ter conhecido. Respondeu alegremente.
Lembrei-me do João Boiadeiro no terreiro. Vivia no sul do Brasil, era alegre e descontraído, mas não admitia ser desrespeitado, e quando isto acontecia, ficava violento e irritado. Contava passagens de sua vida, sempre ressaltando a liberdade, o amor pela natureza, o respeito aos animais e a fidelidade ao patrão Dizia: tenho patrão, mas quem manda em mim é o sol, a lua, a chuva, o vento, os campos e os rios. Costumava dizer que ninguém pode ser feliz sem a ter liberdade. Fazia trabalhos maravilhosos, tanto na umbanda como na quimbanda.
– Muito obrigado, João Boiadeiro. – agradeci.
Sentados num banco feito de tronco de árvore, vi três pessoas e um menino. Não conseguia enxergar direito, mas senti um amor muito grande por eles. Um deles se levantou e veio em nossa direção, e pude ver direito quem ele era: o Pai Maneco! Alto e forte, com os cabelos brancos e o rosto vincado. Não consegui controlar minha emoção. Ajoelhado, beijei suas mãos, quando percebi sua camisa azul clara, as calças brancas e dobradas na bainha.
– Meu protetor, mestre e amigo. Estou muito emocionado em poder falar consigo. Consegui balbuciar, enquanto as lágrimas corriam em minha face.
– Aqui te deixo com o teu protetor. Falou o Boiadeiro, desaparecendo imediatamente.
Os outros dois já tinham se levantado do banco, e os reconheci imediatamente. Ambos aparentavam avançada idade, mas o brilho dos seus olhos iluminaram minha alma. Um era o Pai Luiz de Xangô e o outro o Pai Joaquim de Angola. São meigos e demonstravam serem muito bondosos. O Pai Luiz tirava baforadas de seu cachimbo e o Pai Joaquim de Angola tinha entre os dedos um cigarro de palha. De mãos dadas com o Pai Maneco estava uma criança, também negra, com os cabelos raspados. Era o Joãozinho da Praia, a criança da linha de Cosme e Damião, que também veio me receber. Minha emoção aumentava. Eu estava realmente na aruanda, o céu dos espíritos da umbanda. Foi quando o Pai Maneco, percebendo o meu estado emocional, iniciou uma conversação.
– O João Boiadeiro te deu a liberdade, o Pai Joaquim e o Pai Luiz vão se encarregar de te fazer mais humilde. A mim compete de dar a conscientização. Vamos adiante.
Fomos subindo a ladeira de terra, sempre festejados por seus felizes e delicados moradores, até que ela terminou, onde começava linda campina. Ouvi uma música festiva. Em volta de uma imensa fogueira, vários ciganos cantavam e dançavam alegres.
– Esta festa é em tua homenagem. Esclareceu o Pai Maneco.
Fiquei sem entender, mas agradecido deixava transparecer minha surpresa. Estava encantado com a alegria do povo cigano. Procurava ansioso, o meu amigo Cigano Woisler. Não o encontrava dentre eles. Nós quatro ficamos no meio da dança e da música. Eles pararam de dançar, e os violinos silenciaram, juntamente com os violões e os pandeiros. Não estava entendendo nada, mas fiquei quieto. A roda dos ciganos foi abrindo e deu para deslumbrar, vindo do meio da campina, montado em um cavalo negro, sem rédeas nem selas, em apurado galope, com a cabeça e os dois braços para cima, com os cabelos grisalhos, esvoaçando, o competente chefe de tribo, o Cigano Woisler. Parando seu corcel, desmontou e parou na minha frente. Trajava roupas discretas, com um colete preto todo enfeitado.
– Meu amigo, que bom você estar aqui. Vou roubar um cavalo de alguém para podermos correr juntos nesta campina mágica. Exclamou, dando-me um forte abraço.
O Cigano Woisler gostava de contar estórias, principalmente relacionadas com roubos de cavalos, profissão que exercia com grande orgulho. Nasceu na Hungria, e por lá peregrinava, sempre fugindo de seus inimigos, os guardas dos reis, príncipes ou nobres. Dizia não entender porque era perseguido pela guarda real, uma vez que seu pai, seu avô e todos os seus ancestrais eram ladrões de cavalos. O Pai Maneco tratou de me tirar dali, embora contra a minha vontade e a do cigano. Enquanto caminhávamos, o Pai Maneco esclareceu:
– O Cigano foi a responsável pela harmonia da tua família. São especialistas em trazer a felicidade para vocês.
Eu não falava nada. Estava ainda muito embevecido com aquela situação. Já não sentia ter morrido, ao contrário, estava cada vez mais vivo e esperto. Nós andávamos sem cansar. Os lugares eram longe, mas a distância parecia curta, sem cansaço ou marca do tempo. Uma imensa mata estava à nossa frente. Era deslumbrante e misteriosa. Ficamos observando, todos calados. Via pequenas criaturas correrem de um lado para outro. Alguns eram esquisitos. Fiquei confuso. Pareciam serem pessoas anãs. Intrigado, perguntei ao Pai Maneco:
– São animais?
– São os elementais, os duendes, que habitam as matas. São seres que nunca tiveram uma encarnação terrena. Foram gerados pela força da Natureza. – explicou.
Vi dois índios. Claro, nem perguntei quem eram.
– O Caboclo da Cachoeira e o Caboclo Junco Verde! Exclamei, eufórico.
O Caboclo da Cachoeira já não mostrava o seu característico rosto sisudo e vincado. Sorriu e me abraçou, sem nada dizer.
Seu forte abraço elevou o meu espírito. O Caboclo da Cachoeira demonstra ter idade avançada, embora tenha um corpo esguio. É um legitimo representante da linha de Xangô. No terreiro, seu senso de justiça era dominante. Cumpria todo o ritual da Umbanda, rigorosamente, e era capaz de subir durante a gira, se não lhe dispensassem respeito. Era intransigente e embora aparentasse mau humor, tinha um coração imenso, capaz de se emocionar diante alguma tristeza dos seus filhos da terra. Certa vez uma pessoa sentou-se à sua frente. Sem nada perguntar, o Caboclo da Cachoeira foi contando sua vida:
– Eu era revoltado e não gostava dos meus semelhantes. Saí da tribo e fui viver sozinho. Minha casa ficava á margem de um bonito rio. A solidão foi minha companheira. Meus pensamentos giravam só pelas coisas que tinha deixado para trás. Meu amargo coração aumentava cada vez mais a mágoa que carregava. Descobri que ninguém pode viver sozinho. Quem se isola não consegue colher bons pensamentos. Terminando a história, olhou fixamente para o rapaz à sua frente e perguntou-lhe o que queria.
– Nada meu pai. Na verdade vinha lhe contar que ia sair da casa dos meus pais para viver sozinho…
Ainda abraçado com ele, consegui deixar escapar um cumprimento.
– Kaô Kabecille.
Não dava para cuidar de tudo ao mesmo tempo. Era demais para mim, tudo que me estava acontecendo. Ouvi uma voz atrás de mim:
– Okê Odê, pai-de-santo!
Claro, só podia ser o Caboclo Junco Verde. Corpo enorme, cabelo curto, se apresentava com idade madura. Era desajeitado mas tinha um humor que a todos contagiava. Quando descia no terreiro, a vibração do lugar ficava intensa. Era muito ligado com o Caboclo 7 Flechas e o Caboclo Tupinambá. Sabia, como poucos, fazer seus consulentes elevarem suas vibrações positivas. Por várias mensagens deixa claro ter vivido antes da invasão no Brasil, pois desconhecia o espelho. Vi seu cocar longo, marca dos chefes, e o saiote com a dominância da cor verde, de seu honroso pai Oxóssi.
– Salve meu Pai. O senhor veio me trazer a alegria.
– Sem a alegria, não existe o amor. Nós ainda vamos nos ver. Falou, demonstrando ir embora.
– Que pena. Não pude agradecer ainda a linda mensagem que deixou na terra: A Magia da Umbanda! Falei ao Pai Maneco.
Vi um outro índio sair da mata. O Caboclo Akuan. Foi o clímax da minha emoção. Eu sabia que ele viria. Moço, corpulento, com invejável físico, com cabelos longos, caídos sobre os ombros. Seu cocar era de penas brancas e vermelhas, trazendo em uma das mãos uma lança e no braço direito uma águia. Garbosamente parou na minha frente, fez sua águia voar, levantou os braços como todo poderoso guerreiro:
– Ogunhê! – gritou, fazendo ecoar por toda mata o cumprimento de Ogum, anunciando minha chegada.
Aquilo me abalou. Meu corpo tremia inteiro. Minha cabeça zoava e minhas pernas bambeavam. Foi quando me vi na beira de um profundo buraco. Já não era nítida a iluminação, e ninguém estava ao meu lado. Comecei a entrar em pânico. Será que depois de toda essa beleza que assisti, vou mergulhar no inferno? Antes que isso acontecesse, ouvi uma voz firme, emitindo um som forte e poderoso:
– Chega de sonhos! Volte à terra.
Não obedeci. Sou um ogum teimoso. Não iria obedecer quem não conheço. Recuperando meu estado nervoso, finquei os pés no chão, determinado a discutir e brigar com esse estranho.
– Antes quero ver você.
Alto e forte, vestindo uma camisa de seda branca, com as calças pretas, exibindo os sapatos finos, de verniz, mostrando belíssimos cabelos castanhos e cacheados, olhos azuis que mudava ás vezes para o acinzentados, ele apareceu, dizendo:
– Sou o teu equilíbrio, o Exu Tranca Ruas das Almas.
Não me dei por vencido.
– Exu Tranca Ruas das Almas, não quero mais voltar para a terra. Quero ficar aqui com vocês.
– Está esquecendo a tua família? Volte ao corpo e vá terminar a tua missão. Sentenciou.
Acordei. Que pena! Não queria voltar, pois estava gostando do mundo paralelo. Mas, por outro lado, estou feliz por estar vivo. Continuo contraditório: gostei de morrer e ao mesmo tempo de estar vivo. Mas não será isso que nos acontece? A vida não é uma passagem reparadora do espírito, que anima o corpo físico, buscando a liberdade pela morte?
O Jofre Cabral e Silva foi um advogado, empresário e presidente de vários clubes sociais. Apresentava sérias lesões em seu coração, a causa de seu desencarne em pleno campo de futebol, quando assistia um jogo de seu clube. Ao receber do seu médico orientações para cuidar da sua saúde, deixou escapar uma frase, que escolhi para encerrar minha história: “prefiro morrer vivo, do que viver morto!”